EVA ALTERMAN BLAY Um caminho ainda em construção: a igualdade de oportunidades para as mulheres l EVA ALTERMAN BLAY é professora do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP e coordenadora científica do Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de Gênero (Nemge-USP). 82 REVISTA USP, São Paulo, n.49, p. 82-97, março/maio 2001 o ã “Numa época elas foram de carne e osso; depois deixaram apenas lembranças, retratos, seus textos e sua arte” (Natalie Zemon Davies, Nas Margens). ç a Agradeço à professora Miriam L. Moreira Leite a cuidadosa revisão e sugestões feitas a este texto. p i É assim que Natalie Davies lembra três c extraordinárias mulheres do século XVII, mulheres que simbolizam tan- i tas outras. t Em 1600, a judia Glikl bas Judah Leib, a católica Marie r de l’Incarnation e a protestante Maria Sibylla Merian a deixaram testemunhos de vidas dedicadas ao trabalho, à arte, à pesquisa. Glikl, amargurada por dolorosas perdas, p escreveu sua história para os doze filhos. Foi além de si própria e, em sete volumes, deixou o testemunho do início & da modernidade visto à luz da experiência de uma mulher pertencente a um povo segregado. a Marie de l’Incarnation teve a ousadia de “abandonar” seu único filho para cumprir missão que se auto-impôs, a c de cristianizar os nativos do Canadá; abandonou para sempre a França e deixou, como legado, a história do i mundo nativo e da cristianização nas cartas que sempre t enviou, justamente, ao filho distante. í Maria Sibylla fez a proeza de vender seus bens e com os l próprios recursos pagar para si e para a filha uma extraordi- o nária travessia por mares, de Amsterdã para o Suriname, onde queria pesquisar e pintar insetos, borboletas e plantas. p Isso tudo aconteceu no início do século XVII. As obras escrita e artística das três chegaram aos nossos dias, estão 83 REVISTA USP, São Paulo, n.49, p. 82-97, março/maio 2001 em bibliotecas e museus do mundo, e influ- hierárquicas, homens nas posições de do- enciaram o pensamento moderno e pós-mo- minação e mulheres nas subordinadas. Esta derno. relação hierárquica de gênero é encontrada Foram pioneiras? em todas as classes sociais, em diferentes Ao longo da história, é recorrente apa- grupos étnicos, e se reproduz a cada gera- recerem mulheres que abrem novos espa- ção. As variáveis se combinam gerando uma ços; como Penélopes, a cada momento te- estrutura hierárquica em que posição eco- mos de romper obstáculos e reconquistar o nômica se articula à etnia na escala de po- direito de ser. Não por acaso é notícia de der: nas sociedades capitalistas homens primeira página dos jornais, em pleno 2001, brancos e de elevadas posições econômi- quando uma mulher é nomeada para cargo cas situam-se no alto da pirâmide de poder, importante numa siderúrgica, numa emis- mulheres brancas e de alta posição econô- sora de televisão, mas são também notícias mica têm maior poder que os homens de de destaque aquelas pós-graduandas que qualquer outro grupo étnico, mesmo que “voltam para o lar” (1). economicamente bem situados, e assim por Até a década de 1960 a história, quando diante. As mulheres negras e pobres são as focalizava a mulher, atinha-se às supostas que se situam nas posições mais baixas desta atividades femininas fundamentais, isto é, hierarquia. às de um ser apêndice da família. A A posição social de pessoas mais ve- historiografia simplesmente ignorava a lhas tem variado ao longo do tempo. Nas participação feminina no mercado de tra- sociedades ditas primitivas a estrutura de balho, a enorme freqüência com que sus- poder segue critérios baseados no saber tentavam economicamente a si e aos seus, detido pelos mais velhos, no exercício de estudavam, eram talentosas e exerciam inú- poderes mágicos e no controle do sobrena- meras atividades além das do lar. Ignorava tural e da natureza. as diferenciações decorrentes da condição Generalizações são sempre precárias de classe. Essa mesma história deixou na porque as sociedades são heterogêneas. obscuridade outro lado da vida familiar: Contudo a condição de gênero é decisiva como as mulheres evitavam filhos, quantas na formação de relações sociais hierárqui- pagaram com a vida os abortos provoca- cas. Em países onde a social-democracia se dos, as terríveis contingências impostas por instalou, no princípio do século XX, as maridos violentos, o duplo padrão de sexua- relações hierárquicas, em todos os campos, lidade imposto a homens e mulheres, as são mais atenuadas, mas estão longe de ser inúmeras formas de dominação nas rela- igualitárias. ções sociais de gênero. Ao reescrever esta história vem à tona a 2001: AS MUDANÇAS NO TRABALHO lógica desta exclusão: as mulheres viviam “nas margens” do poder cujos centros eram FEMININO FORAM ANTES e são ocupados por homens. Na maioria dos sistemas políticos, as relações hierárquicas QUALITATIVAS QUE QUANTITATIVAS de gênero reproduzem-se na herança social das sociedades contemporâneas. Por que é consensual a afirmação de que “agora” as mulheres trabalham fora DA DIFERENÇA À DESIGUALDADE quando na verdade esta atividade sempre existiu? No Brasil mulheres sempre exer- ceram atividades econômicas enquanto A trajetória das mulheres no mundo escravas, libertas e livres, no sertão, nas capitalista e socialista, ocidental e oriental, fazendas, nas vilas e nas cidades. A icono- é marcada pela discriminação. Diferenças grafia é reveladora desta faina, mas o olhar 1 O Estado de S. Paulo, 4/2/ 01, primeira página. sexuais foram pretexto para impor relações não enxergava a dimensão do trabalho eco- 84 REVISTA USP, São Paulo, n.49, p. 82-97, março/maio 2001 QUADRO 1 - TRABALHO/SEXO (Pessoas com 10 anos ou mais) Homens Mulheres Total Total 130.895.798 63.819.733 67.876.857 58,2% Economicamente 79.315.287 46.480.321 32.834.366 40,5% ativos Total 100% 72,8% 48,4% Fonte: IBGE, 1999. nômico da mucama, das vendedoras de rua, pregadas domésticas (3). A entrada das das cozinheiras, das camponesas, das ope- mulheres nas profissões liberais ocorreu rárias; fixava-se no corpo, na sexualidade, quando estas perderam prestígio e remune- na roupa. Era um olhar educado numa pers- ração (Blay, 1978). Embora se afirme que pectiva de gênero, que reduzia o corpo da a feminização de algumas profissões tenha mulher ao sexo. Esse mesmo olhar que “não provocado a proletarização das mesmas, via” educou gerações até os anos da crítica foi exatamente o contrário que ocorreu. As feminista de 1960. Tomem-se os censos ou mulheres foram entrando para ocupações anuários do IBGE. Foi necessário discutir como o magistério, por exemplo, quando com os estatísticos para que homens e os homens buscaram outras carreiras mais mulheres fossem apresentados separada- bem remuneradas e de mais prestígio so- mente em seus dados. Até o Censo de 1970 cial (4). Ao diminuir a concorrência ficou esta distinção não era feita, mesmo porque mais fácil obter um cargo na carreira. Ex- a própria coleta de dados em vários setores ceto nos postos mais altos. da força de trabalho só computava o traba- As diferenças salariais em detrimento lho do chefe da casa (2) que, por princípio, da mulher persistem no Brasil como em era o homem e nunca a mulher; também o países que têm políticas de igualdade, como trabalho das crianças ficava excluído. No os Estados Unidos ou a União Européia. setor industrial, os dados eram coletados Em 1970 os salários das americanas eram mas não apresentados nos resultados cen- 62,2%, em média, do salário masculino. sitários, apesar de que, desde os primórdios Em 1996 essa diferença diminuiu, chegan- da industrialização brasileira, as tecelãs do a 75% (Coetello, 1998). Na União Eu- somavam quase 40% da força de trabalho ropéia as variações dependem do país con- empregada. Contradizendo a suposição de siderado mas a desigualdade fica ratificada que a participação no mercado de trabalho pelas propostas de políticas de igualdade é recente, os dados indicam que agora, de gênero em todos os países que a com- somando-se toda a força de trabalho femi- põem. No Brasil, em média, os ganhos das nina, chega-se a pouco mais de 40% (IBGE mulheres são 60% do pago aos homens, 1999, Quadro 1). nas mesmas atividades. No serviço públi- 2 Creio que o Censo de 2000, como admitiu o presidente do Paralelamente houve mudanças na es- co, em que a remuneração é igual, as dife- IBGE, trará esta distorção. Ver também comentários muito trutura do mercado de trabalho, ampliaram- renças decorrem do nível do posto ocupa- oportunos sobre esta distorção se e se diversificaram os setores que incor- do; raramente as mulheres alcançam os mais em: Monica de Melo, Diário Popular, 10/12/2000. poram mulheres. Há mais médicas, advo- altos e mais bem remunerados. 3 Em 1994 os serviços domésti- gadas, químicas, biólogas, profissionais Fatores biológicos como menstruação, cos absorviam 18,3% das ocu- liberais, comerciantes, varredoras de rua, gravidez, maternidade, aleitamento, conti- padas; em 1998 subiu para 19,5% (Seade, 2000). catadoras de lixo; mas duas em cada dez nuam a ser álibis para impor uma desqua- 4 Ver o caso da Química anali- trabalhadoras em São Paulo são ainda em- lificação ao trabalho da mulher; o mercado sado em: E. A. Blay, 1978. 85 REVISTA USP, São Paulo, n.49, p. 82-97, março/maio 2001 pretere-a para cargos mais bem remunera- A ausência de políticas públicas repro- dos sob a alegação de que ela tem “respon- dutivas fez com que as mulheres buscas- sabilidades familiares” a cumprir ou de que sem seus próprios meios para reduzir o é mais “frágil”. No passado alegava-se que número de filhos. Abortos clandestinos – ela ficava “impedida” certos dias do mês; pois o país os proíbe –, métodos os mais atualmente modernizou-se o impedimen- primitivos para evitar a gravidez aliados ao to, alega-se que ela fica fragilizada pela consumo indiscriminado de pílulas anticon- TPM (tensão pré-menstrual). cepcionais evitaram o nascimento de cri- Estes argumentos são usados mesmo anças mesmo que à custa da saúde e da vida com o avanço da tecnologia que pratica- das mulheres. O resultado foi que chega- mente elimina o fator força física em novas mos ao ano 2000 com uma população de modalidades de trabalho e do desenvolvi- 169 milhões e um índice médio de fertili- mento de métodos para controle da fecun- dade de 2,3 filhos quando, se a taxa fosse a didade e tratamento de problemas hormo- mesma de 1960, isto é, 6,3 filhos por mu- nais. Nos últimos trinta anos o movimento lher, hoje a população seria de 220 milhões feminista procurou mostrar que “a mater- (Boletim Saúde Reprodutiva na Imprensa, nidade não é doença”, que a “licença-ma- edição de 16 a 31/1/01). A redução do nú- ternidade” é um direito e não um favor, que mero de filhos decorre de vários fatores, ter e cuidar da prole é uma “função social” tais como educação, condições econômi- e que as crianças não são apenas da mulher cas, religião e certamente também de pers- mas também do homem. Isto levou a mu- pectivas ocupacionais. danças na legislação trabalhista mas nem As mulheres da classe trabalhadora por isso alterou a mentalidade antima- quase sempre exerceram atividades remu- ternidade e seu corolário depreciativo do neradas em casa e fora dela pela total au- trabalho feminino. sência de escolha; as mulheres de classe A questão vai além da lei e do direito. média e alta tiveram a oportunidade, em Tem a ver com a subjetividade feminina e alguns períodos, de optar se queriam ou masculina socialmente construída dentro não fazê-lo. Atualmente o que se observa é de um modelo de hierarquia de gênero: “cui- que houve um relativo incremento da par- dar dos filhos é tarefa de mulher”; ela tra- ticipação da força de trabalho feminina, balha para “ajudar” nas despesas da casa – porém, a maior alteração consistiu na par- mesmo que seja a única pessoa com remu- ticipação em novas áreas. neração na família. Quando algumas mu- lheres de alta posição econômica decidem “voltar para o lar”, para o cuidado dos fi- 2001: A VIOLÊNCIA CONTRA A lhos, da casa, a notícia recebe tratamento especial como se a ordem estivesse sendo MULHER É AINDA UMA DAS FACES restabelecida; louva-se este retorno – aliás possível apenas para mulheres que tenham MAIS CRUÉIS DO QUOTIDIANO recursos financeiros –, fortalece-se a culpa das que “abandonam” seus filhos aos cui- FEMININO dados de terceiros. Ignoram-se os argumen- tos feministas de que as responsabilidades com os filhos devem ser divididas, que ao Um dos mais persistentes comporta- Estado cabe proporcionar atividades edu- mentos machistas está na violência física, cacionais, esportivas e de lazer para crian- sexual e psicológica contra mulheres de ças e jovens de todas as classes sociais e todas as idades e de todas as classes sociais. que, ao abandonar suas atividades econô- Nenhuma sociedade complexa escapa à micas, as mulheres ficam à mercê de even- violência de gênero. Em 1998, por exem- tuais uniões desastrosas e de companhei- plo, em reunião do Conselho da Comuni- ros autoritários (Blay, 1997). dade Européia em Bucareste, na Romênia, 86 REVISTA USP, São Paulo, n.49, p. 82-97, março/maio 2001 discutiram-se medidas a serem tomadas cardiovasculares e Aids. Esta última, po- para os novos países que foram admitidos rém, é freqüentemente contraída do pró- à Comunidade. Leis já existiam na Noru- prio marido ou companheiro que mantém ega, Suécia e Grã-Bretanha mas era ne- relações sexuais extraconjugais. cessário estendê-las a Rússia, Bulgária, Os assassinatos ocorrem em todas as República da Moldávia e Romênia (5). O faixas etárias e classes sociais e, com fre- problema também se apresentava no qüência, por alegada “violenta emoção”. Quênia, em Gana, Uganda, Estados Uni- Esta expressão, usada juridicamente para dos, Canadá, Israel. Cada país procura inocentar o assassino (Melo, 2000), escon- adotar medidas compatíveis com seus re- de que ele age movido pelo inconformismo cursos financeiros e, principalmente, im- em aceitar que a mulher rompa um relacio- pulsionado por movimentos organizados namento amoroso. Passa a persegui-la e, de mulheres. em face da resistência dela em retomar o A sujeição feminina à violência é um relacionamento, ele acaba matando. Não padrão de comportamento que só recente- importa se é um ex-marido, ex-noivo ou mente começou a ser questionado no Bra- ex-namorado: todos eles se sentem no di- sil. O Código Civil brasileiro garante ainda reito de continuar controlando aquelas que a subordinação da mulher pois não se alte- consideram “suas” mulheres. É a proprie- rou o capítulo relativo à família (6). É de dade do corpo, o controle da sexualidade 1962 a alteração dos Direitos da Mulher da mulher que é exigida. A negação impli- Casada livrando-a, parcialmente, da sujei- ca a eliminação da “rebelde”. ção ao marido que, mesmo desaparecido, O comportamento violento se repro- continuava a deter poder sobre os bens e os duz entre os jovens que os vivenciam na filhos do casal (7). A Constituição de 1988 própria família e é fortalecido pela mídia, veio trazer algum alívio, garantindo o re- que enfatiza ações violentas contra a mu- conhecimento de uniões estáveis. Final- lher. Aprende-se a violência de gênero nas mente a Lei 8.560 permite à mulher indicar novelas, nas músicas, na desqualificação o nome do pai no cartório de registro civil. do corpo feminino, inclusive de meninas. Até então isto lhe era negado por suspeição Não é incomum ver a conseqüência desta de que estivesse mentindo. Atualmente ela escalada de violência contra a mulher en- tem o direito de registrar o nome do pai, tre jovens conforme se vê noticiado em 5 Population Reference Bureau, mesmo à revelia do homem, o qual pode, jornais: “ex-namorado diz que matou ga- Inquietudes Femininas: Informe de Mujeres sobre la Violência no entanto, negá-lo. A prova, através do rota por ciúme”(8). Eles só tinham quinze contra su Sexo, Measure Com- DNA, é um dos mecanismos que homem anos. munication, Washington D. C., s/d. ou mulher podem requisitar. No entanto, o Trabalhos sobre a violência contra a 6 “Livro I – Do Direito de Famí- homem pode se negar a fazer o teste em mulher são esparsos e produzidos princi- lia”. nome de sua inviolabilidade. A questão do palmente por estudos feministas. Em gran- 7 Monica de Melo considera que reconhecimento da paternidade avançou de parte resultam de serviços de atendimen- o “Estatuto da Mulher Casa- da, lei 4.121, de 27 de agos- muito mas não está inteiramente resolvida. to feitos por organizações governamentais to de 1962, tem como princi- pal avanço o fato de não mais Ela nos dá a dimensão da imagem da mu- ou ONGs. O Centro de Atendimento à Mu- considerar a mulher como pes- lher tida como exploradora, mentirosa, se- lher Vítima de Violência, da Secretaria soa relativamente incapaz ao exercício de certos atos da vida xualmente permissiva. Estadual de Saúde do Rio de Janeiro, com civil, ao lado de maiores de 16 e menores de 21 anos, dos A violência física, o estupro, incesto, dados relativos a 1999-2000, indica que em pródigos e dos silvícolas. An- crueldade psicológica, ameaças de morte e 70% dos casos por eles atendidos a violên- tes do estatuto a mulher se en- quadrava nessa categoria sen- o assassinato são quotidianos e, como em cia contra a mulher acontece dentro de casa do comparada aos menores e outras sociedades, atravessam todas as clas- e é praticada por parceiros ou parentes. O aos índios, ou seja, precisava ser tutelada e dependia da ses sociais. SOS Mulher – que funciona no Hospital assistência do marido ou de seu responsável para trabalhar, Em São Paulo, maior metrópole brasi- Estadual Pedro II – registrou 1.495 casos para vender, comprar etc.”. leira, o assassinato é a terceira causa de de agressão (O Globo, 16/1; Jornal do 8 “Crime Passional”, in Diário Po- morte de mulheres (Blay, 2000; Seade, Brasil, 17/1, apud Boletim Saúde Repro- pular, Caderno Mulher, 3/9/ 00; O Estado de S. Paulo, 22/ 2000). Só é inferior às mortes por razões dutiva na Imprensa, edição de 16 a 31/1/ 3/00. 87 REVISTA USP, São Paulo, n.49, p. 82-97, março/maio 2001 01). O coordenador do SOS Mulher, dens. A peculiaridade das delegacias da Moyses Rechtman, confirma o que há anos mulher é que nelas só trabalham mulheres o movimento feminista tem apontado: são em todos os cargos, o que facilita o entrosa- as mulheres que não têm remuneração as mento entre a vítima e a autoridade polici- vítimas mais vulneráveis, dada sua depen- al. As queixas apresentadas causam enor- dência e baixa auto-estima. me pudor em suas vítimas, que se constran- A violência contra a mulher tem sido gem em falar com um homem. Daí, em denominada “violência doméstica”. O qua- parte, o sucesso dessas delegacias que aten- lificativo doméstico tem uma conotação deram, no estado de São Paulo, no ano de desqualificadora, menor, que acaba conta- 2000, 310.058 casos. Foram 78.962 lesões minando a denominada “violência domés- corporais dolosas, 62.035 ameaças, 1.486 tica” fazendo-a ser considerada menos im- estupros. Os homicídios, em geral, são portante. Além disso, quando se fala em enviados para outras delegacias, mas nas “violência doméstica” induz-se à suposi- DDMs registraram-se 41, além de 213 ten- ção que ela se limite ao espaço da casa, tativas (9). quando na verdade ela ocorre em qualquer Analisando-se como a mídia escrita tem lugar (no trabalho, no lazer, na rua). Embo- tratado a questão da violência contra a ra, contradizendo o ditado popular, os mulher observam-se aspectos contraditó- movimentos feministas tenham insistido em rios. Enquanto há uma banalização da vio- que “em briga de marido e mulher se deve lência contra a mulher, de modo geral, meter a colher”, ainda assim, até mesmo a muitas vezes noticiada como um fato cor- polícia não costuma atender tais casos, a riqueiro, de outro algumas mudanças po- não ser tarde demais. dem ser observadas. Cerca de 15 anos atrás, Independentemente de avanços econô- quando um homem era acusado de praticar micos e culturais a violência contra a mu- incesto, engravidar uma enteada, os jornais lher aumenta a cada dia, muitas vezes em noticiavam o fato caricaturando a violên- nome do “amor”. Defensores dos assassi- cia e desqualificando a mulher: “Trocou nos procuram justificá-los como atos co- uma de 30 por uma de 15”, por exemplo metidos “por amor”. Na verdade tais cri- (Prado, 1981). Atualmente observa-se re- mes buscam manter o controle masculino pugnância ao estupro, à violência física em sobre a sexualidade feminina. crianças e mesmo em mulheres. Parece ter Há 15 anos, no auge do movimento fe- penetrado nos meios de comunicação e na minista, criou-se um clima favorável à cri- população uma nova visão da violência ação de um órgão público de defesa da sexual pois, se antes as mulheres estupra- mulher: em 1985 foi criada a primeira De- das eram vistas como culpadas da violên- legacia de Polícia de Defesa da Mulher no cia, hoje tais atos são repudiados e por ve- estado de São Paulo. Entidade da Secreta- zes punidos pela própria população. Essa ria de Segurança Pública, ligada à Polícia mudança se deve, em grande parte, ao mo- Civil, a DDM teve sucesso instantâneo. vimento feminista que, durante anos, mos- Iniciativa do governo Montoro e do secre- trou que as vítimas eram pessoas de todas tário de Segurança Michel Temer, contan- as idades, de bebês a mulheres idosas, ves- do com o apoio do Conselho da Condição tidas com uma calça justa ou um hábito de Feminina, a DDM tornou-se referência para freira; estavam todas à mercê da mesma todo o país. Em 2001 estavam implantadas violência. E, mais ainda, que esta era pra- 125 DDMs no estado de São Paulo e cerca ticada inúmeras vezes dentro da própria de 250 no Brasil todo. Alguns países da casa, por amigos ou parentes das vítimas. América Latina implantaram o mesmo mo- Os avanços ao nível da consciência so- delo. A essas delegacias acorrem mulheres cial não foram suficientes para reduzir o de todas as faixas etárias com queixas de número de atentados e de assassinatos de 9 Agradeço à dra. Maria Ines violência física, estupro, atentado violento mulheres mas pode-se afirmar que o pro- Valente o apoio para o acesso aos dados das DDMs. ao pudor, incesto, abusos de todas as or- blema está se equacionando. 88 REVISTA USP, São Paulo, n.49, p. 82-97, março/maio 2001 2001: CONTINUA PEQUENA portanto, o antigo movimento de mulhe- res, que tinha alcançado muitos progres- A PARTICIPAÇÃO NA POLÍTICA sos, foi extinto; sentimento de injustiça se apoderou das mulheres, que não reconhe- ELEITORAL ciam na “emancipação” forçada pelo Esta- do uma verdadeira liberação. O regime gerou novas diferenças: operários e agri- A participação política das mulheres é cultores passaram a ganhar mais que inte- um dos capítulos mais desiguais nas rela- lectuais ou profissionais liberais. Criou-se ções sociais de gênero. Nos países nórdi- uma nova solidariedade de “classe” e não cos, após anos de alterações legislativas vi- de gênero: mulheres e homens intelectuais sando alcançar um equilíbrio de gênero, se solidarizaram esquecendo as discrimi- obteve-se relativo sucesso: as mulheres são nações de gênero. As mulheres resistiam quase 40% do Parlamento. Isto foi conse- em participar do partido político dominan- guido depois de várias medidas eleitorais, te – curiosamente usando como subterfú- como a organização de listas de candidatos gio seus “deveres maternos” – e acabaram com alternância de um nome masculino e excluídas das altas posições partidárias. Ins- um feminino (Quadro 2) e muita mobiliza- talaram-se dois tipos de segregação de gê- ção popular. nero: horizontal (mais mulheres em áreas Em alguns países comunistas, como a não favorecidas pelo sistema paternalista Checoslováquia, tentou-se impor eqüida- do governo) e daí a feminização excessiva, de política por medidas “autoritárias” re- por exemplo, da escola e da saúde; vertical sultando no aparecimento de novas hierar- (as mulheres ocupando posições inferio- quias. Analisemos o caso da Checoslová- res). Essa segregação, no entanto, não foi quia, que me parece paradigmático. Hana percebida como um problema de gênero Havelková (1999) mostra que, para o regi- mas sim político. E ainda surgiu uma nova me comunista, todos os problemas eram elite de mulheres educadas (alto prestígio e considerados “resolvidos” pelo Estado e, baixo salário) e outro grupo de mulheres QUADRO 2 - PERCENTAGENS DE MULHERES NA CÂMARA E NO SENADO Câmara Federal Senado Soma da Câmara País ou Parlamento e do Senado Unicameral Países Nórdicos 38,8% — 38,8% Américas 15,3% 14,4% 15,2% Ásia 14,5% 17,6% 14,7% Europa (menos Países Nórdicos) 14,0% 13,9% 14,0% África Subsaariana 12,4% 13,9% 12,6% Pacífico 11,9% 25,6% 13,5% Países Árabes 3,8% 2,9% 3,6% Média Mundial 13,9% 13,6% 13,8% Fonte: Htun e Jones, 2000. 89 REVISTA USP, São Paulo, n.49, p. 82-97, março/maio 2001 trabalhadoras (baixo prestígio e baixo sa- mesma expressão, “resistência civil”, foi lário). No pós-guerra o sistema comunista usada contra os governos de esquerda. Nos desvalorizou tudo que fosse doméstico dois sistemas a hierarquia de gênero resiste. (casa, alimentação, inclusive o amor), va- Sociedades que se bateram contra dita- lorizando o público e o político: “a mulher duras e pelo socialismo, como alguns paí- ideal era aquela co-lutadora e camarada” . ses da América Central, mantiveram a Ora, isto foi considerado uma forma de o mesma hierarquia de gênero ao reorgani- Estado controlar o indivíduo levando mu- zarem o regime democrático. Luciak lheres a uma “resistência civil” em nome (2000a; b) mostra como o movimento fe- do fortalecimento dos valores tradicionais minista se organizou na Nicarágua e El como a família, casa, filhos. O resultado Salvador após a participação das mulheres final de todo esse processo foi o reapareci- na guerrilha; os acordos de paz não outor- mento de novas formações hierárquicas de garam a elas os mesmos direitos que aos classe e de gênero. homens. Inicialmente foram discriminadas Enquanto para as mulheres da América na distribuição de terras, nos apoios finan- Latina e do Caribe a “resistência civil” foi ceiros, e na própria estrutura partidária. uma forma de se contrapor às ditaduras Também a sociedade continuou a discri- militares de direita, na Checoslováquia a miná-las: o homem que voltava da guerri- QUADRO 3 - MINISTRAS NA AMÉRICA LATINA Mulheres Total de Percentagem de País Ano ministras ministros mulheres/total Argentina 2000 1 13 8% Brasil 2000 0 ? 0 Chile 2000 5 16 31% Colômbia 2000 4 17 24% Costa Rica 2000 5 17 30% Cuba 2000 2 25 8% República Dominicana 2000 2 22 9% El Salvador 2000 3 13 23% Guatemala 2000 1 13 8% Honduras 2000 3 18 17% México 1998 2 22 9% Panamá 2000 3 12 25% Paraguai 2000 0 10 0% Peru 2000 1 15 7% Uruguai 2000 0 14 0% Venezuela 2000 0 14 0% Fonte: Htun e Jones, 2000. 90 REVISTA USP, São Paulo, n.49, p. 82-97, março/maio 2001 lha era um herói da democracia; as mulhe- movimento internacional pelo sufrágio fe- res que voltavam eram vistas como traido- minino que se espalhava na Europa e nos ras por terem abandonado a família, os pais. Estados Unidos. Berta Lutz recebeu mu- Para entender o processo de participa- lheres do movimento norte-americano que ção política da mulher no Brasil façamos vieram fortalecer a atuação das brasileiras uma retrospectiva destacando alguns perí- (Nazario, 1923). O voto era negado às odos históricos importantes. mulheres mesmo em pequenos setores No Brasil, pelo menos desde o século como, por exemplo, para eleger a presidên- XIX, a questão mulher foi tema de discus- cia do Centro Acadêmico da Faculdade de são. A primeira vaga do movimento femi- Direito. Diva Nazario, aluna daquela fa- nista brasileiro avançou na crítica à sujei- culdade, tentou votar. Impedida pelos co- ção e exclusão da mulher e ocupou consis- legas entrou com uma ação para garantir tentemente a imprensa escrita da época seus direitos. Conseguiu votar, porém, em como bem mostrou Crescenti (1989). Mu- urna separada. Finalmente seu voto não foi lheres como Maria Lacerda Moura escre- computado. viam em livros e jornais, atuavam como As sufragistas fizeram campanhas jun- libertárias e contra o capitalismo indus- to aos deputados e senadores nas ruas e trialista (Leite, 1984). Nisia Floresta adap- chegaram a jogar panfletos por avião em tou, ainda no século XIX, a feminista pleno Rio de Janeiro, numa ação ousada e Wollstonecraft (10). Nisia, por sua vez, foi precoce. Finalmente conseguiram que Ge- professora, escritora e viajante. Inovou a túlio decretasse o direito ao voto, em 1933, educação feminina fundando escola onde a o qual foi ratificado pela Constituição de cultura substituía as limitações do tradicio- 34. Com o golpe de 37, as mulheres só co- nal ensino de prendas domésticas. Ela pró- meçaram a votar em 1945 com a redemo- pria libertou-se de casamento imposto, ele- cratização do país. Ainda assim votar não geu uma união por amor, dedicou-se ao significava ser candidata ou ser eleita. Pou- trabalho remunerado e buscou a aventura cas se elegeram em 1945 (Tabak, 1982; Blay, de conhecer outros países e suas realida- 1988), a maioria pelo Partido Comunista ou des. Viajante, no sentido estrito deste ter- partidos a ele vinculados. No ano seguinte, mo, Nisia esteve na França, na Itália e na os partidos de esquerda foram colocados na Alemanha, onde presenciou revoluções ilegalidade e as eleitas, junto com seus com- políticas sobre as quais escreveu vários li- panheiros, perderam o mandato. vros publicados na Itália, França e Alema- Zuleika Alembert, deputada estadual nha (Duarte, 1991). paulista, eleita pelos portuários de Santos, Certamente Nisia Floresta se somava a foi uma das que tiveram o mandato cassado uma camada de mulheres emancipadas do e foi obrigada a se exilar. A trajetória de século XIX do Brasil e de outros países. Zuleika é paradigmática da atuação das Elas se correspondiam, conheciam a obra mulheres progressistas pois, terminada a literária umas das outras e se publicavam Segunda Guerra Mundial, iniciou-se a mutuamente. Escritoras e jornalistas man- persecutória da Guerra Fria. Com a incor- tinham contato e intercâmbio com intelec- poração do Brasil ao bloco norte-america- tuais homens e mulheres da época. no, o movimento de mulheres também se Um novo ciclo feminista se iniciou nas dividiu, uma corrente mais ligada à Igreja duas primeiras décadas do século XX. No Católica e a partidos conservadores e outra novo momento uma pequena elite de inte- progressista, que atuava na clandestinida- lectuais de classe média, mulheres que fi- de face à caça aos comunistas (11). 10Escritora inglesa feminista do zeram a universidade no exterior, como Na década de 60 as mulheres estavam século XVIII. Bertha Lutz, se somaram a jornalistas e alertas e preparadas para tomar uma posi- 11Este retrospecto certamente é insuficiente para a complexi- artistas (Alves, 1980). Essa segunda leva ção política fosse à direita ou à esquerda. dade do processo de partici- feminista ficou marcada pela luta pelo di- Iniciou-se o que se poderia considerar uma pação política feminina cujo estudo sistemático ainda está reito ao voto. Brasileiras aderiram a um terceira vaga do feminismo brasileiro. A por se realizar. 91 REVISTA USP, São Paulo, n.49, p. 82-97, março/maio 2001
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