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Uso e abuso da História PDF

263 Pages·1989·1.621 MB·Portuguese
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Título original: THE USE AND ABUSE OF HISTORY Copyright © The Masters and Fellows of Darwin College in the University of Cambridge 1975 together with the words Published by arrangement with Chatto and Windus Ltd., London Copyright © Livraria Martins Fontes Editora Ltda., para a presente tradução 1a. edição brasileira: outubro de 1989 Tradução: Marylene PintoMichael Revisão da tradução: Wilson Roberto Vaccari Revisão tipográfica: Flora M. de Campos Fernandes Ana Maria L. Farrenkopf Produção gráfica: Geraldo Alves Composição: Oswaldo Voivodic António José da Cruz Pereira Ademilde L. da Silva Capa — Projeto: Alexandre Martins Fontes Realização: Cláudia Scatamacchia Arte-final: Moacir K. Matsusaki OMo» «• C.l.loo.ç.0 na Publlc.çíc (CP ) tatarMeloMl (Cemv» sV.aJf.4r. do Uno. SP, Br.ill) I. Finley ; tradução 1989. — (Coleção o homem l a história) Bibliografia. 1. Grécia - Histori ografia 2. Roma - Historiografia I. Título. II. Série IndCM para diálogo sntom<l!co: 1. Grécia : Historiografia 938.007: 2. Roma : Historiografia 937.0072 Todos os direitos para o Brasil reservados à LIVRARIA MARTINS FONTES EDITORA LTDA. Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 — Tel.: 239-3677 01325 — São Paulo — SP — Brasil Prefácio Apesar da diversidade dos temas considerados nestes doze en- saios, todos têm uma preocupação em comum: o lugar (ou usos) do passado, tanto na sociedade científica quanto na vida cultural, passada e presente, e ainda no campo mais restrito da política e da discussão política. A semelhança entre o título de meu segundo en- saio e Considerações Extemporâneas, de Nietzsche, não é casual. Embora nem minha linguagem nem meu pensamento sejam nietzs- cheanos, concordo — e acho importante demonstrar — que o que ele chamou de "história monumental" transforma-se rapidamente em "ficção mítica"; que sem o método do "estudo das antiguida- des" e o método "crítico" para estudar o passado, "o próprio pas- sado está sujeito a erros" e a história, então, "aniquila e degrada a vida". Alguns ensaios tendem ao programático e ao didático, enquanto outros tratam de assuntos essenciais, de instituições e sociedades par- ticulares, embora mantenham implicitamente a preocupação central. Estes últimos são mais técnicos, mas mesmo eles não pressupõem um conhecimento especializado do mundo antigo. Todos os ensaios, com exceção de um (nº 6), já foram publica- dos anteriormente. Todos eles foram revisados para este livro, alguns drasticamente, e só em minha aula inaugural (nº 2) mantive a lingua- gem apropriada para a ocasião. Os detalhes bibliográficos e os agra- decimentos encontram-se em notas de rodapé de cada capítulo. O índice foi gentilmente elaborado pelo sr. Douglas Matthews. M.I.F. Jesus College, Cambridge Junho, 1974 l Mito, memória e história* Os pais da história foram os gregos. Os historiadores da Anti- guidade têm muito orgulho disso, tanto que preferem não se lem- brar que algumas das maiores inteligências em história antiga não se impressionaram muito com esse feito. Os cunhadores de bons mots sempre tiveram grande predleção pela história enquanto discipli- na: é falsa, é perigosa, é bobagem. Os historiadores podem ignorar tranqüilamente as zombarias e dúvidas de Walpole ou Henry Ford, ou mesmo de Goethe, mas Aristóteles é outro caso, pois, afinal, criou várias ciências e dominou outras também, de um modo ou de outro — exceto história e economia. Ele não escarneceu da história, ele a rejeitou, nas famosas palavras do nono capítulo de sua Poética: "A poesia é mais filosófica e séria do que a história, pois aquela fala principalmente do universal e a história do particular. Por 'uni- versal' entendo que determinado indivíduo dirá ou fará determina- das coisas segundo a verossimilhança ou a necessidade; esse é o pro- pósito da poesia, acrescentar os devidos nomes às suas personagens. Por 'particular' refiro-me ao que Alcibíades fez e pelo que passou." Não é de admirar que, dentre todos os capítulos, o nono talvez seja a maior vítima da conhecida "reclamação contra as supostas omissões de Aristóteles" na Poética1. Esta foi tachada de "insufi- * Uma versão mais curta deste ensaio, publicada em History and Theory 4 (1965) 281-302, foi apresentada na forma de conferência no Warburg Institute, em 28 de outubro de 1964. Agradeço a G. S. Kirk e E. R. Leach pelas críticas e sugestões. Copyright © 1965 by Wesleyan University; reproduzido com autorização da Wesleyan University Press. 4 USO E ABUSO DA HISTÓRIA ciente" e invalidada por engenhosas exegeses, como se Aristóteles fosse um dos filósofos pré-socráticos cujas poucas frases enigmáti- cas que chegaram até nós podem ser ajustadas a mil teorias diferen- tes; ou então, como se não tratasse da história, a Poética foi polida- mente desprezada. Este último argumento, porém, encerra um pe- rigoso elemento de verdade; Aristóteles nunca se ocupou da histó- ria, nem no capítulo nove nem em qualquer outro. Afora duas referências casuais na Poética e uma recomenda- ção, na Retórica (1360a33-37), de que os líderes políticos deviam am- pliar sua experiência através da leitura de livros sobre viagens e his- tória, ele não torna a mencionar esse assunto em nenhum ponto da vasta obra a nós transmitida. Nada poderia ser mais significativo do que esse profundo silêncio. Indicações do passado, o passado en- quanto fonte de paradigmas é uma coisa; história enquanto estudo sistemático, enquanto disciplina, é outra2. Ela não é séria o bastan- te, não é suficientemente filosófica, nem mesmo quando compara- da à poesia. Não pode ser analisada, reduzida a princípios, sistema- tizada. Ela simplesmente nos diz o que Alcibíades fez ou sofreu. Ela não estabelece verdades. Não tem uma função séria. Pode-se ir muito mais longe. Todos os filósofos gregos, até o último dos neoplatônicos, estavam evidentemente de acordo quan- to a sua indiferença para com a história (como disciplina). Pelo me- nos é o que o silêncio deles sugere, um silêncio rompido apenas por murmúrios fugazes. Consta que Teofrasto, o discípulo de Aristóte- les, escreveu uma obra chamada Da História, assim corno seu ami- go mais jovem Praxífanes, outro peripatético. Ninguém sabe mais nada além dos títulos dessas duas obras. Especular sobre seu con- teúdo é perda de tempo. Devemos simplesmente registrar o total de- saparecimento dos dois livros e o fato de que eles não foram men- cionados nem por Diógenes Laércio em seu livro A Vida dos Filó- sofos, por exemplo, nem pelos estudiosos de Aristóteles*. O que faltou de filosofia sobrou de retórico. É razoável supor que a única obra antiga a nós legada que pretende ser um ensaio sistemático sobre historiografia é Como Escrever História, de Lu- ciano, escrita pouco depois de 165 d.C. Essa obra, uma mistura de regras e máximas que se tornaram lugares-comuns na instrução re- * Não me esqueci de Posidônio. Mas nem mesmo esse autor de uma obra (per- dida) em larga escala histórica, dentro da tradição retórica, deu a menor contribui- ção ao método histórico, e muito menos à filosofia da história. A considerável im- portância da obra de Posidônio, aumentando o conhecimento greco-romano de ou- tros povos e nações, particularmente aqueles que os romanos estavam conquistando no Oeste, não altera minha proposta geral sobre a história e os filósofos antigos. Veja a respeito A. Momigliano, Alien Wlsdom (Cambridge, 1975), cap. 2. MITO, MEMÓRIA E HISTÓRIA 5 tória, é um trabalho inferior, superficial e essencialmente sem va- lor3. Seu único ponto e interesse para nós é que, quinhentos anos depois de Aristóteles, Luciano ainda estava contrapondo a história à poesia. Nessa época, os próprios historiadores já tinham aceitado havia muito tempo a necessidade de competir com a poesia – capi- tulando e escrevendo trabalhos que Políbio rejeitou com o irônico rótulo de “história trágica”4. Muitos historiadores, e, o que é cru- cial, até mesmo os que resistiram mais bravamente, não lograram ven- cer nem a indiferença dos filósofos nem o gosto dos leitores comuns. Por que poesia? A resposta, naturalmente, é que com "poe- sia" Aristóteles e os outros referiam-se tanto à poesia épica, à re- cente poesia lírica, como a de Píndaro, quanto à tragédia, que re- tratavam as grandes figuras e os grandes acontecimentos do passa- do. Não se tratava de saber se essa poesia era ou não historicamente confiável, ou até que ponto o era, no sentido em que hoje em dia fazemos o mesmo tipo de pergunta em relação aos épicos antigos; tratava-se, isso sim, da questão mais profunda da universalidade, da verdade sobre a vida em geral. A questão, em resumo, era distin- guir mito de história. Por "mito" refiro-me ao que, na acepção co- mum, geralmente significa "mito" e "lenda", e não aos sentidos mais metafóricos, como na expressão "o mito racista", ou às mui- to conhecidas extensões do termo usadas por pensadores modernos como Sorel ou Cassirer5. Refiro-me a mitos como os de Prometeu, Héracles e a Guerra de Tróia. A atmosfera na qual os pais da história começaram a trabalhar estava impregnada de mitos. Sem o mito, na verdade, eles nunca teriam conseguido iniciar seu trabalho. O passado é uma massa des- conexa e incompreensível de dados incontados e incontáveis. Ele só pode tornar-se inteligível se for feita uma seleção em torno de um ou mais focos. Em todos os infindáveis debates gerados pelo wie es eigentlich gewesen (como as coisas foram realmente), de Ranke, uma primeira pergunta é frequentemente esquecida: que "coisas" merecem ou exigem consideração para se definir como elas "foram realmente"? Muito antes de alguém sequer sonhar com a história, o mito deu uma resposta. Essa era sua função, ou melhor, uma de suas funções: tornar o passado inteligível e compreensível selecio- nando e focalizando algumas partes dele, que, desse modo, adqui- riram permanência, relevância e significado universal6. Quando Heródoto atingiu a juventude, o passado distante es- tava bastante vivo na consciência dos homens, mais vivo do que os séculos ou as gerações recentes: Édipo, Agamenon e Teseu eram mais reais para os atenienses do século V que qualquer figura história an- terior a esse século salvo Sólon, e este foi elevado à categoria da- 6 USO E ABUSO DA HISTÓRIA queles, ao ser transformado em figura mítica. As tragédias e odes corais apresentadas anualmente nas grandes festividades religiosas faziam ressurgir os heróis míticos, e estes, recuando pelas gerações de homens até chegarem aos deuses, recriavam a trama contínua da vida para o público, pois os heróis do passado, e mesmo muitos he- róis do presente, tinham ascendência divina. Tudo isso era sério e verdadeiro, literalmente verdadeiro. Era a base da religião deles, por exemplo. Há uma bela passagem de Robertson Smith que resume o quadro: "Na Grécia antiga... certas coisas eram feitas num tem- plo, e o povo concordava que deixar de fazê-las seria uma heresia. Mas se você tivesse perguntado por que elas eram feitas, provavel- mente teria recebido várias explicações mutuamente contraditórias de pessoas diferentes, e ninguém teria dado a menor importância religiosa a qual delas você resolvesse adotar. Na verdade, as expli- cações apresentadas não teriam sido do tipo a suscitar sentimentos fortes, pois, na maioria dos casos, não passariam de histórias dife- rentes a respeito das circunstâncias em que o rito foi estabelecido pela primeira vez, por determinação ou exemplo direto do deus. O rito, em suma, não estava ligado a um dogma e sim a um mito."7 Os gregos, todavia, amavam os épicos e as tragédias não só por- que precisavam ser lembrados das origens de seus ritos, embora es- sa função fosse muito importante para o indivíduo — e ainda mais para a comunidade, que era arraigada a seus padroeiros e ancestrais divinos. O mito era o grande mestre dos gregos em todas as ques- tões do espírito. Com ele, aprendiam moralidade e conduta; as vir- tudes da nobreza e o inestimável significado ou a ameaça da hybris; e ainda sobre raça, cultura e até mesmo política. Pois não foram Sólon e Pisístrato acusados de falsificar o texto da Ilíada, introdu- zindo dois versos com a finalidade de obterem autorização da obra de Homero para o confisco de Salamina aos megáricos?* Nesse contexto, não é de surpreender que na Antiguidade a his- tória tenha sido discutida, julgada e avaliada com base na poesia. Fundamentalmente, tratava-se de uma comparação entre duas for- mas de narração do passado. Porém, há uma verdade irrefutável: todos reconheciam que a tradição épica era baseada em fatos con- cretos. Até mesmo Tucídides, que nos diz isso tão logo acaba de se apresentar. A Guerra do Peloponeso, afirma ele, dentre todas as que a precederam, é a que mais merece ser narrada, "pois foi o maior movimento, até hoje, entre os helenos e entre uma parte do mundo bárbaro", maior, especificamente, até mesmo que a Guerra de Tróia. * Os versos são 2.557-58: "Ájax trouxe doze navios de Salamina e, ao trazê- los, estacionou-os ao lado das fileiras atenienses." MITO, MEMÓRIA E HISTÓRIA 7 Tucídides sustenta seu ponto de vista demoradamente, e entre as per- sonagens "históricas" que ele apresenta em sua introdução apare- cem Heleno, filho de Deucalião (o ancestral de cujo nome se origi- nou o dos helenos), Minos, rei de Creta, e Agamenon e Pélops. Os detalhes são vagos, afirma ele, tanto sobre o passado remoto quan- to sobre o período que antecedeu a Guerra do Peloponeso — um ponto em comum bastante significativo —, mas os esboços gerais são claros e confiáveis8. Homero exagerou, pois, sendo poeta, em- pregou adequadamente a licença poética, e Tucídides, ao contrário da maioria vulgar, reconheceu isso em sua introdução. O próprio Tucídides alerta que em seu trabalho não atenderá aos anseios por exageros e adornos poéticos da parte dos leitores; seu relato dos fa- tos será objetivo. Mas nem Tucídides, Platão, Aristóteles ou qual- quer outro chegaram a mostrar-se totalmente céticos quanto ao que um escritor moderno poderia chamar de "semente histórica do épi- co", e certamente não o rejeitaram por completo. Contudo, o que quer que tenha sido, o épico não era história, e sim uma narrativa, detalhada e precisa, com descrições minucio- sas de guerras, viagens marítimas, banquetes, funerais e sacrifí- cios, todos muito reais e vívidos; ele podia conter inclusive algumas sementes encobertas do fato histórico — mas não era história. Co- mo todo mito, era atemporal. As datas e um escalonamento coe- rente de datas são tão essenciais para a história quanto a medição exata o é para a física9. O mito também sugeria fatos concretos, mas estes eram completamente isolados: não tinham ligação nem com os acontecimentos anteriores nem com os posteriores. A Ilíada começa com a cólera de Aquiles por causa de uma afronta à sua honra e termina com a morte de Heitor. A Odisséia, como cenário para as viagens de Ulisses, menciona o término da Guerra de Tróia e o retorno de alguns dos heróis. Mas tudo isso acontecia no estilo "era uma vez", surgindo do nada (o rapto de Helena é meramente outro fato isolado, totalmente a-histórico sem qualquer sentido sig- nificativo) e levando a nada. Mesmo dentro da narrativa, o relato é fundamentalmente atemporal, apesar de muitos números (de dias ou anos) serem determinados. "Esses números, em sua maioria, referem-se tipicamente a todas quantidades possíveis, e em geral não estão ligados entre si; não servem de base para cálculos ou sincroni- zações. Simplesmente indicam, de modo amplo, uma magnitude ou escala, e em sua pseudoprecisão estilizada simbolizam uma longa duração. Na realidade, não há interesse na cronologia, quer relati- va quer absoluta."10 Muitos anos depois, os autores de tragédias mantiveram a mesma indiferença: Édipo, Ifigênia, Orestes, todos fizeram ou passaram por coisas que se acreditava serem fatos histó- 8 USO E ABUSO DA HISTÓRIA ricos, mas os eventos flutuavam vagamente no passado distante, des- vinculados, em termos de tempo ou padrão, de outros aconteci- mentos. A atemporalidade reflete-se também nas características indivi- duais. A morte é um dos principais tópicos de suas vidas (bem co- mo a honra, da qual é inseparável), e o destino é freqüentemente o mais importante poder propulsor. Nesse sentido eles vivem no tem- po, e tão-somente nesse sentido. A nenhum leitor da Odisséia deve ter escapado que quando o herói volta, depois de vinte anos, ele e Penélope são exatamente o que haviam sido meia geração antes. Mas Samuel Butler certamente não se deu conta disso, quando escreveu: "Não há nenhum caso de amor na Odisséia, exceto a volta de um homem casado, calvo e idoso, para a esposa idosa e o filho adulto, depois de uma ausência de vinte anos, e furioso por terem-lhe rou- bado tanto dinheiro nesse meio-tempo. Dificilmente, porém, pode- ríamos chamar isso de caso de amor; quando muito, não passa de domesticidade."11 O poeta não diz que Ulisses estava calvo e velho; Butler é quem o diz, e, provavelmente, foi isso que ele chamou de ler os versos homéricos "com inteligência": lendo-lhes as "entrelinhas". Um Ulis- ses que não estivesse calvo e velho depois de vinte anos seria contrá- rio ao senso comum e à "inteligência". O erro - e Samuel Butler é apenas um bode expiatório para uma prática freqüente - está em aplicar o pensamento histórico moderno, à guisa de senso comum, a um relato mítico, a-histórico. Esposas e maridos históricos enve- lhecem, mas a verdade é que nem Ulisses nem Penélope mudaram em nada; não evoluíram nem degeneraram, assim como nenhuma outra personagem do poema épico. Tais homens e mulheres não po- dem ser personagens da história; são excessivamente simples, fecha- dos em si mesmos, rígidos e estáveis, excessivamente desvinculados de seus contextos. São atemporais como o próprio poema. Talvez o exemplo mais decisivo não venha de Homero, mas de Hesíodo, que viveu aproximadamente na mesma época*. A intro- dução de Os Trabalhos e os Dias contém um dos mais famosos rela- tos primitivistas, a narrativa do declínio do homem da idade de ou- ro do passado em vários estágios, cada um simbolizado por outro metal: ao ouro sucede-se a prata, em seguida o bronze ou o cobre, e finalmente o ferro (a era presente). Mas a visão de Hesíodo não é de degeneração progressiva, de evolução ao contrário. Cada raça humana (Hesíodo fala de raças, genê, não de idades) não evolui até * É conveniente (e, neste contexto, inócuo) falar de Homero e de Hesíodo in- dividualmente, deixando-se de lado o complexo problema da autoria de "seus" poemas. MITO, MEMÓRIA E HISTÓRIA 9 a seguinte; ela é destruída e substituída por uma nova criação. Ne- nhuma das raças existe nem no tempo nem no espaço. As raças hu- manas são atemporais como a Guerra de Tróia: tanto em relação ao futuro quanto ao passado. E assim Hesíodo pode lamentar: "eu não queria estar entre os homens da quinta geração, e sim ter mor- rido antes ou nascido depois" (versos 174-75)12. É possível que o mito das quatro idades ou raças do metal tenha se originado no Oriente, sendo helenizado por Hesíodo. Mas houve também uma quinta idade ou raça, certamente grega do começo ao fim: a idade dos heróis inseridos entre o bronze e o ferro. "Mas quan-- do a terra cobriu também essa geração [bronze], Zeus, o filho de Cro- nos, criou mais outra, a quarta, sobre a terra fecunda, que era mais nobre e justa, uma raça semelhante a deus, de homens-heróis que são chamados de semideuses, a raça que antecedeu a nossa, por todo o vasto mundo." Essa colcha de retalhos era inevitável, pois os mitos dos heróis estavam tão arraigados na mente e eram tão indispensá- veis que não podiam ser deixados de lado. A colcha de retalhos é a regra no mito, e não causa problemas. Só os que têm uma mente vol- tada para a história é que vêem os pontos rústicos e as costuras defei- tuosas, e sentem-se incomodados com isso, como é evidente em He- ródoto. Mas Hesíodo não tinha uma mente voltada para a história. De um lado estavam as quatro raças e, de outro, a raça dos heróis. Estes eram os dados e a tarefa do poeta consistia em coligi-los. Ele o fez do modo mais fácil possível, graças à total ausência do elemen- to tempo. Não havia problemas cronológicos, nem datas para ser sin- cronizadas, nem evolução para ser acompanhada ou explicada. A raça de heróis não tinha começo na história: ela simplesmente foi feita por Zeus. E também não tinha fim, não sofrera transição para o estágio seguinte, o contemporâneo. Alguns dos heróis foram destruídos diante dos portões de Tebas e na Guerra de Tróia. "Mas, para os outros, o pai Zeus, filho de Cronos, deu vida e um lar separados dos ho- mens, obrigando-os a morar nos confins do mundo. E, imunes à tris- teza, vivem eles nas ilhas dos bem-aventurados ao longo da costa do profundo e revolto oceano."13 Existe, naturalmente, um sentido no qual o mito das idades não é propriamente um mito. Ele é abstraio demais. O poema de Hesío- do, em sua primeira parte, trata do problema do mal. Jamais se es- creveu uma denúncia tão desesperadora contra a injustiça do mun- do. Por que, ele pergunta, por que o mundo está tão cheio de mal- dade? Sua primeira resposta é mítica no sentido mais tradicional do termo; ele conta a história de Prometeu e Pandora: uma resposta tipicamente mítica, o tipo da resposta que os gregos continuavam a dar para explicar crenças e ritos durante toda sua história. Mas

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