ebook img

Todo Aquele Jazz PDF

186 Pages·2013·0.89 MB·Portuguese
Save to my drive
Quick download
Download
Most books are stored in the elastic cloud where traffic is expensive. For this reason, we have a limit on daily download.

Preview Todo Aquele Jazz

Para John Berger Prefácio Quando comecei a escrever este livro, não sabia ao certo que forma ele teria. Isso representou uma grande vantagem, pois fui obrigado a improvisar, e assim, desde o começo, meu texto teve como modelo uma das características definidoras do tema. Não demorou para que eu percebesse que me distanciara de qualquer coisa semelhante a uma crítica convencional. Cada vez mais, as metáforas e comparações a que eu recorria para evocar o que julgava estar acontecendo na música começaram a parecer inadequadas. Além disso, como até a mais breve comparação já constitui um aceno de narrativa, logo essas metáforas estavam se expandindo e virando episódios e cenas. À medida que eu inventava diálogos e ações, o resultado passou, cada vez mais, a lembrar ficção. Ao mesmo tempo, porém, essas cenas ainda pretendiam ser um comentário sobre uma música ou sobre as particularidades de um músico. O que o leitor tem em mãos, pois, é tanto crítica imaginativa quanto ficção. Muitas cenas têm origem em episódios conhecidos ou mesmo lendários: Chet Baker perdendo os dentes debaixo de murros, por exemplo. Tais episódios fazem parte de um repertório comum de detalhes biográficos e informações: são, por assim dizer, standards, a partir dos quais crio minha própria versão, expondo os fatos identificadores com maior ou menor concisão e a seguir improvisando com base neles ou, em certos casos, afastando-me deles por completo. Isso pode ser um expediente que foge à absoluta fidelidade à verdade, porém, uma vez mais, condiz com a natureza improvisadora do jazz. Alguns episódios nem sequer têm origem em fatos: essas cenas inteiramente inventadas podem ser vistas como composições originais (embora às vezes contenham citações de palavras dos músicos envolvidos). Durante algum tempo pensei se deveria indicar quando, neste livro, pus na boca de alguém alguma coisa que de fato foi dita na vida real. Por fim, com base no mesmo princípio que norteou todas as demais decisões neste livro, preferi não fazê-lo. É frequente que os músicos de jazz façam citações de outros em seus solos: o fato de o ouvinte percebê-las vai depender de conhecer a música ou não. O mesmo acontece aqui. Como regra, o leitor deve partir do seguinte princípio: o que aparece aqui foi inventado ou alterado, e não citado. O tempo todo, meu objetivo foi apresentar os músicos não como eram, mas como me parecem ter sido. Naturalmente, muitas vezes a distância entre essas duas ambições é enorme. Assim, mesmo quando pareço descrever a atuação dos músicos, estou menos fazendo isso do que projetando de volta — para o momento da criação da música — a minha experiência de ouvi-la trinta anos depois. O posfácio retoma e expande alguns temas do corpo principal do texto num estilo mais formal de exposição e análise. Além disso, tece algumas considerações sobre o desenvolvimento do jazz em tempos mais recentes. Apesar de proporcionar um contexto no qual o corpo principal do texto pode ser visto, o posfácio o complementa, mas não é parte integrante dele. Uma nota sobre fotografias Às vezes as fotografias agem sobre nós de uma forma estranha e simples: ao primeiro olhar, vemos nelas coisas que, mais tarde, descobrimos que não existem. Ou, pelo contrário, quando as olhamos de novo notamos coisas que da primeira vez não vimos. Na fotografia que Milt Hinton fez de Ben Webster, Red Allen e Pee Wee Russell, por exemplo, pensei que o pé de Allen estivesse apoiado na cadeira à sua frente, que Russell estivesse dando uma tragada no cigarro, que... O fato de ela não ser como lembramos é um dos pontos fortes da fotografia de Hinton (ou, aliás, de qualquer outra), pois, embora ela mostre apenas um átimo infinitesimal da realidade, a duração percebida da imagem se estende por vários segundos, para aquém ou para além daquele instante congelado, de modo a incluir — ou assim nos parece — o que acabou de acontecer ou o que está prestes a acontecer: Ben puxando o chapéu para trás e assoando o nariz, Red estendendo a mão para pegar um cigarro com Pee Wee... * As pinturas a óleo deixam até a batalha da Grã-Bretanha ou a de Trafalgar estranhamente silenciosas. Já a fotografia pode ser tão sensível ao som quanto à luz. As boas fotografias existem para ser ouvidas, assim como para ser contempladas. Quanto melhor a fotografia, mais há o que ouvir. As melhores fotografias de jazz são aquelas saturadas com o som de seu tema. Na foto que Carol Reiff fez de Chet Baker tocando no Birdland, escutamos não só o som dos músicos comprimidos no pedaço que aparece do palco, como também as conversas ao fundo e o tilintar de cubos de gelo nos copos. Da mesma forma, na fotografia de Hinton, ouvimos o barulho que Ben faz ao virar as páginas do jornal, o roçagar do tecido quando Pee Wee cruza as pernas. Tivéssemos os meios de decifrá-las, não poderíamos ir ainda mais longe e usar fotos como essa para ouvir o que estava sendo dito? Ou até, uma vez que as melhores fotos parecem estender-se para além do momento que mostram, o que há pouco foi dito, o que será dito em seguida... Os produtores de importantes obras de arte não são semideuses, mas seres humanos falíveis, muitas vezes com personalidade neurótica e lesionada. Theodor Adorno Só escutamos a nós mesmo Ernst Bloch TODO AQUELE JAZZ “Não como eram, mas como me parecem ter sido...” Nos dois lados da estrada, os campos estavam tão escuros quanto o céu noturno. A região era tão plana que, se alguém a olhasse do alto de um celeiro, avistaria os faróis de um carro como estrelas no horizonte, aproximando-se durante uma hora antes que as lanternas traseiras, rubras, virassem devagar, como um espectro, em direção ao leste. O único som que se ouvia era o ronco contínuo do carro. A escuridão era tão uniforme que o motorista deu consigo pensando que não existia estrada alguma até que os faróis ceifaram um caminho no trigal que se contorcia, teso, no facho luminoso. O carro era como um trator de neve, empurrando a escuridão para os lados, abrindo um caminho de luz... Sentindo os pensamentos devanearem e as pálpebras ficarem pesadas, ele piscou com força e esfregou a mão numa perna para permanecer acordado. Mantinha uma velocidade constante de oitenta quilômetros por hora, mas a paisagem era tão ampla e monótona que o carro mal parecia se mover, como se fosse uma nave espacial avançando lentamente rumo à Lua... Seus pensamentos vaguearam de novo, como num sonho, e ele achou que talvez pudesse arriscar-se a fechar os olhos por um simples segundo prazeroso... De repente, o estrondo da estrada e o frio da noite encheram o carro e ele se sobressaltou ao perceber que estivera a um triz de dormir. Daí a segundos um vento frio como cascalho tomou conta do carro. — Ei, Duke, feche a janela, meu sono passou — disse o motorista, lançando um olhar ao homem que estava no banco do passageiro. — Tem certeza de que está bem, Harry? — Estou, estou... Duke odiava o frio tanto quanto ele, e bastou essa garantia para que levantasse o vidro da janela. Com a mesma rapidez com que esfriara, o carro começou a esquentar de novo. O calor seco que se desfrutava num carro com as janelas fechadas era o tipo de aquecimento que ele mais apreciava no mundo. Duke

Description:
“Todo aquele jazz” é uma história de destruição. Chet Baker e seu rosto arruinado ainda jovem, Art Pepper e seus desvarios na cadeia, Lester Young viciado em qualquer droga a seu alcance, Thelonious Monk paralisado pela doença mental.O autor inglês Geoff Dyer rompe a dist
See more

The list of books you might like

Most books are stored in the elastic cloud where traffic is expensive. For this reason, we have a limit on daily download.