Peter Burke Uma História Social do Conhecimento de Gutenberg a Diderot Tradução: Plínio Dentzien Sumário Lista de Créditos e Ilustrações Prefácio e Agradecimentos I. SOCIOLOGIAS E HISTÓRIAS DO CONHECIMENTO: INTRODUÇÃO O surgimento da sociologia do conhecimento • O renascimento da sociologia do conhecimento • A história social do conhecimento • O que é conhecimento? • A pluralidade de conhecimentos II. O OFÍCIO DO SABER: OS LETRADOS EUROPEUS Continuidades e descontinuidades • A Idade Média • As consequências da impressão tipográfica • Oportunidades em Igrejas e Estados • Diferenciação estrutural • Identidades de grupo • O Islã e a China III. A CONSOLIDAÇÃO DO CONHECIMENTO: ANTIGAS E NOVAS INSTITUIÇÕES O Renascimento • A Revolução Científica • O Iluminismo • Conclusões e comparações IV. O LUGAR DO CONHECIMENTO: CENTROS E PERIFERIAS A República das Letras • Nagasaki e Deshima • Pesquisa de campo e gabinete • A importação de conhecimentos • As capitais do conhecimento • A geografia das bibliotecas • A cidade como fonte de informação sobre si mesma • O processamento do conhecimento • A distribuição do conhecimento • As descobertas no contexto global V. A CLASSIFICAÇÃO DO CONHECIMENTO: CURRÍCULOS, BIBLIOTECAS E ENCICLOPÉDIAS A antropologia do conhecimento • Variedades de conhecimento • Disciplina e ensino • A organização dos currículos • A ordem das bibliotecas • A estrutura das enciclopédias • Lugares-comuns • A reorganização do sistema • A reestruturação do currículo • A reestruturação das bibliotecas • A organização dos museus • A alfabetação das enciclopédias • O avanço do conhecimento • Conclusão VI. O CONTROLE DO CONHECIMENTO: IGREJAS E ESTADOS O surgimento da burocracia • A Igreja como modelo • Relações exteriores • Informação e Império • Assuntos internos • O mapeamento do Estado • O surgimento da estatística • Guarda e recuperação da informação • Censura • A difusão da informação VII. A COMERCIALIZAÇÃO DO CONHECIMENTO: O MERCADO E A IMPRESSÃO GRÁFICA O nascimento da propriedade intelectual • Espionagem industrial • Comércio e informação • A informação e a VOC • O surgimento das bolsas de valores • A impressão e o comércio do conhecimento • Veneza no século XVI • Amsterdã no século XVII • Londres no século XVIII • Jornais e revistas • O surgimento das obras de referência • Enciclopédias • Comparações e conclusões VIII. A AQUISIÇÃO DE CONHECIMENTO: A PARTE DO LEITOR Leitura e recepção • Obras de referência • A ordem alfabética • Auxílio à pesquisa histórica • Apropriações individuais • De Montaigne a Montesquieu • Aquisição do conhecimento de outras culturas IX. A CONFIANÇA E A DESCONFIANÇA NO CONHECIMENTO: UMA CODA O renascer do pirronismo • Ceticismo pragmático • O método geométrico • O surgimento do empirismo • A nota de pé de página • Credulidade, incredulidade e a sociologia do conhecimento Notas Bibliografia Selecionada Índice Remissivo Lista de Créditos e Ilustrações 1. Observatório de Hveen, gravura de Tycho Brahe, Astronomiae Instauratae Mechanica (1598). p.45 2. Mapa da província de Nanquim, in M. Martini, Novus Atlas Sinensis [Novo Atlas Chinês] (Amsterdã, c.1655), entre as p.96-7. Cópia na Biblioteca da Universidade de Cambridge (Atlas 3.65.12). p.55 3. Oost Indisch Huis [A Casa das Índias Orientais], gravura extraída de P.Zesen, Beschreibung von Amsterdam [Descrição de Amsterdã] (Amsterdã, 1664). Cópia na British Library (1300 D 7). p.61 4. Bolsa de valores de Amsterdã, pintura de E.de Witte (1653). Roterdã, Museu Boymans van Beuningen. p.63 5. Árvore do conhecimento, página de rosto de Arbor Scientiae, de R. Lulio (1515; reed. de 1635). Cópia na Biblioteca da Universidade de Cambridge (P*.3.52). p.83 6. Árvore das Repartições Francesas, de Charles de Figon. Extraído de Discours des Estats (Paris, 1579). Biblioteca da Universidade de Cambridge (Pryme D.I., lâmina dobrável). p.84-5 7. Tabula primi libri, in Andréas Libavius, Alchemia (Frankfurt, 1597. Sig. b2, verso). Cópia na Biblioteca da Universidade de Cambridge (L.4.14). p.92 8. Tableaux accomplis, de C. Savigny (1587). Paris, Biblioteca Nacional. p.93 9. Biblioteca da Universidade de Leiden, de J.C. Woudanus. Gravada por W. Swanenburgh (1610). Biblioteca da Universidade de Leiden. p.99 10. Frontispício do Museum Wormianum, gravura de G. Wingendorp (1655). Biblioteca da Universidade de Cambridge (M.13.24). p.101 11a, 11b. Frontispícios de Francis Bacon, Instauratio magna (gravura, 1620. Biblioteca da Sorbonne, foto de Jean-Loup Charme; Fonds V. Cousin, 5525 Rés) e Silva Sylvarum (gravura, 1627. Biblioteca da Universidade de Cambridge, LE 24.25). p.106-7 12. O espião (entalhe, séc. XVII). Cortesia da Scuola Grande di San Rocco, Veneza. p.115 13. România (detalhe), de J. Castaldus, in Ortelius, Theatrum orbis terrarum (Antuérpia, 1570). p.123 Prefácio e Agradecimentos Este livro se baseia em quarenta anos de estudo dos primeiros textos modernos, bem como em obras secundárias. As notas de referência e a bibliografia, porém, se limitam às obras dos autores modernos, deixando as fontes primárias para discussão no próprio texto. Embora mais atenção seja dada às estruturas e tendências do que aos indivíduos, é impossível discutir um tema como este sem apresentar centenas de nomes, e os leitores encontrarão no índice remissivo as datas e breve descrição de cada pessoa mencionada no texto. O estudo aqui publicado é decorrente de um longo projeto que resultou em muitos artigos, assim como em conferências e seminários apresentados em Cambridge, Delfos, Louvain, Lund, Oxford, Pequim, São Paulo e São Petersburgo. Depois de longo tempo em fogo brando, o projeto foi finalmente levado à ebulição pelo convite para proferir a primeira série das Conferências Vonhoff na Universidade de Groningen. Agradeço especialmente a Dick de Boer por me receber em Groningen e por me lembrar da importância das mudanças no sistema de conhecimento nos séculos XIII e XIV. Agradeço também a Daniel Alexandrov, Alan Baker, Moti Feingold, Halil Inalcik, Alan Macfarlane, Dick Pels, Vadim Volkoff e Jay Winter por ajudas de tipos distintos, e a Joanna Innes por me permitir consultar seu artigo clássico – embora ainda não publicado – sobre o uso da informação pelo governo britânico. Sou devedor de Chris Bayly, Francisco Bethencourt, Ann Blair, Gregory Blue, Paul Connerton, Brendan Dooley, Florike Egmond, José Maria González García, John Headley, Michael Hunter, Neil Kenny, Christel Lane, Peter Mason, Mark Phillips, John Thompson e Zhang Zilian por comentários sobre partes do manuscrito. Minha mulher Maria Lúcia leu o manuscrito na íntegra e levantou algumas questões utilmente embaraçosas, sugerindo também aperfeiçoamentos. O livro é dedicado a ela. · I · Sociologias e Histórias do Conhecimento: Introdução O que é conhecido sempre parece sistemático, provado, aplicável e evidente para aquele que conhece. Da mesma forma, todo sistema alheio de conhecimento sempre parece contraditório, não provado, inaplicável, irreal ou místico. FLECK Segundo alguns sociólogos, vivemos hoje numa “sociedade do conhecimento” ou “sociedade da informação”, dominada por especialistas profissionais e seus métodos científicos.1 Segundo alguns economistas, vivemos numa “economia do conhecimento” ou “economia da informação”, marcada pela expansão de ocupações produtoras ou disseminadoras de conhecimento.2 O conhecimento também se tornou uma questão política importante, centrada no caráter público ou privado da informação, e de sua natureza mercantil ou social.3 Historiadores do futuro decerto poderão se referir ao período em torno do ano 2000 como a “era da informação”. Ironicamente, ao mesmo tempo em que o conhecimento invade a cena dessa maneira, sua confiabilidade é questionada por filósofos e outros de maneira cada vez mais radical, ou pelo menos em voz muito mais alta do que antes. O que costumávamos pensar como tendo sido descoberto é hoje descrito muitas vezes como “inventado” ou “construído”.4 Mas pelo menos os filósofos concordam com os economistas e com os sociólogos em definir nosso próprio tempo em termos de sua relação com o conhecimento. Não devemos nos precipitar supondo que nossa época é a primeira a levar a sério essas questões. A mercantilização da informação é tão velha quanto o capitalismo (e é discutida no capítulo 6). O uso, por parte dos governos, de informações sistematicamente coletadas sobre a população é, em termos literais, história antiga (particularmente história antiga romana e chinesa). Quanto ao ceticismo relativo às pretensões ao saber, remonta pelo menos ao filósofo grego Pirro. O objetivo destas observações não é substituir uma teoria bruta da revolução por uma teoria igualmente bruta da continuidade. Um dos principais objetivos deste livro é tentar definir as peculiaridades do presente de modo mais preciso, abordando-o da perspectiva das tendências de longo prazo. Os debates correntes muitas vezes estimulam os historiadores a formularem novas perguntas sobre o passado. Na década de 1920, a inflação crescente provocou a ascensão da história dos preços. Nas décadas de 50 e 60, a explosão populacional incentivou a pesquisa em história demográfica. Nos anos 90, há um interesse crescente pela história do conhecimento e da informação. Passemos agora do conhecimento na sociedade ao tema complementar e oposto do elemento social no conhecimento. Um propósito deste livro pode ser formulado numa única palavra: “desfamiliarização”. A esperança é atingir o que o crítico russo Viktor Shklovsky descreveu como ostranenie, uma espécie de distanciamento que faz com que o que era familiar pareça estranho e o que era natural, arbitrário.5 O objetivo é nos tornarmos (tanto escritor quanto leitores) mais conscientes do “sistema de conhecimento” em que vivemos, descrevendo e analisando sistemas que mudaram no passado. Quando se habita um sistema, ele aparece em geral como “senso comum”. É só pela comparação que podemos vê- lo como um sistema entre outros.6 Como disse o cientista polonês Ludwik Fleck, “o que é conhecido sempre parece sistemático, provado, aplicável e evidente para aquele que conhece. Da mesma forma, todo sistema alheio de conhecimento sempre parece contraditório, não provado, inaplicável, irreal ou místico”.7 A ideia segundo a qual o que os indivíduos acreditam ser verdade ou conhecimento é influenciado, se não determinado, por seu meio social não é nova. Nos primórdios da era moderna – para mencionar apenas três exemplos famosos – a imagem dos “ídolos” da tribo, caverna, mercado e teatro, de Francis Bacon, as observações sobre a “arrogância das nações”(em outras palavras, etnocentrismo), de Giambattista Vico, e o estudo da relação entre as leis dos diferentes países e seus climas e sistemas políticos, de Charles de Montesquieu, expressam essa intuição fundamental de maneiras diferentes e serão discutidas mais detalhadamente adiante (187).8 De todo modo, passar da intuição para o estudo organizado e sistemático é muitas vezes um movimento difícil, que pode levar séculos para se consumar. Esse foi certamente o caso do que hoje é conhecido como “sociologia do conhecimento”. O surgimento da sociologia do conhecimento Como empreendimento organizado, a sociologia do conhecimento remonta ao começo do século XX.9 Mais exatamente, pelo menos três empreendimentos semelhantes tiveram início em três países diferentes: França, Alemanha e Estados Unidos. Por que teria surgido uma preocupação especial com a relação entre conhecimento e sociedade nesses três países em particular é um problema interessante para a própria sociologia do conhecimento. Na França, onde Auguste Comte já pleiteara uma história social do conhecimento, uma “história sem nomes”, Émile Durkheim e seus seguidores, notadamente Marcel Mauss, estudavam a origem social de categorias fundamentais ou “representações coletivas”, como espaço e tempo, sagrado e profano, a categoria de pessoa e assim por diante, em outras palavras, atitudes tão fundamentais que as pessoas não sabem que as têm.10 O que era novo era o exame sistemático das categorias “primitivas” sobre as quais viajantes e filósofos tinham comentado em séculos anteriores, e também a conclusão geral de que as categorias sociais são projetadas sobre o mundo natural, de modo que a classificação das coisas reproduz a classificação das pessoas.11 Dessa ocupação durkheimiana com as representações coletivas se originaram vários estudos importantes, incluindo alguns sobre a Grécia antiga e também um livro sobre as categorias fundamentais do pensamento chinês, do sinólogo francês Marcel Granet.12 De modo semelhante, os historiadores Marc Bloch e Lucien Febvre produziram notáveis análises das “mentalidades coletivas” ou pressupostos compartilhados. Bloch adotou essa abordagem em seu estudo da crença nos poderes curativos dos reis da França e da Inglaterra, e Febvre em sua análise do assim chamado “problema da descrença” no século XVI, argumentando que o ateísmo era impensável naquele tempo.13 Nos Estados Unidos, Thorstein Veblen, mais conhecido por suas teorias do consumo conspícuo e da “classe ociosa”, também estava interessado na sociologia do conhecimento. Como convinha a um antigo aluno de Charles Peirce e colega de John Dewey, dois filósofos pragmáticos que vinham criticando os pressupostos da “correspondência” entre a realidade e o que dizemos sobre ela, Veblen estava interessado na sociologia da verdade. Estava particularmente preocupado com a relação de grupos sociais e instituições específicas com o conhecimento. Nessa área, é responsável por três contribuições importantes. A primeira, publicada em 1906, considerava o lugar da ciência na civilização moderna, argumentando que o moderno “culto à ciência”, como o chamava, inclusive a inclinação pelas explicações impessoais em lugar das antropomórficas, era uma consequência do surgimento da indústria e da tecnologia das máquinas. Num estudo sobre o mundo acadêmico norte- americano, Veblen iluminou os escuros desvãos do sistema universitário com
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