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Homens e caranguejos: ( PDF

88 Pages·1967·18.324 MB·Portuguese
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JOSÜÉ DE CASTRO HOMENS E capa de );f' t I CARANGUEJOS nDE HELLMEISTER (Romance) revisão ortográficl 1··. . BEATRIZ MENDES DE ALMEIDA . Íi �� r l I E D I T ô R A B R A S I L I E N S E S. A. EDITÔRA BRASILIENSE SOC. AN. Rua Barão de Itapetininga, 93 12.0 São Paulo - Brasil São Paulo - 1967 -- . '" "·C'"i -i'-A-· '-'M .A..D...A..(...).._.U.....�_..� .). ·.·..;� :_5C-;I·;,_:;· ·-­ ' '{ o ·(�-;�·-:.}:-.� ..:y;'.••"j"•• (.' •.h: · •·.·.·.·.· ...................... Ex -- �----/ 4�;·.-y·;_;--r;;.:-;;···· .l . /) .i\; <' "M :'"•O·J !BI CE L.... ·:?.-..�..: ,��g:-.�T.:f.ç�.:.��-:1. �..·.:.?.. ..... . . i>:·-�c a.ta L.ht2. ............ . ....... .. . C 0 --�rr:D:: .t.i:�:.. <?BRA.S_ ... iO "O que significa a literatura num mundo que sofre fome? Como a ,..,o ..1 �.� .:...c -..0p.. o,-V..,.fl:� .m:?f.. �_"o .�".'..Lo --""""."'P l..o -.-GEO�f.õ ::1.'. . ·.z�...ii ...T..·.;: .2-.. .. ...A.i DA AFOUMTE OR ddmoior irgalialr,d oaa ldtiotaed roagstr uarena d sene er mcelaisdisooitr aiap oser- r tuoddnoioivs�e ."rb saillh. õeOs edsec riftaomr idnetvoJesE , A-Np-o-PissAe, U sLqe u SicsoAelRro TRcasEer ' Io.a edição - 1967. GEOPOLíTICA DA FOME - 2 vols. "Sabes que passarão séculos e a humanidade proclamará pela bôca P edição - 1966. do seu saber e de sua ciência que não existe o crime e em conseqüência tão pouco o pecado, que só existe a fome." DOCUMENTÁRIO DO NORDESTE 3.a edição - 1966. FmooR DosTOYEWSKJ ENSAIOS DE GEOGRAFIA HUMANA 4.a edição - 1966. "Em cada parada me esperava uma fome; diante de cada fonte me esperava uma- sêle." ENSAIOS DE BIOLOGIA SOCIAL ANDRÉ GIDE 3.a edição - 1966. O LIVRO NEGRO DA FOME "O ventre é a base sólida: o pão, o vinho e a carne devem preceder 2.a edição - 1966. a tudo, pois, só com pão, vinho e carne pode-se criar Deus." NIKOS KAZANTZAKJ SETE PALMOS DE TERRA E UM CAIXÃO 2.a edição - 1967. íNDICE Prefácio . ....... .......... ...... . .. . ... .. . ...... , . . . .. .. . . . . . 11 I - De como o corpo e a alma de João se foram impregnando do suco dos caranguejos . .. . .. . .. . . . . . . . . . . . .. . .. . .. . . . 27 II De como aparecem aos olhos de João Paulo os cavaleiros da miséria com suas estranhas armaduras de barro . . . . . . . . . . 3!5 III - Da estranha maneira do Padre Aristides fabricar tempestades para pegar guaiamu. Dos ingredientes utilizados e das conse- qüências . ........ . . ... . ... . . . . . . . . .. . . . ... . . . . · . .. .. . . 49 . . IV - De como o chão fugiu debaixo do pés dos milionários da borracha ..... . . ... . ... . . ... . . . ........... . . . .... ,. . . . .. 59 V De como Zé Luiz falou com Deus sem antes se be�zer . .. . 71 VI De como a fome fêz de Zé Luiz, honrado vaqueiro do sertão, um reles ladrão de queijo .. . .. .. .. . . .. . .. .. . . . .. . .. . . . 79 VII De como seu Manecada quase se desfez na diarréia da fome 89 VIII De como os moradores da aldeia teimosa construíram na marra a sua cidade . . . .. .. . . .. .. . . .. . .. . .. .. . . . . . .. . . . 97 IX - De como João Paulo ficou conhecendo melhor os seus vizi- nhos através do espelhinho de Cosme . .. . . .. .. .. . .. . . . . . 109 X De como as águas cresceram por sôbre o ventre da terra 123 XI De como as águas da cheia baixando, arrastaram' com ela a fôrça de viver dos habitantes do Mangue . .. . . . . .. .. . . . 145 XII De como vive a gente do Nordeste vivendo e aprendendo 157 XIII De como João Paulo, ouvindo a tempestade dos homens virou caranguejo .. .. . . . . . . . .. . . . . .. . . . . . . . . .. . .. . . . .. . .. .. . . 165 Biografia do autor . . . . . . .......... . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . ...... · 179 \ r '- TANTO PREFACIO UM GORDO PARA UM ROMANCE UM TANTO MAGRO Nas terras pobres e famintas do Nordeste brasi­ leiro, onde nasci, hábito servir-se um pedacinho de é carne sêca com um prato bem cheio de farofa. O suficiente de carne - quase um nada -para dar gôsto e cheiro tôda uma montanha de farofa feita de fa­ a rinha de mandioca, escaldada com sal. Foi, talvez, por fôrça dêste velho hábito da minha terra, que resolvi servir ao leitor dêste livro, muita farofa com pouca carne. Sentindo que a história que vou contar uma his­ é tória magra, sêca, com pouca carne de romance, resol­ vi servi-la cóm uma introdução explicativa que engor­ dasse um pouco livro e pudesse, talvez, enganar a o fome do leitor - a sua insaciável fome de romance. Foi, no fundo, como uma espécie de sublimação dêste complexo de um povo inteiro de famintos, sempre pre­ ocupado em esconder ou, pelo menos, em disfarçar a sua fome eterna, que acabei fazendo uma copiosa in- . tradução a êste magro romance que tem, como perso­ nagem central, o drama da fome. Assim, por fôrça das circunstâncias, encontrará o leitor, neste livro, muita I; explicação e pouco romance. Pouco, mas o suficiente para dar ao livro o gôsto e o cheiro fortes do drama da �orne qu� no fundo, a carne desta obra. é, · ' t f I 12 JOSU:Jt DE CASTRO HOM.ENS. E' CARANGUEJO S 13 f Mas, será mesmo êste livro um romance� Ou nito dos com os caranguejos, seus irmãos, com as ·snãs duras será mais um livro de memórias� Talvez, sob certos carapaças também enlambuzadas de lama. . aspectos, uma autobiografia� ·cedo me dei conta dêste ·estranho mimetismo: os l .. Não sei, Tudo o que eu sei é que, neste livro, se homens se assemelhando, em tudo, aos caranguejos, l· conta a história de uma vida diante do espetáculo mul­ arrastando-se, agachando-se como os caranguejo� para tiforme çla vid�.. A história· da· vida de um menino poderem sobreviver. Parados como Of? carangueJOS na pobre abrindo os olhos para o espetácuio do mundo beira d'água ou caminhando para trás como caminham numa paisagem que é, tôda ela, um braço de mar- u� os ca,ranguejos. longo braço de um mar de misérias. porisso que os habitantes dos mangues, depois É · O tema dêste livro é a história da descoberta que de ter�m um aia saltado para dentro da vida, nesta la­ :·d a fome fiz nos meus anos de infância, nos alagados da ma pegajosa dos mangue�, dific�lmente conseguiram cidade do Recife, onde convivi com os afogados dêste sair do ciclo do carangueJo, a nao ser-saltando para mar de miséria. Procuro mostrar neste livro de ficção 11 morte e, assim, se afundando para sempre dentro da que não foi na Sorhonne nem em qualquer outra uni­ lama. versidade sábia que travei conhecimento com o fenô­ A impressão que eu tinha, era ql:ie os habitantes meno da fome. O fenômeno se revelou expontânea­ os mangues - homens e caranguejos na�cidos à beira d mente .a meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos do rio - a medida que iam cresc�ndo, Iam cada v�z bairros miseráveis da cidade do Recife: Afogados, Pi­ atolando mais na lama. Parecia que a vegetaçao se n�, Santo Amaro, Ilha do Leite.· Esta é que foi a densa dos mangues, com seus troncos retorcidos, com -minha Sorbonne: a lama dos mangues do Recife fer­ o emaranhado de seus galhos rugosos e com a dens.a vilhando de caranguejos e povoada de sêres hu�anos rêde de suas raízes perfurantes os tinha agarrado defi­ :feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo co­ nitivamente' como um polvo, enfiando tentáculos in­ mo caranguejo. Sêres anfíbios - habitantes da terra· visíveis por dentro de sua carne, por todos os ?uracos . e· da água, meio homens e meio bichos. Alimentados de SUa pele: pelos olhos, pela boca., pelos OUVIdOS . :lnaam ain. fâSnêcrieas choumm ac:n,aolsd oq udee s..ec afraaznigaume jaos:s iêmst eir mleãitoes ddee agar. Era ' daosss ipme lafisc avveanmto staosd ocos mêl eass, qaufoagi. sa dooss m naon mguaensg um. e-, leite dos caranguejos. Que aprendiam a engatinhar e saciáveis lhe sugavam todo o suco da sua carne e da -a andar com os caranguejos da lama e que depois de sua alma de escravos. Com uma fôrça estranha, os terem bebido na infância êste leite de lama, de se te­ mangues iam, assim, se apoderando da v�d�. de tôda rem enlambuzado com o caldo grosso da lama dos man� aquela gente numa posse lenta, tenaz, defimhva. Es,. gues e de se terem ímpregnado do seu cheiro de tas estranha� plantas que, em eras geológicas passadas, terra podre e de maresia, nunca mais se podiam li­ se tinham apoderado de tôda essa área de terra - esta bertar desta crosta de lama que os. tornava tão pareci- fossa pantanosa onde hoje assenta a cidade do Re- 14 JOSUl!: DE CASTRO HOMEN.S E CARANGUEJOS 15 cife - estendia agora sua posse também aos seus habi­ ma do labirinto dé raízes dos mangues e debaixo· das tantes. E tudo nesta região passava a pertencer ao suas copadas sombras verdes, foi progressivamente su- '-'--' mangue conquistador e dominador: tanto a terra como bindo o nível do solo, e alargando sua área sob a pro­ o homem. teção dêsse denso engradado vegetal. Não há, pois, a . Na ver�ade, foram os mangues os primeiros con­ menor dúvida, que tôda esta terra que hoje flutua à tqem, ostsa sdeourse sc n�easdtoar teesr. r�T. o,..F dao reasmta inva essmtao p, elamn ígcriea nindue npdaár-­ fcrloiar çdãoa sd áogs umasa,n gnuae bs.a ía entulhada do Recife foi uma . vfo�rl,� feo:nrm taemdap odse I. diolhsa us,m pa egnrínansudlea sf, osaslaa,g audmoas bea' ípaa eúms, por Oêsst ems atnrgauziesd ovsi efroarmam co mos oms rainogsu, ee sc olmab oors imosaatmereinaties s�mi-circulo, cercada por uma cinta de colinas. Nela construindo seu próprio solo, batEmdo-se em luta cons­ radVIaO �tmiesdr oerg narat a uandlrdheresaaasnn gdcr�awoad sara , -fdaotesro saoa vOu·c étaorspm ai�sb amaá rar�ietbueaerrs i aeadl ihiossa taB aldnueebtvseeissora niseba ecit so- �l· izcniofadmosa­, hotsaacon ujeetp e ap cçcroãoornogt tarered,a saa s ooipv mcaoomran rtei.a núnttVoem ,ic eeoerrmsaotma so ibcmmroaamerçno,'Os seas d edbi ffa'iáôicgxsasuaredaam amd t,ao rslsoui lpvreaiinooscns id oaee­l · na e�xurrada de suas águas. Pouco a pouco, rforam densamente povoada de homens e caranguejos, · seus surgmdo, dentro da baía marinha, pequenas coroas lo­ habitantes e seu adoradores. dosas, . f?rJ?�das at.ravés da pr�cipitação e deposição Tendo os mangues realizado esta obra ciclópica, dos materiais trazidos pelos rws. E foi sôbre êstes não admira que, hoje, sejam êles divinizados pelos ha­ - bancos de ·solo ainda mal consolidados mistura in­ bitantes desta área, embora não saibam os homens ex­ certa de terra e água, que se apressara� a proliferar plicar como o mangue realiza êste milagre de criar os mangues - esta estranha vegetação capaz de viver terra como se fôsse um deus. Mas os homens veem, dentro da água salgada, numa terra frouxa, constan­ até hoje, crescerem diante de seus olhos, as coroas lo­ !emente alagada. Agar. rando-se com unhas e dentes a dosas, e transformarem-se, pela fôrça construtora dos este solo para sobreviver, através de um sistema de mangues, em ilhas verdejantes, fervilhantes de vida. r�ízes que são como garras fincadas profunda ente no E veem, assombrados, proliferarem em tôrno das ilhas m lodo e �mparando-se, umas nas outras, para resisti­ maiores, outras pequeninas, como saídas durante a rem ao 1mpeto d�s correntezas da maré e ao sôpro for­ noite de seu próprio ventre, em misteriosos partos da te dos ventos ahseos que arrepia sua cabeleira verde, terra que o mangue milagrosamente ajuda. os, mangues foram pouco a pouco entrelaçando suas Nasci na cidade do Recife, que é sob certos aspec­ raizes e seus braços numa amorosa promiscuidade e tos a Hong-Kong da América, com a sua miséria foram, assim, consolidando a sua vida e a vida do s�lo acumulada, empastada neste grupo de ilhas: que flu­ frouxo das coroas de lôdo, donde brotaram. Com os tuam, sonolentas, entre os braços dos dois rios: o Oa'­ depósitos aluvionais que se foram acumulando na tra- pibaribe e o-, Beberibe. 16. · · · J.OS·u� .. PE· CAS·T·R.·Q: · ·: HOMENS E CARANGUEJOS 17 .. : : A.:.-prini-eira-sóçiedade com que travei conhecimento: em diante, mergulhar nas águas do mangue torno ­ foi a :so:ciedade.-dos caranguejos; Depois,· a. dos ·homens. .se um hábito. Mudei-me depois para outro bai!r ro ma�is habitantes dos.mangu.es,drmãos de .leite:· dos carangl1e­ � jos;. S.ó muito depois é que vim a conhecer a outra so­ perto do rio. Fomos morar na Madal na, numa :elha cied-ade; fui levado a reservar, até hoje,-a ·ma.íor par� casa colonial de um só andar, com sms grandes Jane­ las ele frente. Casa grande, acachapada com sua pe­ dizer com. tôdá a 'franqueza . que, de tudo. o· que vi e aprendi na vida, observando êstes v�rios tipos de.so� sada massa arquitetônica, montada como uma forta­ cceielad a-ddee , mfiunih lae vtaedrno u.ar ar epsearrvaa ar, saotcéü �hdoajdee, ad oms amioarn gpuaers­ " lceazraa negmue jsoesu esm atletmosp ob daete cnhteeisa, aptéo ra ? otnerdrea çsou ebniatrm�n doos -a sociedade dos caranguejos e a dos homens, seus mesmo até dentro das salas. Nas epocas de cheia, a irmãos de leite, ambos filhos da.lama. casa virava uma arca de No é, e todo o sítio virava É a história da sociedade dêsses seres anfíbios um mar. Quando as águas baixavam, uma lama pretAa ficava recobrindo, durante dias, tôda a paisagem. que· eu conto neste livro·. Desta sociedaqduee·e;c ·on ô.:: frente da casa era voltada para o rio porque fôra ela mieamente, també·mé : anfíb.i paoi,s. q1:Je vegeta ·nas construída nos velhos tempos em . que todo o trans­ margens· ou· bordas de duas estruturas econômicas·.que porte da cidade se fazia em botes e barcaças, os h�­ ·!1a hesitsrtóurtiuar aa taég hráorjiea nfãeóu dcaols teu rao ue sritruumtu mrae scmaop ittaelciisdtoa:. mtóernioss ddoe csoombréerccaios adcoa apçrúectaar ei ncdarot oplaar, ac oo�s sneeugs reossc rdie­ Estruturas que persistem no Nordeste do Brasil, lado torso nu remando pelo Capibaribe acima. O sítio a lado sem se fundirew, sem se -integrarem até hoje era cheio de árvores e bichos. Mangueiras e sapoti­ num mesmo· tipo. de civilização. seiros que davam frutos maravilhosos. Maravilhosos A sociedade· dos mangueés· umsao ciedade·impren­ eram também ' os frutos de outras árvores que não ' sada entre estas duas· estruturas esmagantes. · É uma existiam no nosso sítio, mas que nêle apareci. am es- sociedade ·quec,o mprinidi·pae ladsu as outraessc,or re palhados pelo chão. Eram frutos colhidos durante a eomo uma lama sociàl na. cuba dos alagados· do Recife, noite ' nos. sítios dos vizinhos, pelos morcegos que os misturai1do-se com o caldo grosso da lama dos-mangues. deixavam cair dos s. eus braços, nos seus voA os apres- Nasci mima rua que tinha o nomei lustre de J oa­ sados.· Eram goiabas, jambos e araçás, todos meio quini NabuQq,· o graride'abolicio:riista ·:ctos escravos� nos roídos mas que eu saboreava com gôsto no.s meus tempos do Irripérió". A. casa em . que ·:nasci. tiilha ·ao passei�s matinais pelo sítio, parasitando, assim, o tra­ lado um grande viveiro. . de pei�es� .de caranguejos e balho noturno dos morcegos, meus sócios circunstan- · de siris. Se. não nasci mesmo dentro do ·viveiro, como ciais. ·Havia também no sítio vacas, cavalos, car­ os carangttejos, já comd ois anôs estava dentro dêle. neiros e cabras, que durante as épocas de cheia eram Escorreguei um dia no barro de suas margens e fui amontoados no terraço da casa. E pássaros de tôda retirado de dentro de ·suas águas meioa fogado. Daí espécie cantando em grandes gaiolas penduradas por HOMENS E CARANGUEJOS 18 JOSU:e DE CASTRO 19 tôda parte. Meu pai tinha trazido para me entrou muito mais pelos olhos do que pelos ouvidos. a o Recife tôda paisagem viva da sua terra, com os seus bichos, Entrou-me por dentro dos meus olhos ávidos de cri­ a com os seus pássaros. Dentro do sítio, eu respirava ança sob a forma destas imagens que estavam longe de uma paisagem transplantada do sertão distante e em serem sempre claras e risonhas. frente à casa eu contemplava a paisagem da costa - a Foram com estas sombrias imagens dos mangues paisagem negra do mangue. da lama que comecei a criar o mundo da minha in­ e Bem ao lado da casa começava zona compacta fância. Nada eu via que não me provocasse a sensação a dos mocambos, das choças de palha e de barro, amon­ de uma verdadeira descoberta. Foi assim iii.Ue eu vi . toadas umas por c1ma das outras num enovelado de e senti formigar dentro de mim, a terrível descoberta ruelas, numa anarquia desesperadora. As casas entran­ da fome. Da fome de uma população inteira escravi­ do por dentro da maré, a maré invadindo as casas. Os zada à angustia de encontrar o que comer. Vi os ca­ braços do rio passando pelo meio da rua e a lama en­ ranguejos espumando de fome à beira da água, à es­ volvendo tudo. pera que a correnteza lhes trouxesse ·um pouco de Criei-me nos mangues lamacentos Capibaribe comida, um peixe morto, uma casca de fruta, um pe­ do cujas águas fluindo diante dos meus olhos ávidos de daço de bosta que êles arrastariam para o sêco para criança, pareciam estar sempre a me contar uma longa matar a sua fome. E ví, também, os homens sentados história. O romance das longas aventuras de suas na balaustrada do velho cais a murmurarem monos­ águas descendo pelas diferentes regiões do Nordeste : sílabos, com um talo de capim enfiado na boca, chu­ pelas terras cinzentas do sertão sêco, onde nasceu meu pando o suco verde do capim e deixando escorrer pelo pai e de onde emigrou na sêca de com tôda a famí­ canto da boca uma saliva esverdeada que me parecia 77 lia, e pelas terras verdes dos canaviais da zona da ter a mesma origem da espuma dos caranguejos : era a mata, onde nasceu minha mãe, filha de senhor de en­ baba da fome. Pouco a pouco por sua obsessiva presen­ genho. Esta era a história que me sussurrava o rio ça êste vago desenho da fome foi ganhando relêvo, foi com a linguagem doce de suas águas passando assus­ tomando forma e sentido em meu espírito. Fui com­ tadas pelo mar de cinza do sertão, caudalosas pelo mar preendendo que tôda a vida dessa gente girava sem­ verde dos canaviais infindáveis e remançosas pelo pre em torno de uma só obsessão - a angústia da mar de lama dos mangues, até cair nos braços do mar fome. Sua própria linguagem era uma linguagem que de mar. Eu ficava horas e horas imóvel sentado no quase não fazia alusão à outra coisa. A sua gíria era cais, ouvindo a história do rio, fitando as suas águas sempre carregada de palavras evocando comidas. As correrem como se fôsse uma fita de cinema. comidas que desejavam com desenfreado apetite. A Foi o rio, o meu primeiro professor de história do propósito de tudo se dizia: é uma sopa, é uma canja, Nordeste, da história desta terra quase sem história. é um tomate, é uma ova, é um abacaxi, é uma batata, A verdade é que a história dos homens do Nordeste é pão-pão, é queijo-queijo. Era como se esta gíria � ''' . . . . )." HOMENS E CARANGUEJOS 21 20 JOSU:É DE CASTRO fôsse uma espécie de compensação mental de um povo Mesmo quando ia me distrair, assistindo aos can: sempre faminto. De um povo inteiro de barriga vazia tadores de feira ou ao espetáculo do Bumba-meu-b01 mas com a ·cabeça cheia de comidas imaginárias. É - auto popular representado na zona dos mocambos que a comida lhes havia subido à cabeça, como o sexo - o que encontrava diante de mim representando, fa- sobe a cabeça dos impotentes, êstes famintos de amor. lando, gesticulando, era sempre. a fome em seus nume­ rosos disfarces. Eram os vwle1ros cantando : Esta presença constante da fome sempre fôra a grande fôrça modeladora do comportamento moral de o diabo de luto É todos os homens desta comunidade : dos seus valôres no ano que -no sertão éticos, das suas esperanças e dos seus sentimentos do­ se finda o mês de Janeiro minantes. Vê-los agir, falar, lutar, sofrer, :viver e mor­ e ninguém ouve o trovão rer, era ver a própria fome modelando com suas des­ o sertanejo não tira póticas mãos de ferro, os heróis do maior drama da o olho do ma tulão humanidade - o drama da fome. Foi o que viram, assustados e sem compreender E diz à mulher bem todo o drama, os meus olhos de criança. Pensei, prepara o balaio a princípio, que a fome era um triste privilégio desta amanhã eu saio área onde eu vivia, - a área dos mangues. Depois se o bom Deus quizer verifiquei que no cenário da fome do Nordeste, os man­ arrume o que houver gues eram uma verdadeira terra da promissão que bote em um caixão atraía ós homens vindos de outras áreas de mais fome encoste o pilão ainda. Da área das sêcas e da área da monocultura onde êle não caia da cana de açúcar, onde a indústria açucareira, esma­ arremende a saia gav a, com a mesma indiferença; a cana e o homem re­ bata o cabeção duzindo tudo a bagaço. Era um curso inteiro que eu fazia sôbre a fome, Se meu padrim padre Cícero quando ouvia, com __p m interêsse sempre crescente, as quizer me favorecer intermináveis histórias contadas por meu pai sôbre as eu garanto que amanhã agruras sofridas pela nossa família, na sêca de 1877. quando o sol-aparecer Da presença da fome na zona do açúcar tomei conheci­ nós já sabemos da terra mento mais detalhado, através ·do relato monótono de onde ache o que comer1 dois velhos negros que tinham sido escravos na juven­ época, qtuudaen teo qsueer rdaevsafmil agvraamm as upasa rlae mosb rcaanvçaalso sd ad e meu peani­. (1) Versos de João Martins de Athayde - "O Retirante". 22 JOSU11: DE CASTRO HOMENS E CARANGUEJOS 23 . E no Bumba-meu-boi, o que eu via era um es­ Eu fui ver lá na mão tranho boi de duas pernas apenas, o mais humano dos Eh! Bumbal bois que eu tinha encontrado na vida, sofrendo como Não achei nada não um homem, chorando e se revoltando como gente; E h! B mba! me tomava de amores por aquele boi magro sêco, E u eu e magro e, tão sêco que, na verdade, era só cabeça e tão cabeça era só chifres. Enormes chifres balançando Eu fui ver nas costelas na no ar como um fantasma de boi. Realmente o boi era Eh! Bumba! só chifres e pele, porque carne mesmo êle não tinha, co­ Não achei nada nelas mo em sua cantoria o vaqueiro, que palpando afirmava Eh! Bumbal boi por tôda parte nunca encontrava em parte algu­ o ma sinal de carne : Eu fui ver no vazio fui ver na cabeça Eh! Bumbal "Eu Eh! Bumba! Achei o boi bem esguio · .Achei ela bem lêta Ehl Bumbal Eh! Bumbal Eu fui ver no chambari Eu fui lá na ponta Ehl Bumbal. Ehl Bumbal Não achei nada ali Ela mim não fêz conta de Ehl Bumbal Eh! Bumbal Eu fui ver o cocotó Eu fui ver no pescoço Eh! Bumba! Eh! Bumba! Andei ao redor Achei êle bem torto bem Eh! Bumbal Eht Bumba! Eu fui ver nas apá Eu fui ver rabada na Eh! Bumba! Ehl Bumba! Não achei nada lá Não achei ali nada Eh! Bumbal Bumbat Eh!

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