UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS CLÁSSICAS JOSÉ MARCOS MARIANI DE MACEDO A PALAVRA OFERTADA Uma análise retórica e formal dos hinos gregos e da tradição hínica grega e indiana São Paulo 2007 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS CLÁSSICAS A PALAVRA OFERTADA Uma análise retórica e formal dos hinos gregos e da tradição hínica grega e indiana José Marcos Mariani de Macedo Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação de Letras Clássicas do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Doutor em Letras. Orientadora: Profa. Dra. Paula da Cunha Corrêa São Paulo 2007 Para a Adriana AGRADECIMENTOS É comum a quem faz os seus agradecimentos acadêmicos ceder a certa tentação hiperbólica e ser levado a dizer que, sem fulano ou beltrano, o trabalho jamais teria sido realizado. Dito isso, afirmo que sem a minha orientadora, Paula, essa tese jamais teria visto a luz do dia; que ela não tome isso como um exagero. Foi ela quem aceitou o meu projeto inicial, quem me apoiou a cada passo, quem me incentivou a passar um ano em Oxford, quem leu e comentou em detalhes cada capítulo, quem me facilitou o caminho para seguir adiante, quem nunca me faltou em assuntos acadêmicos ou administrativos. A ela toda a minha gratidão. Partes da tese foram apresentadas, sob forma diversa, em alguns seminários. Uma primeira versão dos itens 1.1.2 e 1.1.4 reunidos foi exposta em 2005 num seminário de pós-graduação na FFLCH-USP sob o título “Dois Hinos: Peã a Higiéia de Arífron (PMG 813) e Hino a Dioniso de Sófocles (Antígone, 1115-54)”; agradeço aos participantes pelos comentários e sugestões. O mesmo texto, ligeiramente mais elaborado, foi apresentado em 2006 no Corpus Christi Classical Seminar (Oxford) sob o título “In Between Poetry and Ritual: Two Hymns by Ariphron (PMG 813) and Sophocles (Antigone 1115-54)”. Sou grato a Jan-Mathieu Carbon pelo convite, a Scott Scullion e Lucia Athanassaki pelo vivo interesse demonstrado e sobretudo a Martin West, Philomen Probert, Ewen Bowie, David Fearn, Daniel Kölligan e Victor Davella, que leram previamente o texto e corrigiram vários erros de forma e de fundo. Uma versão preliminar do capítulo 2 foi apresentada no Comparative Philology Graduate Seminar da Universidade de Oxford (2006), sob o título “Short Notes on the Structure of Some Rig Vedic Hymns”. Agradeço de coração a Andreas Willi pelo generoso convite e sobretudo a Elizabeth Tucker, com quem trabalhei cada detalhe do texto e que dedicou várias horas do seu trabalho para aperfeiçoá-lo. Elizabeth apresentou-me ao grupo de filologia comparada da universidade, convidou-me a fazer parte de grupos de estudo e incentivou- me imensamente toda vez que surgiram dúvidas e hesitações da minha parte – sempre com a sua enorme modéstia, circunspecção e elegância. Ela é meu modelo de competência e generosidade intelectual. Aos participantes do seminário, sou grato pelas inúmeras sugestões e críticas. O período de um ano que passei em Oxford não teria sido tão proveitoso, como foi, sem a hospitalidade de Ewen Bowie, a quem expresso o meu sincero agradecimento. Daniel Kölligan também contribuiu em muito para que esse período de estudos fosse dos mais agradáveis: sempre disposto a ajudar, ele foi e continuará sendo um permanente estímulo, e com ele aprendi um bocado. Sua erudição e entusiasmo ainda me servem de alento. Não preciso dizer que todos esses profissionais que me auxiliaram durante a elaboração da tese não compartilham necessariamente das minhas opiniões a respeito da matéria. De fato, os acertos devem-se mais a eles, e os erros à minha ignorância ou obstinação. Agradeço também à FAPESP pela bolsa de doutorado que financiou a pesquisa e à Capes pela bolsa-sanduíche que, durante doze meses, me possibilitou dar seqüência aos estudos na Universidade de Oxford. Devo agradecer ainda aos comentários da banca de qualificação. Aos meus pais, a quem devo tanto, sou grato entre outras coisas por nunca me terem perguntado para que servem essas coisas que eu estudo, embora tivessem todo o direito de fazê-lo. Agradecer aqui à Adriana, minha companheira por mais de vinte anos, dedicar-lhe essa tese, é infinitamente pouco diante de tudo aquilo que ela representa para mim. Mas como ela sabe muito bem disso, que lhe baste a simples dedicatória. São Paulo, outubro de 2007 RESUMO MACEDO, J. M. M. A palavra ofertada. Uma análise retórica e formal dos hinos gregos e da tradição hínica grega e indiana. 2007. 301 p. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2007. O objetivo do trabalho é analisar alguns elementos retóricos e estilísticos de certos hinos gregos de várias épocas. Partindo deles, são estudos também alguns hinos da tradição indiana mais antiga, contidos no Rig Veda, a fim de sugerir traços comuns a essas duas tradições hínicas indo-européias e as suas respectivas especificidades. A tese procura apontar, com base na leitura de hinos paradigmáticos, as estratégias formais dos poetas para louvar a divindade. A preocupação básica é com as estruturas dos hinos, com os expedientes de que se vale o poeta para expressar seu louvor. São descritos os meios com que, no hino grego, a divindade é atraída para perto e como, em certos poemas, essa convenção é quebrada para alcançar efeitos literários. Estudam-se pares contrastantes que estruturam a composição de determinados hinos e também como esse mesmo contraste, em outros casos, é deliberadamente borrado em benefício do louvor. Quanto aos hinos rigvédicos, sugere-se uma forma peculiar a partir do qual se estruturam, a saber, a partir do seu centro. Conclui-se que, em ambas as tradições – a grega e a indiana – o hino é uma oferenda que instaura entre deus e devoto uma relação de reciprocidade na qual ele próprio, hino, atua como objeto de troca – um objeto de troca digno da estima divina, que chama atenção sobre si mesmo à força da sua elaboração estilística e retórica. Palavras-chave: Hino. Grécia antiga. Rig Veda. Estilo. Retórica. ABSTRACT MACEDO, J. M. M. The word as an offering. A rhetorical and stylistic study of the Greek hymns and of the Greek and Indian hymnic tradition. 2007. 301 p. Thesis (Doctoral) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2007. This work aims at analyzing some rhetorical and stylistic features of some Greek hymns from various periods. Taking them as a starting point, some hymns from the Rig Veda will be studied as well, in order to assess certain common characteristics of both hymnic traditions and their peculiarities. Based on the close reading of the hymns, the author tries to show the poet’s formal strategy to praise the deity. The structure of each hymn is a main concern, as are the devices used by the poet to give voice to his praise. As for the Greek hymns, it will be described how the poet persuades the deity to come near and how he builds his work based on contrasting pairs. As for the Rigvedic hymns, it is suggested that some of them are organized around its middle section. The conclusion to be drawn is that in both traditions – in the Greek and the Indian one – the hymn is an offering that creates a bond of reciprocity between deity and his worshipper. The hymn itself is valued in the exchange by means of its stylistic and rhetorical quality. Keywords: Hymn. Ancient Greece. Rig Veda. Style. Rhetoric. SUMÁRIO NOTA INTRODUTÓRIA............................................................................................... 1 CAPÍTULO 1.............................................................................................................. 6 1.1 AUTO-REFERENCIALIDADE................................................................................ 6 1.1.1 Hino Homérico a Apolo (1-52, 135-217)....................................... 8 1.1.2 Sófocles, Antígone (1115-1154).................................................... 22 1.1.3 Calímaco, Hino a Apolo (55-104).................................................. 32 1.1.4 Arífron, Peã a Higiéia (PMG 813)................................................ 38 1.1.5 Aristóteles, Hino à Virtude (PMG 842)......................................... 47 1.1.6 Píndaro, Neméia 7, 1-8.................................................................. 53 1.1.7 Hino Homérico a Héracles............................................................ 55 1.1.8 Hino Homérico a Hefesto.............................................................. 57 1.1.9 Píndaro, Olímpica 12..................................................................... 59 1.1.10 Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias (1-10)....................................... 62 1.1.11 Safo, fr.2 V..................................................................................... 64 1.1.12 Píndaro, Peã 6................................................................................ 66 1.1.13 Sófocles, Antígone (781-800)........................................................ 74 1.1.14 Aristófanes, Cavaleiros (551-564 / 581-594)................................ 77 1.1.15 Sófocles, Traquínias (205-224)..................................................... 81 1.1.16 Hino ao Kouros do Monte Dicta.................................................... 83 1.1.17 PMG 887........................................................................................ 89 1.2 QUEBRAS DE CONVENÇÃO................................................................................. 91 1.2.1 Píndaro, Olímpica 14..................................................................... 91 1.2.2 Eurípides, Helena (167-178).......................................................... 96 1.2.3 Eurípides, Hipólito (525-564)........................................................ 100 CAPÍTULO 2.............................................................................................................. 104 2.1 A ESTRUTURA DO HINO RIGVÉDICO................................................................... 104 2.1.1 Grupo central................................................................................. 107 2.1.1.1 Repetição simples.......................................................... 107 2.1.1.2 Repetição complexa...................................................... 108 2.1.1.2.1 Palavras gêmeas.......................................... 108 2.1.1.2.2 Numerais..................................................... 111 2.1.1.2.3 Termos afins................................................ 114 2.1.2 Divisão ao meio............................................................................. 116 2.1.2.1 Repetição simples.......................................................... 116 2.1.2.2 Repetição complexa...................................................... 121 2.1.3 Palavra-chave................................................................................ 125 2.1.4 Ambigüidade................................................................................. 131 2.1.5 Clímax............................................................................................ 136 2.2 HINO GREGO E “OMPHALOS”............................................................................. 142 2.2.1 Anacreonte (PMG 357).................................................................. 144 2.2.2 Arístono, Hino a Héstia................................................................. 149 2.2.3 Eurípides, Ifigênia em Táuris (1234-1258)................................... 153 2.2.4 Calímaco, Hino a Delos................................................................. 156 CAPÍTULO 3.............................................................................................................. 160 3.1 PARES CONTRASTANTES.................................................................................... 160 3.1.1 Alternância passado – presente: Limênio, Peã a Apolo................ 160 3.1.2 Acontecimento único – atividade atemporal: Hesíodo, Teogonia (1-115)............................................................ 168 3.1.3 Planos temporais no Rig Veda....................................................... 179 3.1.4 Passado mítico / passado histórico e presente............................... 184 3.1.4.1 Aristófanes, Lisístrata (1247-1294).............................. 185 3.1.4.2 Teógnis 773-782............................................................ 188 3.1.4.3 Píndaro, Ístmica 7, 1-22................................................ 191 3.2 UNIÃO DE OPOSTOS........................................................................................... 195 3.2.1 União de gêneros: Filodamo, Peã a Dioniso................................. 196 3.2.2 Presente da celebração................................................................... 210 3.2.2.1 Píndaro, Pítica 5, 54-93................................................. 212 3.2.2.2 Hino dentro do hino: Hino Homérico a Pã................... 219 3.2.3 Ambigüidade.................................................................................. 224 3.2.3.1 Peã Eritreu..................................................................... 224 3.2.3.2 Píndaro, Olímpica 4, 1-16............................................. 227 3.2.3.3 Hino matinal a Asclépio................................................ 232 3.2.3.4 Hino mágico a Apolo.................................................... 236 CAPÍTULO 4............................................................................................................. 239 4.1 RECIPROCIDADE COMO TEMA............................................................................. 239 4.1.1 Arístono, Peã a Apolo.................................................................... 239 4.1.2 Macedônico, Peã a Apolo e Asclépio............................................ 244 4.1.3 Louvor e pedido: Hino Homérico a Gaia...................................... 249 4.1.4 Paronomásia................................................................................... 252 4.1.5 Justaposição de pronomes.............................................................. 257 CONCLUSÃO............................................................................................................. 270 APÊNDICE ................................................................................................................ 276 BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................... 285 TEXTOS E ABREVIAÇÕES Os textos gregos são citados de acordo com as seguintes edições: Hinos Homéricos: T. Allen, W. Halliday e E. Sikes, The Homeric Hymns, Oxford, 1936; Calímaco: R. Pfeiffer, Callimachus, Oxford, 1949-53; Píndaro: B. Snell e H. Maehler, Pindari Carmina cum Fragmentis (8ª ed.), Leipzig, 1987; os peãs seguem a edição de I. Rutherford, Pindar’s Paeans, Oxford, 2001. Sófocles: H. Lloyd-Jones e N. G. Wilson, Sophoclis Fabulae, Oxford, 1990. Poetas líricos: D. L. Page, Poetae Melici Graeci (PMG), Oxford, 1962. Hesíodo: M. L. West, Theogony, Oxford, 1966, e Works & Days, Oxford, 1978. Aristófanes: J. Henderson, Lysistrata, Oxford, 1987; demais: F. W. Hall e W. M. Geldart, Aristophanis Comoediae, Oxford, 1906. Eurípides: salvo indicação em contrário, J. Diggle, Euripidis Fabulae, Oxford, 1981-94. Teógnis: M. L. West, Iambi et Elegi Graeci (2ª ed.), Oxford, 1989. Referências às demais edições utilizadas serão feitas ao longo da tese. O Rig Veda é citado segundo o texto metricamente restaurado por B. A. Van Nooten e G. B. Holland, Rig Veda: A Metrically Restored Text with an Introduction and Notes, Harvard Oriental Series (vol. 50), Cambridge, Mass., 1994. Abreviações de periódicos seguem no geral as convenções de L’Année philologique. NOTA INTRODUTÓRIA “A poesia cultual da época antiga perdeu-se”, notou Wilamowitz em 1921,1 e de fato o que restou dos hinos gregos da era arcaica e clássica é muito pouco em comparação com a relevância do canto hínico na vida religiosa. Na era helenística, cresce um pouco o número de documentos graças aos hinos destinados a cultos locais ou a determinados eventos do calendário litúrgico, principalmente em Delfos e Epidauro. O material inclui os Hinos Homéricos, utilizados como prefácio à récita dos épicos, o canto monódico de poetas líricos e elegíacos, composto para ocasiões privadas ou banquetes, a lírica coral tanto dos hinos entoados pelos coros dramáticos quanto dos peãs e ditirambos atestados em papiro, os hinos inseridos na poesia laudatória dos epinícios, os hinos de Calímaco, os quais retomam as antigas convenções do gênero e por vezes buscam recriar, de maneira “mimética”, as ocasiões de performance, os hinos de culto gravados em pedra, os hinos órficos, os hinos contidos nos papiros mágicos, os hinos filosóficos e alegóricos e ainda os hinos em prosa dos escritores retóricos Élio Aristides, Menandro Retor e das chamadas aretalogias de Ísis. O volume de textos que nos foi transmitido é pequeno também em comparação, por exemplo, com a riqueza de um corpus hínico como o Rig Veda, com seus mais de mil hinos que correspondem aproximadamente – como mais de um já observou – ao tamanho da Ilíada e Odisséia juntas. No horizonte da religião indo-européia, no entanto, os hinos gregos sobressaem por compor, ao lado dos hinos indo-iranianos, os principais exemplos de poética hínica que remontam à matriz comum.2 Serão eles, os hinos gregos, meu ponto de partida e de chegada nesse trabalho, com eventuais incursões no terreno indiano, a fim de estudar temas estilísticos abrangentes da tradição hínica grega e confrontá-los, quando oportuno, com o uso que deles é feito pela tradição irmã no campo indo-europeu. 1 Wilamowitz (1921), 242. 2 No processo de transmissão oral, perderam-se praticamente todas as informações sobre os hinos celtas, eslavos, bálticos e germânicos; os hinos hititas são numerosos, mas a sua natureza é tributária sobretudo da tradição mesopotâmica, não da indo-européia; quanto aos hinos em latim, vários dos seus recursos retóricos foram tomados de empréstimo aos gregos e não representam (com a possível exceção do Hino Saliar dos irmãos Arval) uma herança autônoma. Cf. West (2007), 304s., Schmitt (1967), 195-220, e Durante (1976), 155-66. 1
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