UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ JOSÉ ANTONIO MARÇAL POLÍTICA DE AÇÃO AFIRMATIVA NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ E A FORMAÇÃO DE INTELECTUAIS NEGROS(AS) CURITIBA 2011 2 JOSÉ ANTONIO MARÇAL POLÍTICA DE AÇÃO AFIRMATIVA NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ E A FORMAÇÃO DE INTELECTUAIS NEGROS(AS) Dissertação apresentada ao Setor de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Paraná, como parte das exigências para obtenção do título de Mestre em Educação. Orientador: Prof. Dr. Paulo Vinicius Baptista da Silva CURITIBA 2011 3 Dedico este estudo aos negros e às negras que, ao longo de mais de 300 anos e usando as estratégias mais variadas, vêm resistindo contra ao apagamento da herança africana no Brasil. Especialmente, dedico este estudo à minha mãe Odete P. Marçal (in memória) que soube incutir em mim o caminho da educação com uma forma possível para sobreviver e lutar “na moral” e ao meu pai Alcedino Marçal que na simplicidade e labuta de toda uma vida me ajudou a chegar até aqui. 4 AGRADECIMENTOS Aos amigos e amigas do movimento social negro de Belo Horizonte, especialmente, dos Agentes de Pastoral Negros e da Juventude Negra e Favela, Larissa, Flávia, Vanessa, Josemeire, Elisângela, Evandro Nunes, entre outros, pelo diálogo, pela amizade e pelos sonhos de uma sociedade racialmente justa. Também aos amigos Anderson e Paulo C. Terra do CESAM-BH pela troca de ideias, amizade e providencial ajuda. Aos amigos Anderson e Paulo C. Terra do CESAM-BH e à Emília Maria, pela troca de ideia, amizade, carinho e providencial ajuda. Ao amigo/irmão Sérgio, pela dedicada ajuda em Curitiba e por me permitir conhecer pessoas tão significativas como Fernanda, “Seu Zé”, Nelsi e familiares, bem como os amigos do futebol com quem convivi quase todas as tardes de sábado, momentos importantes para o corpo e a mente. Aos amigos e amigas do movimento social negro de Curitiba, especialmente Jaime Tadeu, Paulo Borges e Iyagunã, históricos guerreiros e guerreira da causa negra nesta cidade, pelo exemplo de devoção e persistência na luta contra o racismo. Ao professor Paulo Vinicius pela orientação e a amizade, acolhida e confiança durante a realização deste estudo. Aos professores Walter Praxedes e Andréa Caldas, pela participação e significativas contribuições ao estudo no exame de qualificação. Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPR, Tais Tavares, Ângelo de Souza, Andréa Gouveia, Rose Trojan, Regina Michelotto e Nkolo Foé, pelas discussões nas disciplinas do Programa fundamentais para consolidação das reflexões feitas neste estudo. Aos colegas do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPR, Tânia, Cintia, Ana Lúcia, Marco e Wellington, pelas trocas, pelas angústias e alegrias vividas junto. Aos estudantes que concederam as entrevistas para este estudo, pela presteza em atender ao convite e demais estudantes do NEAB-UFPR pela amizade, A Débora Oyayomi Cristina de Araujo pelo companheirismo e pelo competente trabalho de revisão deste texto. Ao Programa Internacional de Bolsa de Pós-Graduação da Fundação Ford, extensivo à Fundação Carlos Chagas, parceira do Programa no Brasil que, além do substantivo suporte financeiro, possibilitou que eu fortalecesse minha auto-estima pois ao ser selecionado e participar de um Programa dessa dimensão tive uma percepção mais concreta da minha própria capacidade intelectual. 5 A De Ó (Estamos Chegando) Estamos chegando do funda da terra, estamos chegando do ventre da noite, da carne do açoite nós somos, viemos lembrar. Estamos chegando da morte dos mares, estamos chegando dos turvos porões, herdeiros do banzo nós somos, viemos chorar. Estamos chegando dos pretos rosários, estamos chegando dos nossos terreiros, dos santos malditos nós somos, viemos rezar. Estamos chegando do chão da oficina, estamos chegando do som e das formas, da arte negada que somos, viemos criar. Estamos chegando do fundo do medo, estamos chegando das surdas correntes, um longo lamento nós somos, viemos louvar. [...] Estamos chegando dos ricos fogões, estamos chegando dos pobres bordéis, da carne vendida nós somos, viemos amar. Estamos chegando das velhas senzalas, estamos chegando das novas favelas, das margens do mundo nós somos, viemos dançar. Estamos chegando dos trens dos subúrbios, estamos chegando nos loucos pingentes, com a vida entre os dentes chegamos, viemos cantar. Estamos chegando dos grandes estádios, estamos chegando da escola de samba, sambando a revolta chegamos, viemos gingar. [...] Estamos chegando do ventre de Minas, estamos chegando dos tristes mocambos, dos gritos calados nós somos, viemos cobrar. Estamos chegando da cruz dos engenhos, estamos sangrando a cruz do batismo, marcados a ferro nós fomos, viemos gritar. Estamos chegando do alto dos morros, estamos chegando da lei da baixada, das covas sem nome chegamos, viemos clamar. Estamos chegamos do chão dos quilombos, estamos chegando no som dos tambores, dos Novos Palmares nós somos, viemos lutar. [...] (Pedro Tierra, Pedro Casaldáliga, Milton Nascimento) 6 RESUMO Os polêmicos debates em torno da implementação de políticas de ação afirmativa no ensino superior públicos para os negros dão indícios da persistência de um imaginário coletivo racista na sociedade brasileira. Partindo da interpretação de que as relações raciais no Brasil constituem uma hegemonia racial branca, o estudo focou a política de cotas raciais implementada na Universidade Federal do Paraná (UFPR) como campo de análise, objetivando compreender a inter-relação entre os conceitos de hegemonia, cultura, educação, intelectual orgânico. A pergunta-problema do estudo tem a seguinte formulação: quais as condições existentes e necessárias para a formação intelectual de alunos negros que ingressaram pela política de cotas da UFPR? A metodologia utilizada foi a Histórico-dialética proposta por Antonio Gramsci. Como método de investigação utilizou-se a entrevista qualitativa/naturalista, mas também a análise de conteúdo e a observação direta como métodos secundários para se compreender o contexto acadêmico da Universidade. As entrevistas, num total de dez (10), contemplou alunos cotistas raciais ingressantes nos anos de 2005 e 2006 e de cursos de maior e menor concorrência nos vestibulares da Instituição. A partir de quatro mediações analíticas (econômica, social, cultural e simbólica) os relatos, em alguma medida, evidenciaram: 1) a persistência de uma fragilidade econômica, pois a maioria dos entrevistados se manteve durante os estudos através de bolsas, em alguns casos, através de trabalho assalariado, 2) a persistência de uma tensão velada e dificuldade de se integrarem em uma pesquisa de iniciação científica de interesse acadêmico para a maioria dos alunos, 3) deficiências culturais e escolares quase sempre relacionadas às dificuldades sociais e econômicas, e 4) ausência de universo de referências simbólicas caracterizado pela invisibilidade dos negros como referenciais teóricos nos cursos e no contexto acadêmico. Por outro, a participação em projetos de fortalecimento da identidade e a “filiação” à pesquisa sobre relações raciais, por parte de alguns alunos, apontaram uma perspectiva positiva de superação dessas dificuldades, sobretudo nas mediações cultural e simbólica. A análise das trajetórias dos alunos cotistas raciais em conjunto permitiu uma interpretação a partir da ideia de superação dialética. Isto sugere uma práxis pois, diante do contexto acadêmico da Universidade e das marcas racistas presentes no imaginário coletivo brasileiro e, particularmente, curitibano, a formação intelectual de alunos negros precisa articular, ao mesmo tempo, a construção de uma identidade acadêmica crítica e a construção de uma identidade negra positiva. Palavras-chave: Ação afirmativa; Relações Raciais; Intelectuais negros; Hegemonia racial; Historicismo. 7 ABSTRACT The controversial debate surrounding the implementation of affirmative actions for black people in public higher education gives evidence of the persistence of a racist collective imaginary in Brazilian society. Based on the interpretation that racial relations in Brazil are established on a white racial hegemony, the study focused on the racial quota policy implemented at the Federal University of Parana (UFPR) as a field of analysis, to understand the interrelationship between the concepts of hegemony, culture, education, organic intellectual. The question-problem of the study has the following formulation: what are the existing and necessary conditions for the intellectual formation of black students who were admitted to UFPR through its quota policy? The historical-dialectical methodology, proposed by Antonio Gramsci, was used. A qualitative/naturalist interview was used as method for inquiry, while content analysis and direct observation were used as secondary methods to understand the academic context of the University. The interviews, in a total of ten (10), included students admitted through racial quotas in 2005 and 2006, from the courses with the highest and lowest competition in college entrance exams of the Institution. Departing from four analytical mediations (economic, social, cultural and symbolic) the reports, to some extent, showed: 1) persistent economic weakness, as the majority of respondents was maintained throughout the studies by scholarships, in some cases by employment, 2) persistence of an underlying tension and difficulty of integrating into a scientific initiation of academic interest to most students, 3) cultural and educational disabilities almost always related to social and economic difficulties, and 4) absence of symbolic references, in a universe characterized by the invisibility of blacks as theoretical references in courses and in the academic context. On another hand, participation in projects of identity strengthening and "belonging" to research on racial relations by some students showed a positive possibility to overcome such difficulties, especially in cultural and symbolic mediations. The analysis of the trajectories of students admitted through racial quotas as a group allowed an interpretation from the idea of dialectical overcoming. This suggests a praxis since, given the academic context of the University and the racist marks that are present in the Brazilian collective imaginary, particularly in Curitiba, the intellectual training of black students should articulate, at the same time, the construction of a critical academic identity and the construction of a positive black identity. Keywords: Affirmative action, Racial Relations; black intellectuals; Racial Hegemony, Historicism. 8 LISTAS DE TABELAS GRÁFICO 1 – DISTRIBUIÇÃO PERCENTUAL DAS PESSOAS OCUPADAS, SEGUNDO COR OU RAÇA E GRUPAMENTO DE ATIVIDADE – MARÇO DE 2004 (PME)....................................... 22 TABELA 1 – DISTRIBUIÇÃO DOS ESTUDANTES SEGUNDO A COR............................................ 93 TABELA 2 – MÉDIA DO COEFICIENTE DE RENDIMENTO ACADÊMICO POR CURSO E MODALIDADE DE ACESSO DOS ALUNOS QUE INGRESSARAM EM 2003................................... 94 TABELA 3 – PERCENTUAL DOS ALUNOS COTISTAS E NÃO-COTISTAS COM COEFICIENTE DE RENDIMENTOENTRE 5,1 E 10,0 MATRICULADOS NOS CURSOS DE MAIOR CONCORRÊNCIA NOS DOIS SEMESTRES DE 2005............................................................................ 95 GRÁFICO 2 – PERCENTUAL DE COTISTAS RACIAIS APROVADOS ENTRE 2005 E 2007 NAS DUAS ETAPAS DO VESTIBULAR DA UFPR....................................................................................... 104 TABELA 4 – INSCRITOS E APROVADOS PELO SISTEMA DE COTAS RACIAIS NOS VESTIBULARES DE 2005 A 2010........................................................................................................... 105 TABELA 5 - APROVADOS NEGROS NA UFPR, 2004 A 2006............................................................. 106 TABELA 6 – DISTRIBUIÇÃO DE APROVADOS AUTO-DECLARADOS NEGROS SEGUNDO AS MODALIDADES DE INGRESSO................................................................................. 107 TABELA 7 – INFORMANTES SEGUNDO O CURSO E SETOR.......................................................... 1 15 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 10 PARTE I – ABORDAGEM HISTÓRICO-POLÍTICA CAPITULO 1 – Relações raciais no Brasil: uma abordagem histórico-cultural ........... 17 1.1 Raça como um construto social ................................................................................ 18 1.2 Relações raciais e produção científica no Brasil ...................................................... 22 1.3 Política e racismo no Brasil ...................................................................................... 34 1.4 Consequências do racismo e identidade negra ......................................................... 39 CAPÍTULO 2 – Gramsci e sua contribuição teórica....................................................... 44 2.1 A atualidade da teoria gramsciana para os estudos de étnico-raciais ....................... 45 2.2 Conceitos de Hegemonia, Cultura e Educação......................................................... 48 2.3 Conceito de Intelectual orgânico .............................................................................. 52 2.3.1 Processo de formação do intelectual orgânico ...................................................... 56 2.3.2 A função social do intelectual orgânico ................................................................ 59 2.4 Aproximações entre os pensamentos de Gramsci e de Amílcar Cabral ................... 61 2.4.1 Os intelectuais orgânicos negros na História ........................................................ 64 PARTE II – POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA NO BRASIL CAPÍTULO 3 – Política Pública de Ação Afirmativa para negros ............................... 71 3.1 Políticas de Ação Afirmativa: uma breve nota comparativa .................................... 77 3.2 Políticas de Ação Afirmativa e direito no Brasil ...................................................... 83 3.3 Política de Ação Afirmativa e o embate político-ideológico no Brasil .................... 87 3.4 Política de ação afirmativa no ensino superior público brasileiro ......................... 91 CAPÍTULO 4 – O Programa de Ações Afirmativas na Universidade Federal do Paraná ............................................................................................................................. 100 4.1 Método de investigação ............................................................................................ 112 4.2 Análise das informações ........................................................................................... 114 4.2.1 Mediação Econômica ............................................................................................ 117 4.2.2 Mediação Social .................................................................................................... 120 4.2.3 Mediação Cultural ................................................................................................. 125 4.2.4 Mediação Simbólica .............................................................................................. 127 4.3 Método de interpretação............................................................................................ 131 5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................... 138 REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 143 ANEXOS ........................................................................................................................ 151 10 INTRODUÇÃO Tudo tem uma história. E a história deste estudo está ligada à história de vida do seu autor. Sou filho de negros, meu pai pedreiro, trabalhador incansável. E minha mãe dona de casa, falecida ainda na minha infância. Durante toda a vida passei dificuldades de ordem econômica e social, mas sempre depositei muita esperança nos estudos. Meu interesse pelos estudos foi talvez a única herança deixada por minha mãe. Também comecei a trabalhar cedo, aos 12 anos. Mas foi na juventude que comecei o processo de tornar-me negro. Já estava fora de Minas Gerais, de onde saí para tentar realizar o sonho de ser padre missionário. Os anos como seminarista me possibilitaram relacionar com a pobreza de “outro lugar”. A convivência com pessoas humildes nas comunidades de base na região de Sumaré, em São Paulo, e na região de Pinhais e Piraquara, no Paraná, me ajudou a compreender o que era “opção preferencial” pelos mais pobres. E esta opção preferencial pelos empobrecidos acabou por orientar as minhas escolhas teóricas no curso de Filosofia. Enquanto estudante de Filosofia em Curitiba, eu tive a felicidade de conhecer a discussão da Filosofia da Libertação, feita no Instituto de Filosofia da Libertação (IFIL). Mesmo frequentando por pouco tempo o IFIL, a máxima de que a filosofia deveria ocupar-se com a realidade concreta marcou fortemente a minha vida como professor e militante do movimento social negro. Depois de voltar a Minas Gerais e me engajar na luta contra o racismo tanto nos Agentes de Pastoral Negros (APN’s) como no Movimento de Juventude Negra e Favelada, dediquei-me aos estudos com o objetivo de compreender melhor o funcionamento do racismo no Brasil pois as explicações que dava ou ouvia pareciam-me insuficientes. Com esse breve relato pretendo mostrar que esse estudo é resultado de um processo histórico individual e coletivo, ou melhor, é uma etapa deste processo que se iniciou há aproximadamente uma década e meia, mas que não está no seu final. Como militante antirracista, percebo que estamos em um novo momento histórico no que diz respeito à superação das desigualdades raciais. E todo novo momento histórico impõe aos homens e mulheres novos/velhos desafios. Pontualmente, a motivação para estudar esse tema foram dois artigos sobre ações afirmativas publicados no jornal Irohin: Os desafios da permanência, escrito por Ana Luíza P. Flauzina e E lá dentro, o que fazer?, escrito por Elisa L.
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