UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS Lúcia Maria Britto Corrêa ESPELHOS PARTIDOS: LEITURAS E RELEITURAS DA LENDA HERÓICA DOS ATRIDAS Porto Alegre, 2005 1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS Lúcia Maria Britto Corrêa ESPELHOS PARTIDOS: LEITURAS E RELEITURAS DA LENDA HERÓICA DOS ATRIDAS Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor em Letras, Área de Concentração: Literatura Comparada. Profa. Orientadora: Dra. Gilda Neves da Silva Bittencourt Porto Alegre, 2005 2 Dedico esse trabalho ao meu pai, José Antonio Corrêa, falecido em 19 de agosto de 2000, por seu entusiasmo pelos meus estudos e pela enorme falta que ele me faz. 3 AGRADECIMENTOS Meu carinho e agradecimento especial à minha orientadora, Professora Gilda, pela competência e pela tranqüilidade com que me auxiliou na realização deste trabalho. Agradeço ainda a todos que colaboraram com esse trabalho e, em especial: às amigas Anas Luizas, Martha, Mylene e Pia, pelo apoio e pela amizade; aos amigos Paulina, Christian, Ana Carolina, Ana Paula, Mira, Luis Fernando, Eneida, Maria de Lourdes, pelo apoio de idéias, de bibliografia e, principalmente, pelo entusiasmo compartilhado; às colegas, aos professores e aos funcionários do Instituto de Letras, do PPG e da Biblioteca, pelo apoio e pelas sugestões; à professora Patrícia, de Francês, feliz mamãe da linda Cecília, pela disponibilidade, pelo carinho e pelo auxílio inestimável; à amiga Alba Olmi, pela amizade e pela ajuda permanente; à minha mãe, a Alice e aos meus irmãos e ao meu afilhado, pelo companheirismo; ao Paulo, por tudo. 4 RESUMO O trabalho foi desenvolvido analisando-se a lenda heróica da família dos Atridas, através da trilogia grega Orestéia, de Ésquilo, relacionando-a com Les mouches, de Sartre, e com Électre, de Giraudoux, comparando-as também com as duas Electra, a de Sófocles e a de Eurípides, partindo da análise do “texto como produtividade”, segundo Roland Barthes, que trabalha a reescritura do texto realizada pelo leitor. Os textos escolhidos foram produzidos e encenados em momentos de guerra ou de sua iminência e, através do estudo dos ordenamentos jurídicos vigentes em cada época, foi possível comprovar que, na Atenas do século V, ocorre a construção do conceito de responsabilidade individual, superando-se a imposição da punição aos familiares e à descendência do criminoso, enquanto que na França ocupada pelo exército nazista ocorre o inverso: a responsabilidade pelos assassinatos cometidos pela Resistência é atribuída a toda a comunidade. Confrontamos as relações de poder engendradas e expostas nos textos, refletindo as que estavam ocorrendo no contexto histórico-político, concluindo que a tragédia grega se inseriu como mediadora da realidade político-social da polis, ao contrário das releituras francesas, que tinham uma inserção periférica na sociedade francesa de 1937 a 1944. É em busca de um sentimento de continuidade e de transcendência que ocorre o retorno às tragédias gregas e às suas releituras, visto que narram lendas heróicas que relembram, mesmo ao homem do século XXI, sua mortalidade e sua incapacidade de prever os desdobramentos de suas ações. Palavras-chave: tragédia grega, metateatro, responsabilidade individual,poder. 5 ABSTRACT This thesis was written analyzing the heroical legend of Atridas’family, through the Greek tragedies Orestéia and Electra(s), relating them to The Mouches by Sartre and to Électre by Giraudoux. The starting point is the text analysis as "productivity", according to Roland Barthes who works the rewriting of the text by the reader. The texts we analyzed were produced and enacted during moments of war or in times of its imminence, and through our study it was possible to prove that in Athena of the Fifth Century occurs the construction of the concept of individual responsibility, overcoming the imposition of the guiltiness to the criminal descendants, while in occupied France by the Nazi Army happens the opposite: the responsibility for the murders, committed by the Resistance, is attributed to the entire community. We compared the relationship of power engendered and exposed on the texts which reflect the relationship that happened in the historical and political context. So, we conclude that the Greek tragedy was inserted as a mediator of social reality, in opposition to the French plays, which had a peripheral insertion in the French society from 1937 to 1944. The sense of continuity and transcendency emerges from the return of the Greek tragedies and their rereading, because they narrate heroical legends which remember, indeed to the man of the Twenty One Century, his mortality and his incapacity to antecipate the unfoldment of his actions. Key-words: Greek tragedy; metatheater; individual responsibility, power. 6 RÉSUMÉ Ce travail a analysé la légende héroïque de la famille des Atrides, à travers la trilogie grecque L’Orestie, d’Eschyle, en la mettant en rapport avec Les mouches, de Sartre, et avec Électre, de Giraudoux; ces œuvres ont également été comparées avec les deux Electra, celle de Sophocle et celle d’Euripide, en partant de l’analyse du "texte en tant que productivité" selon Roland Barthes, qui travaille la réécriture du texte réalisée par le lecteur. Les textes choisis furent produits et mis en scène pendant des guerres ou à la veille d’une guerre et, à travers l’étude des agencements juridiques en vigueur à chaque époque, nous avons pu observer – dans l’Athènes du Ve siècle – la construction du concept de responsabilité individuelle, avec le dépassement de l’imposition de la peine aux membres de la famille et à la descendance du criminel; par contre, dans la France occupée par l’armée nazie c’est l’inverse qui se produit, la responsabilité des meurtres commis par la Résistance est attribuée à toute la communauté. Nous avons confronté les rapports de pouvoir engendrés et exposés dans les textes, lesquels reflétaient ceux qui se produisaient dans le cadre historico-politique, et en avons conclu que la tragédie grecque s’est insérée comme médiatrice de la réalité politico-sociale de la polis, contrairement aux relectures françaises, qui avaient une insertion périphérique dans la société française de 1937 à 1944. C’est à la recherche d’un sentiment de continuité et de transcendance que s’établit le retour aux tragédies grecques et à leurs relectures, étant donné qu’elles racontent des légendes héroïques qui rappellent à l’homme – même à celui du XXIe siècle – sa mortalité et son incapacité à prévoir les conséquences de ses actions. Mots-clé : tragédie grecque, métathéâtre, responsabilité individuelle, pouvoir. 7 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO p. 08 2 LEITURAS E RELEITURAS DA TRAGÉDIA GREGA p. 20 ORESTÉIA 2.1 A Orestéia de Ésquilo p. 27 2.2 Électre de Jean Giraudoux p. 51 2.3 Les mouches de Jean-Paul Sartre p. 63 3 AS RELAÇÕES DE PODER p. 79 3.1 A cidade-estado de Atenas no século V a.C. p. 94 3.2 A França sob ocupação alemã de 1940 a 1944 p. 116 3.2.1 Vichy, o III Reich, de Gaulle e a Resistência p. 128 3.3 A responsabilidade individual p. 157 4 A INFLUÊNCIA CLÁSSICA p. 173 4.1 O metateatro na tragédia grega p. 196 4.2 O metateatro nas releituras francesas p. 205 4.3 A permanência dos mitos gregos p. 218 CONSIDERAÇÕES FINAIS p. 228 REFERÊNCIAS p. 238 8 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho insere-se na Linha de Pesquisa Literatura Comparada e Interdisciplinaridade do PPG - Letras da UFRGS, pois relaciona a Literatura, o Direito e aspectos do contexto histórico em que foram produzidos e encenados os textos do corpus escolhido. Analisamos e relacionamos os textos das tragédias gregas Orestéia de Ésquilo, Electra de Sófocles e a de Eurípides, centradas nas personagens Orestes e Electra, filhos de Agamêmnon, rei de Argos e comandante dos exércitos aqueus na guerra de Tróia, confrontando-os com Électre de Giraudoux e com Les mouches de Sartre, releituras da lenda heróica dos Atridas, focalizando o retorno de Orestes a Argos e a execução da sua vingança, bem como o momento da produção e encenação de cada texto. Desenvolvemos a pesquisa com o objetivo de identificar de que modo estas peças poderiam refletir determinadas relações de poder, a partir de fatos históricos específicos. Assim, a análise procura comparar dois momentos de guerra, já que em Atenas, entre 490 e 479 a. C, tivemos as guerras médicas1, enquanto logo depois, 458 a.C., a Orestéia foi encenada. No âmbito das reescrituras francesas, Électre foi encenada em 1937 e Les mouches, em junho de 1943, quando a Europa vivia o momento imediatamente anterior à II Guerra Mundial e durante a ocupação alemã, em Paris. Em ambas as situações, havia uma conjuntura de profunda tensão e 1 Guerras médicas são as campanhas de 490 (I Guerra Médica) e a de 480-479 a.C. (II Guerra Médica) que opuseram os gregos ao Império Persa, cujo exército incluía também o povo conhecido por medos, que eram originados da Média (Ásia). 9 de confronto, capaz de gerar uma produção artística significativa dentro dos respectivos momentos históricos. Além disso, o corpus escolhido, inegavelmente, ainda dialoga com o leitor/espectador do limiar do século XXI, em função da atualidade do enredo que discute conflitos entre personagens que têm angústias e emoções que possibilitam, mesmo nos dias de hoje, uma identificação, se não diretamente pela ação em si, mas pelos sentimentos germinados pelo embate e sofrimentos dos heróis. Dessa forma, as releituras estão inseridas no seu momento histórico e com ele dialogam, não numa relação direta de representação da realidade, pois não há essa proposta, mas como espelhos partidos, idéia já utilizada por Vidal-Naquet ao se referir às tragédias gregas e à polis (VIDAL-NAQUET, 2002). As três hipóteses que nortearam a pesquisa e que foram desenvolvidas no trabalho podem ser sistematizadas da seguinte forma: PRIMEIRA HIPÓTESE: 1. Os autores do século XX, bem como Ésquilo, Sófocles e Eurípides, utilizaram o deslocamento da percepção de sua audiência e a autodiscussão da peça dentro da peça, utilizando métodos diferentes para o recurso do metateatro. Essa hipótese percorre toda a pesquisa, pois envolve a análise dos textos através de uma leitura condicionada pelo século XXI. O leitor contemporâneo tem possibilidade de estudar o corpus, considerando instrumentos de interpretação construídos posteriormente à produção e
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