VIAJO PORQUE PRECISO, VOLTO PORQUE TE AMO UM RELATO INTIMISTA DE ALGUMAS VIAGENS Camila Gonzatto da Silva1 Não poder orientar-se em uma cidade não significa grande coisa. Mas se perder em uma cidade como quem se perde em uma floresta requer toda uma educação. Walter Benjamin Começo tomando emprestado o título de um filme de Karin Aïnouz e Marcelo Gomes, lançado em 2009. O filme conta a história de Zé Renato, um geólogo de 35 anos, que faz uma viagem de inspeção no interior do Nordeste para fazer um estudo do impacto de implantação de um canal de água, ligando Xexéu ao Rio das Almas. A viagem começa no fim e termina no começo, na garganta do Rio das Almas, onde o canal hídrico deve ter início. Ela é uma metáfora do estado emocional do personagem. Zé Renato tenta esquecer a ex-mulher, que terminou o relacionamento com ele. Ao longo da jornada, ele vai se reencontrando em meio à solidão e melancolia da paisagem, dos lugares visitados e das pessoas que passam pelo caminho. Mais do que conhecer novos lugares, novas culturas, viagens proporcionam reencontros consigo mesmo, permitem desbravar o desconhecido fora e dentro. Viajo desde que me conheço por gente. Minha primeira grande viagem foi aos dois anos de idade. Meu vô tinha comprado uma Kombi nova e colocou toda a família dentro dela para uma jornada rumo à Argentina. Esses foram meus primeiros passos em solo estrangeiro. Para poder sair, ganhei um RG com foto, número e um carimbo de “não alfabetizada”. Ou seja, minha identidade nacional começa a ser fixada a partir de um deslocamento, identificar-se para sair. E, claro, voltar. Se o movimento entre fronteiras coloca em evidência a instabilidade da identidade, é nas próprias linhas de fronteira, nos limiares, nos interstícios, que sua precariedade se torna mais visível. Aqui, mais do que a partida ou a chegada, é cruzar a fronteira, é estar ou permanecer na fronteira, que é o 1 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Rio Grande do Sul – Brasil. acontecimento crítico. (...) A possibilidade de “cruzar fronteiras” e de “estar na fronteira”, de ter uma identidade ambígua, indefinida, é uma demonstração do caráter “artificialmente” imposto das identidades fixas. O “cruzamento de fronteiras” e o cultivo propositado de identidades ambíguas é, entretanto, ao mesmo tempo uma poderosa estratégia política de questionamento das operações de fixação de identidade. (SILVA, 2004, p. 89). Da viagem à Argentina lembro pouco. Tenho algumas lembranças do interior da Kombi, da estrada e dos policiais que pediram a minha identificação. Lembro mais da minha segunda grande viagem. Esta totalmente em solo nacional. Aqui eu não precisava me identificar, mas minha identidade – RG – viajou junto. E, minha identidade de viajante, seguiu tomando forma. Eu tinha cinco anos, meus pais tinham acabado de trocar o nosso fusca por um gol branco, zero quilômetros. Fomos meus pais, eu, minha vó paterna, a Dona Miguelina, e meu tio materno, o tio Fredo, numa viagem de Passo Fundo no Rio Grande do Sul, rumo a Natal no Rio Grande do Norte. Nunca tinha pensado nisso, mas essa minha “travessia do Brasil” é ainda mais simbólica do que parece: sair de um Rio Grande no Sul para chegar em no Norte. Viajamos um mês, pelo litoral brasileiro, parando em várias cidades. Lembro do Carnaval de rua no Rio e em Vitória. Lembro do garçom baiano que cortava a pizza à xadrez de forma incrivelmente rápida. Lembro das praias do nordeste. Lembro da convivência com minha vó e meu tio, com quem dividia quartos de hotel. Lembro do dia que me perdi no hotel e bati na porta errada. Além dessas grandes viagens, minha infância foi marcada com muito deslocamento. Minha família nunca viveu inteira na mesma cidade e sempre se visitou muito. Minha lembrança dos meus finais de semana não fogem a pequenas viagens para a casa dos meus avós ou de tios. Todo verão, também íamos para Santa Catarina, com exceção de um ou dois, que passamos férias no Rio de Janeiro. Lembro também de uma viagem que fiz com o meu tio, o mesmo Fredo, e meus avós maternos, de carro, para Brasília. Na época, tinha racionamento de combustível e achar um posto com gasolina era uma aventura a ser vencida a cada tantos quilômetros. Já adolescente, fiz minhas primeiras viagens sozinha, com amigas do colégio. Mas o gosto mesmo pela viagem veio da infância, naquele longínquo 1982, quando fui para a Argentina e aprendi a gostar dos hermanos, ou em 1985, quando atravessei o Brasil. Viajar naquela época pode parecer hoje mais fácil, mas talvez não fosse. As estradas eram tão inseguras quanto hoje, os carros menos equipados, os telefones celulares ainda não existiam. Hoje a minha família viaja menos e eu muito mais. Poderia passar páginas e páginas relatando viagens a diferentes lugares. É possível ver fotos de algumas de minhas viagens em minha página do Flickr (http://www.flickr.com/photos/camilagonzatto/). Na verdade, não conheço muitos lugares. Gosto de voltar para os meus preferidos. Montevideo é um deles. Há alguns anos, pelo menos uma vez por ano, passo um final de semana por lá com meu marido. Essas viagens de lazer me são muito caras. São elas que permitem o reencontro consigo mesmo, são elas que permitem o errar sem destino, são elas que permitem o perder-se sem pressa para encontrar-se. Para elas, há que se ter a disposição do viajante, muito mais do que a do turista, tem que se estar aberto para o que encontrar, para o que acontecer, para o diferente. É nelas que olhamos para o outro de forma amorosa. Pero, entendámonos bien: viajar, si, hay que viajar, habría que viajar, pero sobre todo no hacer turismo. Esas agencias que cuadriculan la tierra, que La dividen en recorridos, estadías, en clubes cuidadosamente preservados de toda proximidad social abusiva, que han hecho de La naturaleza un “producto”, así como otros quisieran hacerproducto de La literatura y del arte, son las primeras responsables de convertir a unos en espectadores y a otros en espetáculo. Quienes se equivocan de papel, como es sabido, se ven prontamente estigmatizados y si es posible se los envía de vuelta en charteres a sus lugares de origen. El mundo existe todavia en su diversidad. Pero esa diversidad poço tiene que ver con El calidoscópio ilusório del turismo. Tal vez una de nuestras tareas más urgentes sea volver a aprender a viajar, en todo caso, a lãs regiones más cercanas a nosotros, a fin de aprender nuevamente a ver. (AUGÉ, 2008, p. 16) Poder sair, para mim, é sinônimo de poder descansar. Normalmente, não consigo fazer isso em Porto Alegre. Se estou aqui, estou trabalhando. Então, se consigo sair, sem levar meu computador, isso já é um grande início. Cheguei a fazer algumas viagens sem celular. Em 2005, passei quase 30 dias na Europa, sem telefone. Mas, hoje em dia, é impossível. A tecnologia já permite levar o telefone e usar mensagem de textos a preços módicos. Foi em uma viagem a Nova York, em 2008, em que levei o meu telefone, que recebi uma ligação para marcar a entrevista da seleção do mestrado. Estivesse eu sem celular, talvez esse texto não tivesse sido escrito nesse contexto. Montevideo, 2009 Mas viagens muitas vezes estão bem longe do lazer. A maior parte de minhas viagens estão relacionadas a trabalho, sejam festivais de cinema para acompanhar filmes ou para apresentar projetos, ou mesmo viagens curtas para reuniões. Já fiz também algumas viagens de pesquisa para escrever roteiros. Para escrever histórias sobre lugares específicos é preciso conhecê-los. Foi assim que conheci a fronteira de Jaguarão do Sul e Rio Branco no Uruguai, e revisitei as Missões Jesuíticas do Rio Grande do Sul. Essas viagens foram base para dois roteiros da série Primeira Geração (http://www.clicrbs.com.br/especial/rs/rbstvrs/capa-interna,0,0,0,0,Primeira- Geracao.html), da RBS TV. Muito do que vi e fotografei esteve presente na filmagem dos episódios. Eram histórias ficcionais, com crianças protagonistas, que contavam com um pano de fundo de realidade. Aquelas histórias poderiam ter acontecido naqueles lugares. Outro projeto da RBS TV que me fez viajar foi o 4 Destinos (http://www.clicrbs.com.br/especial/rs/4-destinos/home,0,2239,Home.html), que fiz a pesquisa em Blumenau e Caxias do Sul. Fronteira Brasil/Uruguai, em Jaguarão/Rio Branco. Campo de girassóis na região das Missões. Também fiz algumas viagens para estudar. A primeira foi a minha mudança de Passo Fundo para Porto Alegre para cursar o curso de Publicidade e Propaganda na UFRGS. Mais do que uma viagem, foi uma mudança. A viagem mesmo foi quando vim fazer o vestibular. Já conhecia a cidade, mas a relação com ela foi de outra forma. Mais do que visitá-la, comecei a vivenciá-la. Uma das viagens mais marcantes de estudo foi a ida para Cuba para fazer o Taller Avanzado de Guión na Escuela Internacional de Cine y TV em San Antonio de los Baños. Essa foi uma viagem que começou muito antes de entrar no avião. A decisão de fazer o curso e os preparativos ocuparam alguns meses. Foram cinco semanas intensas e marcantes em Cuba. Falo não apenas do curso, que foi excelente, mas principalmente da vivência em um país completamente diferente do nosso e com uma realidade difícil de entender, difícil de gostar e mais difícil ainda de criticar. O somatório das experiências educacionais e pessoais foi o grande ganho. Fui para Cuba, em 2006, em uma época de incertezas, quando o então presidente Fidel Castro estava doente, ninguém sabendo se ele sobreviveria, se os Estados Unidos invadiriam a ilha, o que aconteceria. Mas esse era o clima antes da viagem, lá o mais impactante foi o contato com uma realidade que foge dos pré-conceitos que podemos ter em relação a lugares que não conhecemos. Foi em Cuba que vi o mais lindo dos céus estrelados e a água mais cristalina do mar. Mas também foi em Cuba que vi tantas outras coisas que tornaram a viagem menos fácil. Mural do Hall da Escola de Cinema e TV de Cuba Nessa linha de viagem-estudo fiz algumas com o grupo das aulas de arte do antigo Torreão. Capitaneadas por Jailton Moreira, artista, curador e nosso grande mestre, conhecemos muitas obras de arte ao vivo e discutimos sobre elas. Com o grupo fui visitar museus em Nova York (viagem já citada), fui conhecer o Centro de Arte Contemporânea de Inhotim, em Brumadinho/MG, e a cidade histórica de Ouro Preto, e fiz uma expedição para o deserto da Bolívia. Agora me preparo para uma visita a Paris e Londres, com o intuito de visitar museus. Arte de rua no bairro Dumbo, em Nova York. Penetrável, de Hélio Oiticica, em Inhotim. A Bolívia, assim como Cuba e as duas grandes viagens da infância, são um capítulo a parte de minha história. É a ela que dedico a parte final desse texto. Os muitos desertos da Bolívia O Jailton me convidou para ir para a Bolívia. Normalmente, ele propõe as viagens e as pessoas se inscrevem. Essa era a terceira vez que ele levava um grupo para a Bolívia e quarta vez que ele próprio ía. Esse terceiro grupo foi uma curadoria. Ele convidou um a um dos alunos. Todos aceitaram. Eu demorei um pouco a decidir. Já namorava essa viagem desde sua primeira edição. Mas não é uma viagem fácil. Tem que se estar disposto a passar mal. Ninguém passa por aquela altitude sem senti-la. Tem que se estar disposto a passar alguns dias sem banho. Tem que se estar disposto a fazer algum trabalho artístico. Essa não é uma viagem para ver arte e sim um desafio de produzir algo em relação a uma paisagem extrema. Extrema em beleza, extrema em diferença, extrema em tamanho, extrema em altitude. Eu aceitei a empreitada. Para mim, essa parecia a maior aventura a qual tinha me disposto. Mais do que viajar de Kombi para a Argentina, mais do que atravessar o Brasil, mais do que qualquer outra viagem que eu já tivesse feito sozinha ou acompanhada. Decidi, então, que o meu trabalho seria um diário. Escolhi um Moleskine vermelho e o coloquei na mochila junto com três canetas – uma roxa, uma verde e uma azul – e um conjunto de canetinhas hidrográficas coloridas. Também levei uma câmera fotográfica analógica, com cinco rolos de filme 35mm, asa 400 (infelizmente não encontrei para vender nem asa 100, nem 200), e uma câmera digital simples, de 7 megapixels. A câmera digital tinha o objetivo de ser documental, registrar o grupo, a viagem. A câmera analógica era para produzir imagens escolhidas. Essas seriam as minhas ferramentas de trabalho. Caderno de anotações A viagem começou no dia 7 de outubro. Fomos de Porto Alegre para Buenos Aires. Mas o diário só começou mesmo no dia 8, quando voamos de Buenos Aires para Jujuy, no norte da Argentina. A ideia é que a subida rumo à altitude fosse gradual. A cidade não é nada demais, mas a pousada era confortável. Acabei comprando uma canequinha de mate, erva e bomba no Carrefour. Já tinha levado uma mini garrafa térmica para fazer chás no frio do deserto. O chimarrão parecia que traria um certo calor e conforto. Lembro que era um Carrefour bacana, cheio de coisas, mas acabamos comprando quase nada. A ideia era não ir preparados demais para o deserto. Já tínhamos várias amenidades que levamos de Porto Alegre: remédios, lenços umedecidos, barrinhas de cereal, castanhas, damascos e afins. Ali a sensação ainda era de preparação, a viagem ainda não tinha de fato começado. E assim foram os próximos dias. No dia seguinte, fomos de van até a divisa com a Bolívia. A paisagem do norte da Argentina é bonita, principalmente o Sierro de Los Siete Colores e as montanhas com os primeiros cactos. Na fronteira, um ônibus estava nos esperando e nos levaria até Tupiza, a nossa cidade de adaptação, na qual dormiríamos três noites. A fronteira foi um
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