ELIANA BRAGA ALOIA ATIHÉ UMA EDUCAÇÃO DA ALMA: LITERATURA E IMAGEM ARQUETÍPICA Tese de doutorado apresentada à banca Examinadora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de doutor em Educação, sob orientação da Profa. Dra. Maria do Rosário Silveira Porto. FACULDADE DE EDUCAÇÃO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO São Paulo 2006 1 Banca examinadora Profa. Dra. Maria do Rosário Silveira Porto (F.E.U.S.P.) Profa. Dra. Maria Cecília Sanchez Teixeira (F.E.U.S.P.) Profa. Dra. Beatriz Alexandrina de Moura Fétizon (F.E.U.S.P.) Porá. Dra. Maria Inês Pagliarini Cox (U.F.M.T.) Prof. Dr. Dennis Domeneghetti Badia (U.N.E.S.P. Araraquara) 2 RESUMO Esta tese procura registrar uma história de vida articulada por imagens da literatura apropriadas pela subjetividade no sentido de uma educação do cultivo da alma. Para isso, lanço- me, a partir de alguns trajetos de leitura, a um percurso teórico-analítico de cunho antropo- literário, no qual o texto é compreendido como mito e incorporado à história de vida do leitor como mediador simbólico inter e intrasubjetivo, cuja abertura semântica deve-se justamente à presença da imagem arquetípica segundo noção de James Hillman (1995:10). Os potenciais pedagógicos da literatura são veiculados pelas imagens portadoras do arquétipo como “janelas de aprendizagem” (Paula Carvalho) que permitem que o leitor transite do texto à existência e de volta, num circuito que o auxilia a promover a equilibração de polaridades e a elaboração criativa da alteridade representada, em última instância, pelo inconsciente, no sentido da construção da identidade do ego e em direção à individuação. São eixos organizadores: (1) a Arquetipologia Geral no contexto da Teoria Geral do Imaginário, de Gilbert Durand; (2) a noção de imagem no contexto da Psicologia Arquetípica, segundo James Hillman e (3) a noção de Educação Fática em José Carlos de Paula Carvalho. A partir de uma perspectiva hermenêutica que procura a abertura do discursivo rumo ao existencial (Paula Carvalho, 1998:59), recolho imagens de três obras clássicas da literatura, lidas por mim aos treze anos de idade, e que me conduziram na direção da descoberta da imagem essencial – a da educadora -, processo no qual enxergo a finalidade última da educação. As referidas obras lidas à margem da escola tornaram-se especialmente significativas devido à dinâmica proposta pela dimensão escolar oficial, também ela imprescindível para que a experiência com o significado se construísse. Retorno assim a Madame Bovary, de Gustave Flaubert, como exemplo de uma literatura para a formação da sensibilidade heróica; ao Decamerão, de Giovanni Boccaccio, como exemplo de uma literatura para a formação da sensibilidade mística e a O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë, como exemplo de uma literatura para a formação da sensibilidade dramática. Unitermos: alma; arquétipo; educação; Estruturas Antropológicas do Imaginário; imagem; leitura; mito; trajetividade. 3 ABSTRACT This present study tries to register images of a life history articulated by images of the literature – these latter ones appropriated by the subjectivity towards an education of the soul. Being so, I launch myself, starting from my experiences as a reader, into a theoretical-analytical path based on an anthropo–literary view in which literature is understood as myth and life history, i.e., as inter and intra-subjective symbolic mediator whose semantic openness is due mostly to the presence of the archetypal image – according to James Hillman’s denomination ( 1995, 10). The pedagogical potentials of the literature are, in this way, transmitted by the images bearing an archetypal meaning that circulates from the text towards the life of the reader, to promote the equilibrium of the polarities, through the creative elaboration of alterity represented by the unconscious, in the construction of the ego´s identity. The thematic axe’s that organize this study are: 1) The General Archetypology, of Gilbert Durand (1997); 2) the notion of image according to the Archetypal Psychology, of James Hillman (1997b). From an hermeneutic perspective, which looks for an openness that goes from the discourse towards the existential (Paula Carvalho, 1998, 59), I get images from three classical novels, in order to understand themselves in the convergence of life with reading, even guiding me to the direction of the discovery of my own essential image or daimon – in which I recognize the objective of education. The mentioned novels were read apart from school. Nevertheless, they became specially significant in my educational process due to the dynamism proposed by the official schooling dimension – also completely necessary so that this experience with meaning could be built. So, I come back to Madame Bovary, by Gustave Flaubert, as an example of a literature that forms the heroic sensibility; to Decameron, by Giovanni Bocaccio, as an example of a literature that forms the mystic sensibility; to O morro dos ventos uivantes, by Emily Brontë, as an example of a literature that forms the dramatic sensibility. Key-words: archetype; education; Anthropological Structures of the Imaginary; image; reading; myth; soul; trajectivity. 4 DEDICATÓRIA Para Dinorah e Pietro, meus pais: deuses tutelares que me ensinaram a amar os livros e ainda hoje me presenteiam com a sustança de seu amor e deliciosas comidinhas. Para Edu, meu marido, herói noturno, polaridade complementar e sensível sensorialidade. Companheiro de tantos anos e de tantas aventuras. Para meus filhos: Heloísa Helena – semente que repousa sob a terra perfumada pela chuva. Pedro Paulo – fruto que amadurece ao sol. Minha Perséfone. Meu Triptólemo. Para Ana Cristina, minha irmã, educadora de muitos olhares que reencontrou e me ensinou o caminho da escola pelo atalho encantado da arte. Para Monteiro Lobato, o pai literário que meu pai me deu de presente. 5 AGRADECIMENTOS A Maria do Rosário Silveira Porto – Rosinha -, pedra firme e serena em que tive a sorte de vir amolar minha faca (como bem disse a Ivoneti). Minuciosa editora, orientadora de boa prosa, casa aberta e coração grande como os quintais antigos de Itapetininga. A dona Maria do Carmo, minha primeira professora, que me pôs no colo quando chorei de medo da escola e me ensinou a rezar a oração da Ave-Maria. A todos os meus alunos reunidos na imagem da aluna mestra e colega Soraia Saura, com a pretensiosa esperança de ter ajudado alguns deles a fazerem germinar suas próprias sementes de carvalho. Aos meus professores luminosos e também aos sombrios, porque as crianças, como as plantas, precisam tanto da luz quanto da sombra para vicejar. A Maria Cecília Sanchez Teixeira e Maria Inês Pagliarini Cox, generosas Damas de Copas, pela banca de qualificação acolhedora e instigante. A José Carlos de Paula Carvalho, Angelina Batista, Marcos Ferreira dos Santos, Helenir Suano e Laura Villares de Freitas, mestres que me iniciaram nos mistérios do imaginário. A Regina Mara Ramo Aneiros, leitora contumaz, arguta interlocutora, mas, principalmente, amiga querida. A Maria Luiza Borghi, Maria Cristina Martins e Anamélia Bueno Buoro, educadoras, parceiras e amigas que, como eu, acreditam na educação e na alma. A June Alice Izzo, que me levou até Jung e primeiro me falou das riquezas que dormiam nas profundezas do Hades. A Alberto Lima, que muito me ensinou sobre Quíron, o curador ferido. A Bia Costa, amiga dos computadores e sócia em lucrativos escambos culturais. A Beth Kok, pequena fada das imagens e alma gentil. A Solange Cleide Francisco, secretária do EDA, imagem-síntese da doce eficiência. 6 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 3 PARTE UM Pequena alma terna flutuante: educação, história de vida e literatura 42 No encalço do logos da alma 100 PARTE DOIS Três ensaios Um esclarecimento preliminar 136 I. Madame Bovary, de Gustave Flaubert As leituras perigosas: literatura e o cultivo da alma na sensibilidade heróica - Enredo 141 - Entre o homem-macaco e anima 146 - Diairetismo heróico: dois bovarismos, duas educações 154 - “Camadas de cores sobrepostas”: a anima ambígua do herói 167 - Parênteses para a outra Madame Bovary 188 Madame Bovary e “as faces do tempo”: imagens do Regime Diurno para um aprendizado da morte 198 - A heroína, o tempo, o destino 198 Imagens teriomorfas em Madame Bovary 207 Imagens nictomorfas em Madame Bovary 215 Imagens catamorfas em Madame Bovary 225 7 II. Decamerão,de Giovanni Boccaccio No jardim das histórias, um refúgio para a sensibilidade mística - Enredo 231 - No seio da Madona das histórias: imagens de uma educação noturna 235 - “Minhas adoráveis mulheres” ou o feminino iniciador 249 - Imagens da sensibilidade mística nas histórias do Decamerão 257 O bandido que virou santo 257 O jardim secreto e o enterrado vivo 259 O coração na taça 260 O amor num vaso de manjericão 262 O amante na barrica 264 - O mundo de pernas para o ar 265 III.O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë Literatura, educação e redenção - Enredo 270 - As “mulheres escrevinhadoras”: literatura e harmonização dos contrários 277 - Fantasmas na engrenagem: O morro dos ventos uivantes e a sombra do heróico 285 - Deuses narradores: o “acordo vivo” entre Nelly Dean e o sr. Lockwood 291 - Alma mestra, alma aprendiz: o anjo dos livros 307 DESPEDIDA 318 BIBLIOGRAFIA 322 8 À noite, quando me deitei, dormi imediatamente. E sonhei. Um sonho muito leve, muito doce e muito bonito. Eu ia andando por um caminho liso, quando, de repente, me surgiu uma escola diante dos olhos. Era uma escola diferente da que eu conhecia – grande, numa grande casa que parecia um palácio. Para chegar à porta, atravessava-se um largo jardim florido. Tinha-se a impressão de que o jardim continuava lá dentro, tantas flores lá dentro havia nos jarros, nas mesas e nos outros móveis. Pelas janelas abertas, o sol entrava luminosamente. As paredes, cobertas de mapas, quadros e desenhos, davam aos olhos um efeito deslumbrante. Havia um mundo de crianças naquelas salas. E tudo alegre, risonho, em liberdade. Uns escreviam, outros desenhavam, outros organizavam coleções de insetos, ou liam, ou traçavam figuras no quadro-negro. Estavam sentados apenas os que precisavam estar sentados; moviam-se os que tinham necessidade de se mover. E todos trabalhavam. Sentia-se que aquela gente cuidava gostosamente dos seus deveres, sem receio de castigo, sem medo de ninguém. E o professor, que eu não via? Não era um só, eram muitos professores. Se não me dissessem, eu não acreditava. Tinham tanta bondade no rosto, tanta brandura, delicadeza e carinho para a meninada, que eu pensei que fossem apenas companheiros mais velhos dos alunos. Fiquei à porta, silenciosamente, a olhar maravilhado para tudo aquilo. Um menino veio ao meu encontro. - Entra, disse, pegando-me na mão. Aqui não existe rigor de cadeia, nem palmatória, nem sabatinas de tabuada. Acordei. Cazuza, Viriato Correia 9 Eu era um fracasso na escola. A escola não me dizia nada do que eu queria saber. Tudo o que eu sei, eu devo ao mundo, à rua, à vivência e, principalmente, a mim mesmo. Repeti cinco vezes a 2ª série do ginásio. Nunca aprendi nada na escola. Minto. Aprendi a odiá-la. Raul Seixas (Entra a professora, amparada pelo Visitante.) Visitante: A senhora está cansada? Professora: Muito. Visitante: A senhora já é muito velha? Professora: Muito. Muito velha. Visitante: A senhora era nova quando a escola era nova? Professora: A escola já era muito velha quando eu era nova. Visitante: E agora? Professora: Agora eu preciso morrer. Visitante: E a escola? Vai morrer junto? Professora: Não. Vai continuar envelhecendo.” Naum Alves de Souza Todo abismo é navegável a barquinhos de papel. João Guimarães Rosa 10
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