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VOZES DO GOLPE - A Revolução dos Caranguejos PDF

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VOZES DO GOLPE A Revolução dos Caranguejos CARLOS HEITOR CONY Copyright © 2004 by Carlos Heitor Cony PROJETO GRÁFICO E CAPA Raul Loureiro FOTO DE CAPA Acervo Iconographia REVISÃO Isabel Jorge Cury e Renato Potenza Rodrigues Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Cony, Carlos Heitor A Revolução dos Caranguejos / Carlos Heitor Cony. — São Paulo : Companhia das Letras, 2004. ISBN 85-359-0475-1 (obra completa) ISBN 85-359-0474-3 1. Brasil - História - Revolução de 1964 2. Memórias autobiográficas 1. Título. 04-0975 CDD-981.08 índice para catálogo sistemático: 1. Golpe militar de 1964 : Brasil: História : Memórias autobiográficas 981.08 i- Memórias autobiográficas : Golpe militar de 1964 : Brasil: História 981.08 [2OO4] Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Bandeira Paulista 702 cj. 32 04532- 002 — São Paulo — SP Telefone (11) 3707-3500 Fax (11) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.br MEMÓRIA No dia 1o de abril de 1964, depois de um passeio com Drummond por Copacabana, Carlos Heitor Cony escreveria sua primeira — e ácida — crônica sobre o golpe. Aqui, ele rememora os textos escritos naquele ano e as perseguições que sofreu — tanto da ditadura como de setores da esquerda. Nos começos de 1964, instalara-se radicalmente (e simploriamente) no cenário nacional a mesma divisão esquemática que cindira a Convenção francesa, quase dois séculos antes. Fora da dicotomia esquerda-direita — que transformava o debate político e cultural numa espécie de partida de futebol em que a maioria torce e alguns poucos jogam, qualquer outro tipo de assunto era tido como conversa para boi dormir — hipérbole rural, gostosamente bucólica, que caía em desuso, substituída pela divisão mais atualizada entre alienados e engajados — por sinal, outro galicismo que tardiamente se incorporava na linguagem da época. Aproveitando o recesso parlamentar, e criando uma pressão incontrolável sobre a sessão legislativa de 1964 que se inauguraria dias depois, foi marcado o comício-monstro para 13 de março, na praça da República, diante da Central do Brasil, zona de grande concentração popular, sobretudo na hora do rush. E no coração mesmo da Cidade-Estado 7 da Guanabara, que tinha Carlos Lacerda como governador e prefeito ad hoc, por acaso ou de propósito, o mais violento e letal adversário de Jango e de seu programa de reformas. Lacerda tentou várias manobras que impedissem o comício na hora de maior movimento do tráfego. Uma delas revelou-se contraproducente: decretou feriado estadual naquele dia, pretendendo evitar que a massa de trabalhadores e funcionários viesse para a cidade. Ao lado da Central do Brasil situava-se o então Ministério da Guerra — que não era exatamente um terminal ferroviário mas funcionava como uma central mais importante, início e fim de muitas viagens pelos acidentados trilhos institucionais. Prevaleceu o mais forte da ocasião, o governo federal, e as lideranças sindicais conseguiram reunir uma multidão que os situacionistas calcularam em trezentas mil pessoas e os oposicionistas em apenas cinqüenta mil, ficando a diferença por conta dos ânimos que soem ser exaltados inclusive quando se trata de simples detalhe numérico. 8 Em Ipanema, na rua Nascimento Silva, um general quase desconhecido perdeu o sono depois de ouvir pelo rádio os discursos daquele comício. Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, o general Humberto de Alencar Castelo Branco acompanhava os movimentos políticos da época, mas o fazia com a cautela que um de seus amigos, o coronel Vernon A. Walters, adido militar da Embaixada dos Estados Unidos, considerava "digna de um membro de estado-maior". Alguns militares, mais interessados na deposição de João Goulart, achavam que tanta cautela era apenas a clássica posição de ficar em cima do muro para ver no que iam dar as coisas. De qualquer forma, Castelo era um militar inteligente e, para os padrões de sua profissão, culto e cultivado. Após ouvir os principais discursos do comício, começou a esboçar um texto que seria transformado, em 20 de março, em Instrução reservada dirigida aos Exmos. Srs. Generais e demais militares do Estado-Maior do Exército 9 e das organizações subordinadas. Não era, ainda, um apelo ao rompimento definitivo das Forças Armadas com o governo. Mas era um sintoma que tinha, entre outros destaques, o de justificar, na prática, o adjetivo encontradiço em pronunciamentos desse tipo: indormidos. Indormido, Castelo Branco gastou parte de sua noite na redação do documento, que é sucinto, bem exposto e, como diria o general Mourão Filho em seu diário, "não chovia nem molhava". No Palácio Laranjeiras, João Goulart chegou esbodegado pelo cansaço e pelas emoções do comício. Vestiu o pijama e declarou à sua mulher: "Estou pregado!". E dormiu. Como ele, a maioria do povo brasileiro também foi dormir, menos alguns militares e paisanos que havia meses conspiravam para depô-lo. O fim de março se aproximava. A última semana do mês seria de recesso: a Páscoa cairia no dia 29. A partir do dia 25, quarta-feira santa, o país na certa pararia — e a crise também. 10 O santificado hiato faria bem a todos. Membros do próprio governo, como Jango e Abelardo Jurema, ministro da Justiça, partiriam para descansar em fazendas de amigos. Diversos dispositivos militares estavam em alerta para desfechar um movimento, alguns contra, outros a favor do governo. Estes, porém, limitavam-se a uma ficção na qual toda a esquerda acreditava. De Juiz de Fora, em companhia de sua mulher, o general Olympio Mourão Filho, comandante do Quarto Exército, foi visitar igrejas em Ouro Preto. O governador Magalhães Pinto, de Minas Gerais, mais esperto do que o general, costurava a conspiração golpista, afinal todos os dias são santos, dias do Senhor, e ele não iria parar por causa de uma semana santificada ou não. Lacerda fora informado de uma agitação na Marinha, mas parecia assunto menor, marinheiros que desejavam vestir-se à paisana quando não estivessem em serviço. Na Barra da Tijuca, uma equipe dirigida por Glauber Rocha tomava as últimas cenas de Deus e o Diabo na Terra do Sol— mar 11 virando sertão, sertão virando mar. Brigitte Bardot passeava pelas praias de Búzios. Com uma crise de apendicite — e aqui começo a falar mais do meu umbigo do que do golpe militar — internei-me no Hospital Evangélico, na Tijuca, sendo operado pelo meu primo Nelson e pelo meu irmão José, na véspera do meu trigésimo oitavo aniversário. Avisara à redação do Correio da Manhã que ficaria uns dias de molho. Os grupinhos de jovens, que começavam a assumir uma outra espécie de poder, ouviam o mais espantoso fenômeno musical da época: os Beatles, uns rapazes de Liverpool que, agrupados num conjunto de rock, cantavam A HardDay's Night. Foi a última música que ouvi, no rádio do carro que me levava para o hospital da rua Bom Pastor. Começava a noite de um dia muito difícil. *** Duas semanas depois, já em casa, na rua Raul Pompéia, em Copacabana, recebi 12 o telefonema de Carlos Drummond de Andrade, meu vizinho, que morava na rua Conselheiro Lafayette. Trabalhávamos no mesmo jornal, ele escrevendo a crônica do primeiro caderno, sob as iniciais CDA, e eu a do segundo caderno, sob o título genérico de "Da arte de falar mal". Drummond me telefonava sempre para saber de minha recuperação, e naquela tarde de 12 de abril, sabendo-me já restabelecido, convidou-me a sair com ele, para dar uma volta pelo Posto Seis. Segundo ouvira no rádio, tropas militares estariam invadindo o Forte de Copacabana, presumível reduto das forças dispostas a defender até a morte o governo de João Goulart. Aleguei que seria a primeira saída após a cirurgia, e que estava chuviscando. Drummond disse que levaria um guarda-chuva e que uma caminhada me faria bem. Cinco minutos depois, ele me esperava na portaria do edifício Renoir, com um guarda- chuva típico de mineiro precavido, quase do tamanho de uma barraca de praia. Considerando-me frágil, segurou 13 meu braço e fomos assuntar a história pátria que se fazia em nossos domínios. Pelo caminho, ele me contou que o Forte já fora tomado pelos rebeldes (tropas contrárias ao governo), que um general chamado Montanha dera um tapa no sentinela que tentara impedir sua entrada na zona militar. Entrevistado por um repórter da TV Rio, cuja sede era bem à frente da entrada principal do Forte, o general declarara que estava quieto em seu canto, mas ao ler o editorial do Correio da Manhã daquele dia, intitulado "Fora!", decidira apanhar seu sw 45 e ir à luta contra João Goulart e o bando de comunistas que estava no poder. Sabendo que eu pertencia à equipe de editorialistas do jornal, Drummond perguntou-me sobre a autoria daquele texto, bem mais contundente do que o da véspera, que tivera como título "Basta!". Mesmo não sendo mineiro como ele, respondi mineiramente. Os dois editoriais tinham sido, como acontece em todos os jornais, uma obra coletiva expressando a opinião do jornal. No primeiro ("Basta!"), 14

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