Eduardo Henrik Aubert (SELEÇÃO, TRADUÇÃO, INTRODUÇÃO E NOTAS) VIDAS DE DANTE Escritos Biográficos dos Séculos XIV e XV Sumário Apresentação A Vida de Dante entre a História da Biografia e a História Biográfica: Ensaio Introdutório Nota sobre a Tradução I. Carta de Frate Ilaro II. Giovanni Villani III. Francesco Petrarca IV. Giovanni Boccaccio V. Guglielmo Maramauro, ou Maramaldo VI. Antonio Pucci VII. Marchionne, ou Melchiorre Stefani VIII. Benvenuto de Ímola IX. Filippo Villani X. Franco Sacchetti XI. Francesco da Buti XII. Giovanni Sercambi XIII. Domenico Bandini XIV. Giovanni Bertoldi, ou Giovanni de Serravalle XV. Leonardo Bruni Apresentação Esta coletânea de textos tem sua origem em uma pesquisa de iniciação científica desenvolvida entre 2001 e 2003, no Departamento de História da Universidade de São Paulo, sob a orientação do professor Hilário Franco Júnior. Esse trabalho centrou-se, a princípio, na Comédia, e o estudo dos escritos biográficos reunidos neste volume apenas começou a se esboçar no fim do período mencionado, conforme se afirmava a perspectiva de que a Comédia não pode ser entendida isoladamente, como uma obra autossuficiente e autônoma. A própria noção de “obra” é traiçoeira e dá margem a grande equívoco, ao menos por duas razões. Em primeiro lugar, ela confere uma estabilidade e uma fixidez ao texto que, de um lado, apaga a temporalidade da escrita, e, de outro, camufla o peso das leituras e releituras que continuam a recriar o texto no processo de recepção. Em segundo lugar, a noção de “obra” remete a um produto realizado por um agente, estabelecendo assim um caminho de mão única, em que uma personalidade estabilizada e fixa – um indivíduo – produz uma obra, ela também estável e fechada. Parecia-nos necessário, assim, buscar caminhos analíticos que nos permitissem entrever os processos dinâmicos de estruturação da “obra” no tempo da vida de seu autor, vida que por sua vez foi em parte estruturada em torno de uma obra que, exatamente por essa razão, não deve ser compreendida como um conteúdo reificado, mas antes como um trabalho em movimento, como obra-fazer antes que como obra-coisa. Nesse contexto, as “antigas biografias” de Dante – na verdade, um corpus extremamente rico, que abarca gêneros tão distintos como o epitáfio, a crônica, a novella, o comentário e a vita – afiguram-se como fontes privilegiadas, já que permitem “abrir” a obra e o autor, isto é, entendê-los na temporalidade de seu fazimento. Fontes privilegiadas também porque essas narrativas da vida de Dante e de sua produção literária forneceram grande parte dos esquemas explicativos que o dantismo vem reproduzindo ao longo do tempo e que estão na base da compreensão e da crítica desse campo de estudos. Ao contribuírem para a abertura do texto, do autor e do próprio dantismo, as antigas biografias também se colocam, naturalmente, em posição de serem abertas, temporalizadas e entendidas como atos enunciativos particulares, revestidos de significação histórica própria. Essa perspectiva não equivale, contudo, a um relativismo absoluto, em que as antigas biografias perdem todo valor documental para o problema “Dante e sua obra”, podendo informar apenas sobre si mesmas? De modo algum. Em primeiro lugar, ao questionarmos sobre de que processos essa produção literária sobre Dante faz parte, sobre qual o seu papel na vida de cada autor e na sociedade em que eles viveram, somos levados a formular, comparativamente, as mesmas perguntas para o caso de Dante, que ganha uma série de contrapontos em situações históricas bastante próximas à sua própria. Ademais, se renunciamos também a reificar os termos da relação entre Dante, seu trabalho e a sociedade em que esses viveram, entendendo-os como produzidos na própria relação, somos levados a ver o envolvimento dos antigos biógrafos com Dante não como fruto de um interesse arbitrário, mas como continuidade – ou ruptura – do mesmo processo de estruturação social em que Dante esteve envolvido. Mais que como coisas, a Comédia e seu autor podem ser investigados assim como sucessão de atos e imbricamento de processos constitutivos de uma vasta teia de relações históricas que se estendem organicamente às antigas biografias. Esse corpus de escritos biográficos é mais ou menos longo, de acordo com os critérios adotados para defini-lo. Selecionamos aqui todos os textos que, de uma forma ou de outra, independentemente da extensão e da pretensão de exaustividade biográfica, trataram da vida de Dante, escritos até um século depois de sua morte. Trata-se de quinze textos, além de alguns anexos, originalmente escritos em latim e em italiano, que, em sua maior parte, permanecem inéditos em vernáculo contemporâneo. Em língua portuguesa, nenhum desses textos estava disponível, o que contrasta com o fato de que as obras completas de Dante estão traduzidas para o português, e a Comédia, especialmente, em múltiplas versões. A tradução dessas biografias visa, portanto, a preencher essa lacuna, disponibilizando aos leitores de Dante, experimentados ou iniciantes, uma série de textos que os convidam a historicizar sua leitura, não de maneira superficial, mas sim profunda, isto é, não a “situar” Dante ou seu trabalho em um tempo cronológico e abstrato, mas a buscar entender a temporalidade como a matéria constitutiva, primeira e definidora do texto e da vida. * Gostaríamos de registrar aqui nosso agradecimento àqueles que, ao longo da preparação deste trabalho, prestaram-nos auxílio de diversas maneiras. Em primeiro lugar, à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que nos concedeu uma bolsa de iniciação científica entre 2001 e 2003, e ao Professor Hilário Franco Júnior, que, desde o primeiro esboço de uma pesquisa sobre Dante até a preparação final deste volume, foi incondicional em seu apoio e imprescindível em suas sugestões e críticas. Concetta Zingales e Loredana Caprara foram fundamentais nos primeiros momentos do trabalho, e João Antônio Chelini contribuiu com sugestões para algumas passagens da tradução da biografia de Filippo Villani. Evidentemente, todos os equívocos que ainda subsistem são de nossa inteira responsabilidade. EDUARDO HENRIK AUBERT A Vida de Dante entre a História da Biografia e a História Biográfica: Ensaio Introdutório A classe é uma relação, e não uma coisa. […] A questão, é claro, é como o indivíduo acabou por assumir esse “papel social”, e como a organização social em questão […] acabou por estar aí. E essas são questões históricas. Se nós pararmos a história em um determinado ponto, então não há classes, mas apenas uma variedade de indivíduos com uma variedade de experiências. Porém, se nós observarmos esses homens ao longo de um período adequado de mudança social, nós observamos padrões em suas relações, suas ideias e suas instituições. A classe é definida pelos homens enquanto eles vivem sua própria história, e, no final das contas, essa é sua única definição. EDWARD PALMER THOMPSON1 A tentativa moderna de se compreender a vida de Dante Alighieri (1265- 1321) tem suas origens no Romantismo de fins do século XVIII, quando, pela primeira vez após séculos de desinteresse, há uma retomada da fascinação pela biografia de Dante. Como disse August Wilhelm Schlegel em 1791, contrapondo-se a toda a tradição acumulada nos séculos XVII e XVIII, para a qual o que contava era a obra, e não a pessoa de Dante, “se houvesse uma boa biografia de Dante, essa obra tornaria supérflua toda outra introdução à Divina Comédia”2. É, contudo, apenas a partir do fim do século XIX, e notadamente após o sexto centenário de nascimento de Dante, em 1865, no contexto do nacionalismo do Risorgimento e nos quadros do dantismo nascente, que produzia então seus primeiros institutos, revistas e cátedras universitárias, que esse interesse vai se desenvolver cientificamente, promovendo o recenseamento, a publicação e o estudo dos documentos pertinentes e, já em torno do sexto centenário de morte do Alighieri, em 1921, as primeiras tentativas de síntese em forma de biografias modernas informadas por toda essa pesquisa erudita3. Trata-se de um tipo de apropriação muito específica da documentação, majoritariamente por filólogos e por historiadores da literatura, caudatários de uma fileira do realismo que pode ser denominada “realismo da teoria da correspondência”, para a qual a obra literária é uma “imitação da vida” (aquilo que existe na obra corresponde a algo que existe na realidade)4, razão pela qual a biografia assume importância central para os estudiosos do texto dantesco. O objetivo é o de definir uma série de fatos seguros, vistos como referentes aludidos pelo poema, que possam ajudar a explicar a Comédia. Nessa perspectiva, o autor, a quem se atribui uma consistência pessoal que é aquela do ideal de indivíduo moderno, é produtor da obra, jamais produzido por ela, esquema de compreensão que acaba por entender a obra também como uma unidade orgânica e coesa que não está ela própria sujeita à mudança, uma vez que não é constitutiva de uma relação, mas resultado de um ato de produção. A passagem do tempo, seja na escrita da obra, seja na vida do escritor, é vista, nessa perspectiva, apenas como concretização e desdobramento de um princípio primeiro, a ideia-mestra da obra ou a personalidade do autor, que já existe no início do processo e se mantém inalterado na progressão temporal. Referindo-se ao gênero biográfico associado a esta posição, própria ao que chama de “idade heroica” da biografia, François Dosse avaliou que “o gênero biográfico participa então de um regime de historicidade no qual o futuro é o já-aí dos modelos existentes que se trata de reproduzir ao infinito”5. Esta é, em suma, a posição dominante até hoje nas grandes biografias de Dante6, e especialmente naquela que permanece a principal referência no campo, a de Giorgio Petrocchi7. Para o estudioso, Dante teria desde menino um intelecto “precocíssimo” e, ao longo dos anos, foi apenas acumulando um material que seria, mais tarde, “depositado” na Comédia8. Ao longo de toda a narrativa de Petrocchi, Dante é o grande indivíduo pronto responsável por um produto, ele também pronto porque não tem espaço para se alterar em uma relação. A Comédia é a simples concretização de um projeto que a antecede. Para Petrocchi, para atermo-nos a apenas um exemplo, Dante teria aprendido coisas com o avô “avidamente, todas ou em grande parte ressurgentes na reminiscência tardia quando os conteúdos do sagrado poema o levarão a utilizar fatos e personagens em grande quantidade”9. É natural, assim, que a biografia de Dante seja vista como uma externalidade com relação ao poema, e que ao biógrafo caiba apenas recolher os “fatos e personagens” que se podem conhecer da vida de Dante e que teriam sido projetados, como que de fora, no poema. Uma abordagem relacional, em que obra e vida se constroem mutuamente, como um processo em que os termos não estão definidos a princípio, mas assumem formas distintas ao longo do tempo e se alteram na própria relação, é excluída a princípio, em prol de um influxo unidirecional, da vida à obra, que acaba por redundar em uma reificação seja de uma, seja da outra. Esse direcionamento teórico do interesse biográfico moderno condiciona, naturalmente, a avaliação e o tratamento das “biografias antigas” de Dante, um corpus cujas fronteiras e hierarquias internas não são fixas, mas dependentes dos interesses que o dantismo deposita nelas. É assim que, mesmo com o seu propósito totalizante, a coletânea publicada por Angelo Solerti em 1904, Le Vite di Dante, Boccaccio e Petrarca, Scritte Fino al Secolo Decimosesto, que contém muitas notícias curtas que não somam mais que poucas linhas, exclui as novelle protagonizadas por Dante, narrativas curtas tidas por ficcionais10. A escolha pode parecer estranha diante do fato de que muitos dos textos retidos, como o de Boccaccio, contêm pequenas narrativas em tudo similares às das novelle, mas é compreensível em um contexto que relegava esses episódios a recolhas de anedotas dantescas, como as de Giovanni Papanti, Dante Secondo la Tradizione e i Novellatori, de 1873, e Giovanni Papini, La Leggenda di Dante: Motti, Facezie e Tradizioni dei Secoli XIV-XIX, de 191111. A linha divisória entre episódio biográfico e narrativa anedótica reflete o interesse dos biógrafos modernos, para quem as biografias antigas devem revelar os referentes da realidade – fixos, seguros, estáveis, definitivos – que foram depositados no poema por Dante. No interior mesmo das biografias antigas retidas pelo dantismo, uma hierarquização interna aprofunda a clivagem entre os textos que podem e os que não podem dar acesso ao “real” que se encontraria na base, no sentido de anterioridade e externalidade, do poema. É por essa razão que habitualmente apenas algumas poucas biografias são julgadas dignas de interesse, tais como a de Boccaccio – muitas vezes inclusive olhada com suspeita, pois que tida por fantasiosa em muitos pontos, mas retida pela quantidade de informações que consegue comunicar – e a de Bruni – olhada com simpatia, e seu autor visto como um dos predecessores do método histórico moderno e da crítica dos testemunhos – enquanto a grande maioria é relegada à rubrica de “biografias menores”, pois não seriam senão cópias ou deturpações das fontes realmente importantes. Essa é a perspectiva de Edward Moore, em seu Dante and His Early Biographers, de 1890, que permanece, contudo, um dos poucos estudos de conjunto desses textos. Moore dedica o essencial de seu desenvolvimento a Boccaccio e Bruni, passando rapidamente pelos demais12. Mesmo para propósitos de divulgação, na tradução para o inglês das Early Lives of Dante, por Philip H. Wicksteed, em 1911, dentre as poucas biografias retidas, a de Filippo Villani é mutilada, e só se guarda um episódio, relativo às circunstâncias da morte de Dante, exatamente por não ter correspondente nas demais biografias13. É o referente direto, e não sua presença no texto biográfico que conta. É emblemática nesse sentido, dando testemunho da tenacidade dos pressupostos básicos do dantismo, a posição recente de Giuseppe Indizio, que, criticando a recolha de Solerti por colocar no mesmo patamar o conjunto das “antigas biografias”, convida a “resoluções draconianas”: […] os antigos biógrafos que relatam a quase totalidade das notícias originais sobre a vida de Dante são apenas três: Giovani Villani, Giovanni Boccaccio e Leonardo Bruni. Adições não marginais, sustentadas por verossimilhança, por questões de vizinhança cronológica, acesso a fontes diretas e, em raros casos, encontros efetivos, provêm de três autores: Antonio Pucci, Benvenuto de Ímola, Filippo Villani, Biondo Flavio. Os demais 24 contribuidores, cerca de 4/5 da compilação [de Solerti], podem ser suprimidos quase sem dano para os propósitos estritamente biográficos; aliás, devem ser vistas com suma cautela as tentativas de muitos biógrafos de se servirem deles a fim de demonstrar qualquer hipótese14. Os “propósitos estritamente biográficos” remetem, naturalmente, àqueles que foram definidos pelo dantismo desde os fins do século XIX, isto é, a compilação referencial de episódios julgados “reais”, e é sintomático que Indizio julgue que a única biografia verdadeiramente científica de Dante seja a de Barbi, escrita em 193315. Ao isolar os textos considerados de maior valor informativo dos seus congêneres biográficos e obliterar as múltiplas interrelações que estruturam esse corpus, acaba-se por desconsiderar as condições enunciativas de cada biografia, isto é, quem a fez, quando, com que propósitos, de que maneira etc. Essas condições não teriam qualquer interesse para o estudo da biografia de Dante, salvo na estrita medida em que comprovem ou infirmem a confiabilidade da informação referencial do texto. Porém, como lembra pertinentemente Pierre Bourdieu, as condições de enunciação são inseparáveis do conteúdo e da forma de uma biografia: […] a narrativa da vida variará, tanto em sua forma quanto em seu conteúdo, de acordo com a qualidade social do mercado em que ela será oferecida – a própria situação de pesquisa contribuindo inevitavelmente para determinar a forma e o conteúdo do discurso recolhido16. Assumir que o conteúdo do texto pode ser descolado de sua situação enunciativa – e de preferência deve sê-lo, uma vez que o que interessa é seu
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