Revista Brasileira de Agroecologia Rev. Bras. de Agroecologia. 5(2): 247-263 (2010) ISSN: 1980-9735 Transição agroecológica e sustentabilidade dos agricultores 1 familiares do Território do Caparaó-ES Agroecological transition and sustainability of family agriculturists in the Territory of Caparaó, state of Espírito Santo, Brazil SIQUEIRA,HaloysioMiguelde1,SOUZA,PauloMarcelode2,RABELLO,LilianKatianyCastello3, FERREIRA,RodrigodeSouza4,ALVAREZ,CélioRicardodaSilva5. 1 ProgramadePós-GraduaçãoemProduçãoVegetaldaUniversidadeEstadualdoNorteFluminense DarcyRibeiro-UENF,CamposdosGoytacazes/RJ-Brasil/DocentedaUniversidadeFederaldo 2 EspíritoSanto,Alegre/ES-Brasil,[email protected]; DocentedoProgramadePós-Graduaçãoem ProduçãoVegetaldaUniversidadeEstadualdoNorteFluminenseDarcyRibeiro-UENF,Camposdos 3 Goytacazes/RJ-Brasil, [email protected]; Docentesubstitutada UniversidadeFederaldoEspírito 4 Santo,Alegre/ES-Brasil,[email protected]; InstitutoCapixabadePesquisa,AssistênciaTécnicae 5 ExtensãoRural -Incaper,Alegre/ES-Brasil,[email protected]; Biólogo,Especialistaem Agroecologia,[email protected] RESUMO O objetivo desse artigo é apresentar os resultados do levantamento dos agricultores familiares em processo de transição agroecológica no Território do Caparaó-ES, e discutir os fatores que afetam esse processo. O estudo revela o potencial dos sistemas agroecológicos para proporcionar maior sustentabilidade à produção familiar. Entretanto, os agricultores identificados enfrentam grandes dificuldades para desenvolverem este potencial, destacando- se a falta de mais tecnologias e de assistência técnica com enfoque agroecológico, a falta de uma modalidade de crédito rural que atenda as exigências e peculiaridades do processo de transição e a falta de apoio à comercialização justa. PALAVRAS-CHAVE: transição agroecológica; agricultura familiar; sustentabilidade ABSTRACT The objective of this paper is to present the results of the survey of family agriculturists in agroecological transition in the Territory of Caparaó, state of Espírito Santo, Brazil, and discuss the factors involved in this process. The study reveals the potential of agroecological systems to provide greater sustainability for family production. However, the agriculturists face great difficulties to develop this potential, highlighting the lack of more technology and technical assistance with agroecological approach, the lack of a kind of rural credit that meets the demands and peculiarities of the transition process and the lack of support for fair trade. KEY WORDS: agroecological transition; family agriculture; sustainability Correspondênciaspara:[email protected] Aceitoparapublicaçãoem 27/07/2010 Siqueira,Souza,Rabello,Ferreira&Alvarez Introdução A agricultura convencional ou moderna se concentração fundiária e a sobrevalorização da 2 caracteriza pelo uso intensivo do fator capital terra; a proletarização e o êxodo rural, para elevar a produtividade da terra e do trabalho, decorrentes da exclusão da maioria dos através da adoção de variedades de plantas e agricultores familiares dos benefícios da raças animais geneticamente melhoradas, em modernização; a insegurança alimentar; as monoculturas, insumos (ex: agroquímicos) e intoxicações e a poluição ambiental devido ao uso máquinas de origem industrial, dependentes do de agrotóxicos; o estreitamento da base genética petróleo como matriz energética, constituindo um das plantas cultivadas, a erosão genética e o 3 “pacote tecnológico” . É uma agricultura que visa controle do germoplasma das variedades antigas à maximização da lucratividade no prazo mais porempresastransnacionais. curto possível. Sua origem remonta às A partir dessa visão crítica, emergiu um descobertas e invenções que ocorreram ainda no movimento social em busca de alternativas século XIX, em genética, fertilização artificial de tecnológicas ao padrão moderno, que ganhou solos e moto-mecanização. Mas, foi após a 2ª força nos anos 1980 e ficou conhecido como guerra mundial que esse modelo tecnológico se movimento pela “agricultura alternativa”. Além do consolidou e se expandiu pelo mundo, no bojo da incentivo às experiências práticas, para dar chamadaRevoluçãoVerde. visibilidade dos resultados positivos e mostrar que No Brasil, o processo de modernização da também é possível produzir bem adotando agricultura foi muito impulsionado pelo Estado, técnicas não-convencionais, uma das principais principalmentepormeiodapolíticadecréditorural ações do movimento no Brasil foi de exercer subsidiado, que vigorou no período de 1965 a pressão política para a ocorrência das mudanças 1980, para viabilizar a adoção do pacote institucionais necessárias, em nível do ensino, da tecnológico, concentrando-se entre os agricultores pesquisa, da extensão, do fomento, do patronais, de modo que foi mantida a tendência financiamento e da comercialização para que o histórica elitista das políticas estatais. O desenvolvimento agrícola pudesse assumir outra subdesenvolvimento da agricultura e do meio rural direção. era atribuído ao seu atraso tecnológico, tomando Atualmente, um bom exemplo de que essa as teorias do insumo moderno (SCHULTZ, 1965) pressão política histórica surtiu efeito é o caso do e do difusionismo (ROGERS e SHOEMAKER, Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA, 1974)comoreferenciaisdeanálise. que vem realizando ações de promoção e Entretanto, esse processo de modernização incentivo à produção familiar 4 passou a ser objeto de várias críticas apontando orgânica/agroecológica em termos de crédito, os impactos socioeconômicos e ambientais assistência técnica, agregação de valor e geração negativos gerados, que se diferenciam conforme o de renda. Segundo o Núcleo de Estudos Agrários 5 momento histórico, a região e as culturas eDesenvolvimentoRural , enfocadas, bem como salientando que o enfrentamento do problema da fome não se “Entre 2003 e 2005 a SAF/MDA apoiou cerca resume a uma questão de eficiência agrícola, pois de R$ 80 milhões em ações de produção requer, principalmente, que se faça justiça social. orgânica e/ou agroecologia, sendo R$ 36,8 Entre os impactos abordados vale citar: a milhões em assistência técnica e extensão dependência de insumos industriais e o aumento rural; R$ 37,5 milhões em pesquisa e dos custos monetários de produção; a 248 Rev.Bras.deAgroecologia. 5(2):247-263(2010) Transiçãoagroecológicaesustentabilidade valor; e R$ 2 milhões em agrobiodiversidade. na América Latina e 16% das terras com No crédito, foram criadas linhas especiais do agricultura orgânica no mundo. O Brasil estava Programa Nacional de Fortalecimento da em 8º lugar no ranking mundial de área com Agricultura Familiar (Pronaf), como o culturas orgânicas. No topo da lista estavam, Agroecologia e o Floresta. Na assistência respectivamente,Austrália,ChinaeArgentina. técnicaeextensãorural,asaçõesplanejadase SegundoBrasil(2006),oBrasiltinha,em2006, desenvolvidas são baseadas nos princípios da uma área cultivada de cerca de 800.000 hectares agroecologia e, em 2007, foram criadas redes com agricultura orgânica e cerca de 15.000 temáticas envolvendo técnicos da extensão produtores, sendo 68% deles da região sul e 10% rural para tratar de temas como produção do sudeste. A região centro-oeste, apesar de orgânicaeagroecologia. abranger apenas 5% dos produtores, tinha a Já na geração de renda e agregação de maior participação na área cultivada, com 65%. A valor, foram apoiados, nos anos de 2006 e prática da agricultura orgânica, certificada ou não, parte de 2007, 12 convênios em agricultura nosestabelecimentosagropecuáriosbrasileirosfoi orgânica/agroecológica, representando um investigada pelo IBGE, pela primeira vez, por montantedeR$1,5milhão. meio do Censo Agropecuário 2006 (IBGE, 2009). Ainda nesta área, foi apoiada a participação Os estabelecimentos produtores de orgânicos de agricultores familiares com produção representavam 1,75% do total. Na distribuição orgânica em importantes feiras nacionais, destes estabelecimentos quanto às atividades comoaFeiradaAgriculturaFamiliareReforma econômicas, nota-se o predomínio da Agrária, que gerou cerca de R$ 10 milhões em pecuária/criação de outros animais, com peso de vendas diretas nos dois últimos anos, e 42%, e das lavouras temporárias, com 33,3%. internacionais, como a Biofach, que acontece Porém, a proporção dos estabelecimentos em Nuremberg, na Alemanha, e a Biofach produtores de orgânicos é maior entre o total de America Latina e Exposustentat, em São estabelecimentos que se dedicavam à Paulo.” horticultura/floricultura. No Estado do Espírito Santo, segundo a Vale destacar também o reconhecimento Associação Chão Vivo (2010), existem 144 oficial, internacionalmente, do importante papel propriedades certificadas, perfazendo uma área que a agricultura orgânica pode cumprir em total de 2.535,9ha, além de outras 420 em termos de segurança alimentar das nações, processo de transição que perfazem uma área conforme as conclusões da Conferência total de 5.460ha. A soma das áreas destas Internacional sobre Agricultura Orgânica e propriedades (certificadas e em transição) Segurança Alimentar, organizada pela FAO e corresponde a 0,28% da área total ocupada pelos realizadaem2007,emRoma. estabelecimentos agropecuários no Espírito É oportuno apresentar alguns dados que Santo. revelam a dimensão da agricultura orgânica no À medida que os movimentos contrários à Brasil e no mundo. Willer, Yussefi-Menzler e agricultura convencional, em nível mundial, foram Sorensen (2008) informam que na América Latina ganhando a adesão de alguns pesquisadores, 223.277 produtores manejavam 4,9 milhões de passou-se a buscar fundamentação científica para hectares de terras agrícolas organicamente, em as práticas alternativas. Assim, foi sendo 2006. Isto representa 0,7 % das terras agrícolas Rev.Bras.deAgroecologia. 5(2):247-263(2010) 249 Siqueira,Souza,Rabello,Ferreira&Alvarez construído um arcabouço teórico, ao longo do de produção (não necessariamente certificados). século 20, que se consolidou em uma nova Uma dessas iniciativas já foi estudada (SIQUEIRA ciência,aAgroecologia,nosanos1980.Deacordo et al., 2008), referindo-se à experiência da com Gliessman (2005: 54), a Agroecologia se Associação Capixaba de Agricultores Orgânicos dedica à “[...] aplicação de conceitos e princípios Familiares de Iúna e região – ACAOFI. As demais ecológicos no desenho e manejo de iniciativas estão sendo enfocadas, pela primeira 8 agroecossistemas sustentáveis”, considerando os vez, na tese de doutorado (em andamento) do 1º ecossistemas naturais e os agroecossistemas autor do presente artigo, a qual foi tomada (em tradicionais (indígenas e camponeses) como parte)comobaseparaaelaboraçãodomesmo. referênciasiniciaisbásicas. O objetivo desse artigo é apresentar os O processo de transição agroecológica, ou resultados do levantamento dos agricultores seja, de conversão de sistemas agrícolas familiaresemprocessodetransiçãoagroecológica convencionais em agroecológicos, vem sendo no Território do Caparaó-ES, e discutir os objeto de estudo no Brasil procurando principais fatores que afetam esse processo. O compreender os fatores que estão envolvidos pressuposto fundamental do estudo foi que os nesse processo e estabelecer diretrizes que sistemas agroecológicos de produção teriam possam facilitar a transição. Os trabalhos de potencial para proporcionar maior 9 Mattos (2006), Lima e Carmo (2006), Caporal e sustentabilidade aessesagricultores. Costabeber (2004), Feiden et al. (2002), Assis (2002), Khatounian (2001) e Veiga (1994), entre CaracterizaçãodoTerritóriodoCaparaó-ES outros, constituem relevantes contribuições nesse O Território do Caparaó-ES (TC) está sentido. localizado no sudoeste do Estado do Espírito 2 Também já foram feitos levantamentos de Santo, perfazendo uma área de 3.920,70Km , o agricultores orgânicos/agroecológicos no Brasil que corresponde a 8,5% da área estadual. É 6 7 (GRAZIANOetal.,2009 ;ORMONDetal.,2002 ) constituído por onze municípios, quais sejam: e em algumas regiões brasileiras específicas, tais Alegre, Dores do Rio Preto, Divino São Lourenço, como os Estados do Espírito Santo (CARMONA, Guaçuí, Ibitirama, Iúna, Irupi, Ibatiba, Jerônimo 2004) e de Santa Catarina (OLTRAMARI, Monteiro,MunizFreireeSãoJosédoCalçado.No ZOLDAN e ALTMANN, 2003), o Centro-Sul do Estado do Espírito Santo existem outros cinco Paraná (AHRENS, 2006) e os municípios de territórios definidos. Esta divisão do Estado em Pelotas-RS (FINATTO e SALAMONI, 2008) e territórios representa uma tentativa de reunir Campos dos Goytacazes-RJ (BARBÉ, SOUZA e municípios de características ambientais, PONCIANO,2009). socioeconômicas e socioculturais similares, para Especificamente no Território do Caparaó-ES, que possam somar forças em busca do seu constata-se a existência de algumas iniciativas em desenvolvimento. busca de alternativas tecnológicas envolvendo um O TC é um dos "Territórios da Cidadania" número reduzido de agricultores, em sua grande reconhecidos pelo MDA, como parte de um maioria do tipo “familiar”, sozinhos ou em programa que busca superar a pobreza rural por pequenos grupos relativamente isolados, que meio da promoção do desenvolvimento destes estão sensibilizados, em processo de transição ou territórios, de modo a melhorar a qualidade de convertidos para o sistema orgânico/agroecológico vida das populações rurais, garantindo os seus 250 Rev.Bras.deAgroecologia.5(2):247-263(2010) Transiçãoagroecológicaesustentabilidade direitoseasuacidadania.OConselhoTerritorialé e de seus moradores está intimamente responsável pela elaboração e gestão do Plano vinculada às paisagens da região, em especial Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável e àquelas preservadas nas unidades de Solidário, bem como pelo controle social das conservação como o Parque Nacional do políticas públicas decorrentes, se colocando como Caparaó e o Parque Estadual da Cachoeira da um espaço de participação, discussão, proposição Fumaça.(...)Alémdisso,ressalta-setambémo e deliberação democrática. É um órgão colegiado fato da região estar inserida em três bacias constituído por representantes do poder público e hidrográficas (do Rio Itapemirim, do Rio dasociedadecivil,deformaparitária,comumtotal Itabapoana e do Rio Doce), sendo uma das de34membrosnoTC. regiões capixabas de maior potencial hídrico Conforme o Instituto Jones dos Santos Neves, [...]”. o TC participava, em 2007, com 1,9% no PIB estadual. Os valores de PIB per capita municipais De acordo com o IBGE, o TC contava com variaram de R$5.705,00, em Jerônimo Monteiro, a 170.522 habitantes em 2007, sendo que a R$8.253,00, em Irupi, enquanto o valor para o população rural representava 40,4% desse total. Estado foi de R$18.003,00. A Agência 21 (2006) Segundo a Agência 21 (2006), essa participação informa que sete dos onze municípios do TC já chegou a quase 70% em 1970, o que evidencia apresentam mais de 60% da renda familiar um intenso processo de êxodo rural na região, proveniente do setor agrícola, o qual também sendo a falta de infraestrutura e dos serviços ocupa 57% dos trabalhadores da região. As públicos necessários à cidadania uma das causas principais atividades econômicas são a principais. E segundo o Atlas do Desenvolvimento cafeicultura e a pecuária de leite. Além dessas, Humano no Brasil, o IDH dos municípios que também se encontram as culturas de milho, feijão, compõem o TC foi igual a 0,73, em média no ano mandioca, frutas variadas, aves e suínos, entre de 2000, indicando um médio nível de outras, geralmente como economia de desenvolvimento humano regional. O melhor IDH subsistência. foi obtido em Dores do Rio Preto (0,77) e os 10 Os estabelecimentos familiares piores em Divino de São Lourenço e Ibitirama correspondem a 81,8% do total de (ambosiguaisa0,69). estabelecimentos agrícolas do TC, ocupando O TC também apresenta sérios problemas apenas 43,9% da área agrícola, conforme ambientais. O histórico de desmatamento totalização obtida com base nos dados do IBGE indiscriminado reduziu drasticamente a cobertura (2009), o que revela a concentração fundiária no florestal nativa. Práticas como o uso degradante TC. do solo e da água, inclusive com aplicação Uma importante característica do TC se refere abusiva de agrotóxicos, são muito comuns. Por ao meio ambiente que o compõe, onde “[...] outro lado, o TC possui grande potencial turístico predominam terras acidentadas com temperaturas em função do relevo acidentado, das baixas frias ou amenas em 82% do espaço territorial [...]” temperaturas e do bioma regional. A produção (ESPÍRITO SANTO, 2008: 78), fazendo parte da orgânica/agroecológica representa um dos nichos faixa de domínio da Mata Atlântica. A Agência 21 demercadoqueaindaémuitopoucoexplorado. (2006:71)relataque: Metodologia “[...] a própria identidade cultural do território O levantamento realizado correspondeu a um Rev.Bras.deAgroecologia.5(2):247-263(2010) 251 Siqueira,Souza,Rabello,Ferreira&Alvarez censo dos agricultores familiares que se Sindicatos de Trabalhadores Rurais e encontram em transição agroecológica no AssociaçõesComunitárias. Território do Caparaó-ES (TC), utilizando o As inovações técnicas, no campo da questionário e a entrevista como instrumentos Agroecologia, foram contextualizadas em termos para coleta de dados. A coleta foi iniciada em socioeconômicos e socioambientais. O 2006 e concluída em 2009, quando, inclusive, levantamento abrangeu os seguintes aspectos: a procedeu-se a atualização dos dados. Os critérios família e a terra; o agroecossistema, com ênfase para enquadrar o agricultor nessa situação foram nas práticas agroecológicas adotadas; as 11 a adoção de pelo menos duas práticas atividades não-agrícolas existentes (agroindústria, consideradas agroecológicas e o esforço de evitar agroturismo, etc.); a mão-de-obra utilizada; o a utilização de agrotóxicos, sempre que possível, acesso à assistência técnica e ao crédito; as em função de sua consciência crítica quanto aos condições de comercialização e as rendas impactos socioambientais negativos dos externas obtidas. Quanto às práticas agrotóxicos. agroecológicas adotadas, abordaram-se a origem, Procuraram-se indicações de quais seriam os as culturas em que se aplicam, os resultados agricultores familiares com esse perfil em cada obtidoseasprincipaisdificuldadesenfrentadas. município do TC, além, é claro, daqueles já Os dados foram processados utilizando o conhecidos pelos autores desse artigo antes do programa de estatística SPSS for Windows. E levantamento. Para isso, mantiveram-se contato foram analisados com base nas freqüências com os escritórios do Instituto Capixaba de obtidas, as quais estão expressas em Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural – porcentagem. INCAPER, Secretarias Municipais de Agricultura, 252 Rev.Bras.deAgroecologia.5(2):247-263(2010) Transiçãoagroecológicaesustentabilidade ResultadoseDiscussão No Território do Caparaó-ES (TC) foram 25ha. A maioria está na condição de proprietário identificados 46 (quarenta e seis) (por herança ou compra individual), mas também 12 estabelecimentos familiares em processo de existem assentados de reforma agrária, transição agroecológica, abrangendo todos os 11 assentados de crédito fundiário e comodatários, (onze) municípios que o compõem, conforme a além de um arrendatário e um posseiro- tabela 1. Isso corresponde a cerca de 0,5% do quilombola. totaldeestabelecimentosfamiliaresdoTC. A influência recebida para iniciar a transição Mais da metade dos agricultores familiares agroecológica tem como origem mais citada a desses estabelecimentos cursou somente o atuação de determinados técnicos (43%), além da ensino fundamental (completo ou incompleto), associação de agricultores (11%), vizinhos e embora um número significativo (27%) também amigos, organização não-governamental e cursos tenha cursado o ensino médio, e apenas quatro e palestras (com o mesmo peso de 6,5%), entre agricultores são analfabetos. A participação em outras origens. Uma parcela considerável (37%) organizações sociais é muito comum, dos entrevistados disse que passou a adotar predominando a associação da comunidade e o práticas agroecológicas por iniciativa própria ou sindicatodetrabalhadoresrurais. portradiçãofamiliar. Entre os 46 agricultores familiares que estão Quase a metade (48%) dos entrevistados em transição agroecológica, 85% produzem em informou aplicar as práticas agroecológicas em estabelecimentos cuja área total não excede a todas as culturas do estabelecimento, dentre as Rev.Bras.deAgroecologia.5(2):247-263(2010) 253 Siqueira,Souza,Rabello,Ferreira&Alvarez 13 quais predominam café , milho, feijão, olerícolas diferença entre os sistemas “agroecológico” e e frutíferas, na parte vegetal, e aves, suínos, “orgânico” de produção, que são os termos mais peixes e bovinos de leite, na parte animal. Os em voga atualmente no Brasil. O sistema demais aplicam em culturas específicas, sendo orgânico não corresponde, muitas vezes, ao 14 olerícolas,café eavesasmaiscomuns. agroecológico, principalmente quando se orienta Na tabela 2 encontram-se expostas as práticas apenas a aproveitar os nichos de mercado, agroecológicas levantadas. Nota-se que as caracterizando-seporapresentar práticas adotadas por, pelo menos, mais de 30% dos agricultores familiares são: cobertura morta, “[...] simplificação dos manejos, baixa manejo de plantas espontâneas com roçadas, diversificação dos elementos dos sistemas consorciação de culturas, adubação com esterco, produtivos, baixa integração entre tais compostagem e controle alternativo de pragas e elementos, especialização da produção sobre doenças. poucos produtos, simples substituição de Noprocessodetransiçãoagroecológicapodem insumos químicos e biológicos e exígua ser concebidos três níveis ou passos para preocupação com a inclusão social e criação conversão de sistemas agrícolas convencionais de alternativas de renda para os agricultores em agroecológicos, segundo Gliessman (2005). O mais pobres” (CANUTO, 1998, apud MATTOS, primeiro se refere à redução do uso de insumos 2006:24). externos, caros, escassos e impactantes ambientalmente, maximizando a eficiência das Contudo, essa diferenciação não significa dizer práticas convencionais. No segundo nível, que o sistema orgânico, na sua forma mais ocorreria a substituição de insumos químico- comum da simples substituição de insumos sintéticos por insumos orgânicos e práticas químico-sintéticos por insumos orgânicos, não alternativas. E no terceiro, seriam redesenhados possa ser encarado como uma etapa os sistemas produtivos para que passem a intermediária do processo de transição funcionar com base em um novo conjunto de agroecológica, conforme a concepção de processos ecológicos, sendo o expressivo Gliessman (2005), na medida que o agricultor aumento da biodiversidade um dos seus principais esteja consciente das limitações que tal sistema indicadores. ainda oferece para alcançar a sustentabilidade Analisando a tabela 2, com base nesse agrícola, e também esteja disposto a avançar na referencial teórico, pode-se inferir que a grande transição. No presente estudo foram identificados maioria dos agricultores familiares abordados somente três agricultores legalmente certificados ainda está no nível de substituição dos insumos como “orgânicos”, embora, seus sistemas químico-sintéticos por insumos orgânicos e produtivos ainda sejam contrastantes com o ideal práticas alternativas, em diferentes graus. Apenas agroecológico. quatro agricultores conseguiram avançar para o Quanto aos resultados obtidos com as práticas terceiro nível, redesenhando os seus sistemas agroecológicas, constatou-se que houve pouca produtivos, total ou parcialmente, de modo a convergência nas respostas dos agricultores, assumir a forma agroflorestal com elevada conformerevelaatabela3. Pode-seobservarque diversificação e mínima dependência de insumos somente o “menor risco à saúde familiar” aparece externos. como resultado bem citado (39%). Além deste, os Nesse sentido, é pertinente esclarecer a resultados mais citados (por 8 a 9 agricultores) 254 Rev.Bras.deAgroecologia.5(2):247-263(2010) Transiçãoagroecológicaesustentabilidade foram: ampliação das fontes e/ou aumento de condiçõesdetrabalho. renda, melhor condição de trabalho e cultivo, O baixo índice de relato de ganhos ambientais economia de insumos externos, conservação do se deve, em parte, ao fato de tais ganhos solo e proteção ao meio ambiente e/ou à demorarem mais a ocorrer, pois dependem dos biodiversidade. Apesar da variedade de resultados processos ecológicos envolvidos na recuperação informados, no conjunto eles revelam o potencial e conservação das áreas agrícolas, os quais dos sistemas agroecológicos em contribuir para o possuem um tempo próprio para surtir os efeitos desenvolvimento de uma agricultura mais esperados, conforme salientado por Gliessman sustentável no TC, principalmente pelo lado (2005). Mas, também se pode explicar pelo fato socioeconômico, que se manifesta em termos de de muitos agricultores ainda não estarem melhoria na saúde familiar, na renda e nas suficientemente sensíveis às questões ambientais Rev.Bras.deAgroecologia.5(2):247-263(2010) 255 Siqueira,Souza,Rabello,Ferreira&Alvarez demodomaisamplo. sistema agroecológico, apresentadas na tabela 4 , É preciso ressaltar que os agricultores também se observa que as respostas dadas pelos familiares abordados se encontram em processo agricultores familiares foram, em geral, pouco de transição agroecológica e, por isto mesmo, convergentes. As dificuldades mais citadas (por 6 ainda não puderam obter todos os resultados a 8 agricultores) foram a obtenção de esterco, a potenciais de sistemas agroecológicos exigência de mão-de-obra, a comercialização e a consolidados. Inclusive, existem dois projetos que faltadereconhecimentoeincentivo. estãoemfasedeimplantação,emassentamentos, Além dos três passos da transição eaindanãotêmresultadosarelatar. agroecológica enfocados anteriormente, que No que se refere às dificuldades na adoção do correspondem à transição interna, Mattos (2006) 256 Rev.Bras.deAgroecologia.5(2):247-263(2010)
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