Para Christine, que não me deixou desistir deste livro Primeira Parte O CURANDEIRO DOS MALES 1 V OCÊS PROCURARAM OS ARTEFATOS que refletiam a ambição deles. Foi o que o professor de sociologia disse aos calouros no dia do seminário, e Eric Shaw gostou tanto da frase que a escreveu num caderno que logo seria esquecido e descartado. Os artefatos que refletiam a ambição deles. Estudar esses artefatos seria o único meio de realmente entender povos que há muito partiram deste mundo. Objetos comuns corriam o risco de ser supervalorizados, revestidos de uma importância exagerada. Era essencial descobrir as peças que indicassem as ambições e as aspirações — aquelas exauridas pelas esperanças e pelos sonhos. A essência do coração de alguém está nos seus objetos de desejo. Não importava se esses foram atingidos ou não; o importante era saber quais eram eles. Aquela frase voltou à memória de Eric quase duas décadas depois, enquanto ele editava um vídeo para ser exibido durante a cerimônia fúnebre de uma mulher. Retratos de uma vida era o nome que dava àquele tipo de montagem, numa tentativa de conferir alguma credibilidade ao que, no fundo, não passava de um show de slides em louvor a uma pessoa em especial. Houvera um tempo em que nem Eric nem ninguém que o conhecia acreditava que ele exerceria esse tipo de atividade. Na verdade, ele ainda tinha dificuldade em acreditar. Às vezes a gente vive toda uma vida sem nunca compreender direito como fomos parar lá. Mas que droga. Se ainda fosse um jovem recém-formado em cinema, poderia ter se convencido de que isso era apenas parte da luta de um artista, uma maneira de pagar as contas antes de surgir a grande oportunidade. Mas, na realidade, Eric tinha se formado, com honra, 12 anos antes. E fazia pelo menos dois desde que se mudara para Chicago, na tentativa de escapar do enorme fracasso sofrido em Los Angeles. No auge de sua vida profissional, aos 30 anos, quando estava sempre envolvido em trabalhos de grande porte, a mídia o alçara a um dos maiores diretores do mundo. Agora, Eric fazia apenas vídeos de formaturas, casamentos, aniversários e comemorações de bodas. E cerimônias fúnebres. Muitas cerimônias fúnebres. Que, de alguma forma, se tornaram seu nicho. Um ramo desses se mantinha no boca a boca, e o boca a boca apontava Eric como aparentemente um especialista em filmar funerais. Na maior parte das vezes, os clientes ficavam satisfeitos com os vídeos, mas quem comparecia aos funerais e assistia às homenagens audiovisuais saía em grande emoção. Talvez, em algum nível do inconsciente, Eric se sentisse mais motivado quando se tratava de prestar homenagem aos mortos. Havia uma carga imensa de responsabilidade nisso. Verdade seja dita, ele ficava mais instintivo quando preparava um vídeo para uma cerimônia fúnebre do que para qualquer outro tipo de evento. Parecia movido por uma espécie de inspiração, um sentido extra e inato que o guiava quase sempre pelo caminho certo. Naquele dia mesmo, do lado de fora de um salão onde uma cerimônia fúnebre estava prestes a começar, Eric foi tomado por um sentimento premonitório incomum. Passara todo o dia anterior — 15 horas seguidas — preparando esse vídeo, numa correria desenfreada para que ficasse pronto e pudesse ser exibido à família da mulher de 44 anos morta em um acidente de carro na Dan Ryan Expressway. Os parentes lhe entregaram álbuns de fotografias, recortes e lembranças, e ele começou o trabalho organizando as imagens e criando uma trilha sonora. Reproduziu alguns dos retratos e mesclou-os com vídeos caseiros da família. Editou tudo com uma música e tentou fazer com que aquilo ganhasse vida. Em geral, os presentes nos enterros soluçavam um pouco, às vezes riam, e sempre murmuravam e balançavam a cabeça, concordando com as passagens que remetiam a momentos esquecidos e recordações valiosas. Depois, cumprimentavam Eric e, maravilhados, agradeciam por sua sensibilidade ao trazer para o presente as lembranças mais significativas de seus entes queridos. Nem sempre ele assistia às cerimônias, mas a família de Eve Harrelson lhe pedira isso. Ele concordou, satisfeito. Queria ver a reação das pessoas a esse trabalho específico. Tudo começara no dia anterior, em seu apartamento em Dearborn, quando se sentara no chão, as costas apoiadas no sofá e a coleção de objetos pessoais de Eve Harrelson espalhada à sua volta, e começara a separar, estudar e selecionar o material a ser usado. Num determinado momento desse processo, aquela velha frase voltou-lhe à mente, os artefatos que refletiam a ambição deles, e novamente pensou em seu apelo intrínseco. Então, motivado pela frase, voltou à pilha de fotografias em busca de alguma pista sobre os sonhos de Eve Harrelson. As fotografias eram repetitivas, na verdade — todos faziam poses com enormes sorrisos ou então se esforçavam muito para parecerem naturais ou indiferentes. Aliás, a coleção inteira era insossa. A família preferia fotos a vídeos, o que não era um bom começo. Os vídeos continham movimento, voz e alma. Era sempre possível criar o mesmo espírito a partir de imagens estáticas porém seria certamente mais difícil, sobretudo porque os álbuns dos Harrelson não ajudavam. Tinha pensado em fazer com que os filhos de Eve fossem o foco principal da apresentação — uma opção ousada, mas ele achou que funcionaria bem. Afinal, os filhos eram o legado dela, e, portanto, uma garantia de impressionar a família e os amigos. Mas, enquanto começava a formar uma pilha com as fotografias espalhadas, de repente, estancou diante da imagem de um pequeno chalé vermelho. Não havia ninguém na foto, só o chalé, pontudo como uma letra A e pintado de vermelho. As janelas estavam na penumbra e não era possível ver seu interior. Pinheiros alinhados cercavam o chalé por ambos os lados, mas a fotografia fora tirada de tal forma que não permitia nenhuma indicação do que mais havia ao redor. Observando com mais atenção, Eric ficou convencido de que a construção ficava defronte a um lago. Não havia nada que sugerisse isso, mas ainda assim ele tinha certeza. Era de frente a um lago, e, se a visão pudesse ser expandida, seria possível enxergar, além dos pinheiros, as folhas de outras árvores coloridas pelo outono e seu reflexo na superfície das águas agitadas pelo vento. Aquele lugar tinha sido importante na vida de Eve Harrelson. De um significado profundo. Quanto mais olhava a fotografia, mais forte se tornava sua convicção. Sentiu um arrepio ir dos braços à nuca e pensou: Ela dormiu com alguém aqui. E não foi com o marido. Era uma ideia louca. Recolocou a foto de volta na pilha e continuou vendo as outras. Depois de ter olhado algumas centenas delas, constatou que só havia uma do chalé. Era evidente que aquele lugar não fora tão especial assim na vida dela; não se fotografa uma única vez um lugar do qual guardamos recordações preciosas. Após nove horas de frustração, já que nada naquele projeto parecia se encaixar como ele queria, lá estava Eric outra vez com a foto do chalé nas mãos e com a mesma certeza na mente. Aquele era, sim, um lugar especial; sagrado. E, então, ele a incluiu, a imagem solitária de uma construção vazia que, depois de ser trabalhada com o resto do material, deu-lhe uma sensação de unidade ao resultado final, como se aquela fotografia fosse a âncora que daria estabilidade à apresentação. Agora era o momento de passar o vídeo. A família assistiria pela primeira vez, e, embora Eric estivesse curioso — sempre queria saber o que seus clientes achavam de seu trabalho —, no fundo ele sentia que aquele vídeo resumia-se numa única imagem. Entrou na sala dez minutos antes do início da cerimônia e se sentou ao lado do aparelho de DVD e do projetor. Graças a um comprimido de tranquilizante e de analgésico, sentia-se calmo e descontraído. Convencera seu novo médico de que precisava daqueles medicamentos por causa do estresse emocional em que se encontrava desde que Claire o abandonara, mas a verdade é que os tomava toda vez que ia apresentar um trabalho. Nervosismo profissional, era como se justificava. O fato é que não sentia esse nervosismo no passado, quando fazia cinema de verdade. Era o sempre presente sentimento de fracasso que tornava os remédios necessários, o toque frio da vergonha. Blake, o marido de Eve Harrelson, um homem carrancudo que usava óculos bifocais e tinha uma vasta cabeleira negra, foi o primeiro a subir no púlpito. Os dois filhos se sentaram na primeira fila. Eric tentou não prestar atenção neles. Nunca se sentia à vontade quando havia crianças numa exibição de um trabalho como aquele. Blake Harrelson disse algumas palavras de agradecimento às pessoas que estavam ali e anunciou que a cerimônia começaria com um breve filme em homenagem a sua mulher. Não mencionou Eric, sequer o indicou; apenas fez sinal para que o homem ao lado do interruptor apagasse as luzes. Hora do show, pensou Eric. O salão escureceu e ele apertou o play do aparelho de DVD. O projetor já tinha sido focalizado e ajustado, e a tela foi tomada por uma foto de Eve com os filhos. A abertura mostrava apenas situações alegres — isso era de praxe para eventos pesados como aquele — e a música de acompanhamento provocou, de imediato, alguns sorrisos discretos. Entre os CDs que a família lhe entregara, Eric encontrara uma gravação de um recital em que Eve, ao piano, tentava acompanhar a música cantada pela filha, já desde o início fora do tempo e piorando a cada compasso. Da metade em diante, só se ouviam as duas tentando não cair na risada. Esse trecho durou poucos minutos e foi entrecortado por risadas e lágrimas, bem como por abraços carinhosos e palavras de consolo sussurradas. Eric ficou ali parado em silêncio, agradecendo mentalmente à química dos calmantes que circulava em sua corrente sanguínea e que dava uma tranquilidade invejável. Se houvesse uma pressão mais forte do que observar um grupo de luto assistindo a um vídeo póstumo feito por ele, não conseguia imaginar qual seria. Não, espere um pouco, conseguia sim: era fazer um filme de verdade. Essa fora sempre uma pressão imensa, também. Tão grande que ele acabara não suportando. A foto do chalé surgia aos seis minutos e dez segundos do filme, cuja duração total era de nove minutos. A maioria das imagens permanecia na tela por cerca de cinco segundos, mas Eric tinha dado o dobro do tempo ao chalé. Era por isso que estava tão curioso para ver a reação das pessoas. A música mudou de uma canção do Queen — a banda preferida de Eve Harrelson — para Ryan Adams fazendo um cover de “Wonderwall”, do Oasis, poucos segundos antes de surgir na tela o chalé. A família dera a Eric um CD com a versão original dessa banda, outra grande favorita de Eve, mas ele a substituíra pela de Adams na edição final. Era mais lenta, mais nostálgica, mais melancólica. Tinha que ser essa. Durante os primeiros segundos, ele não conseguiu detectar nenhuma reação. Observou a expressão do rosto das pessoas sem notar nenhum interesse maior, apenas olhares neutros e, em alguns casos, confusão. Então, pouco antes de surgir uma nova imagem, seus olhos recaíram sobre uma mulher loura de preto sentada na ponta da terceira fileira. Ela se virou de costas, procurando por ele, mas estava ofuscada pela forte luz do projetor. Alguma coisa naquele olhar fez com que Eric se afastasse do ângulo de visão dela e se escondesse na penumbra. A imagem mudou, a música também, e ela continuava a procurá-lo. Então o homem ao seu lado disse alguma coisa, tocou-a no braço e ela relutantemente voltou a encarar a tela à sua frente. Eric soltou a respiração e sentiu novamente o arrepio na nuca. Ele não enlouquecera, afinal. Havia algo significativo naquela imagem. Mal prestou atenção no resto do vídeo. Quando acabou, desconectou rapidamente o equipamento e juntou suas coisas para ir embora. Jamais fizera isso antes — sempre esperava, de forma respeitosa, que a cerimônia terminasse e ia falar com a família —, mas naquele dia só queria sair dali, voltar ao ar livre e à luz do sol, ficar longe daquela mulher de preto e de olhar penetrante. Escapuliu pelas portas duplas com o projetor nas mãos, e ia em direção ao saguão que precedia a saída quando ouviu uma voz atrás de si: — Por que você usou aquela foto? Era ela. A loura de preto. Virou-se para encará-la. Mais uma vez sentiu-se fuzilado pelos seus olhos, que, agora podia ver, eram de um azul profundo. — A do chalé? — Sim. Por que a usou?
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