TRANSE NAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS DO MARANHÃO' Sergio F.Ferretti" Mundicanno M.R.Ferretti'" RESUMO Transe nas Religiões Afro-Brasileiras do Maranhão. Visão geral do Tambor deMina, religião afro-brasileira difundida noMaranhão ena Amazônia, sobretudo entre populações negras, urbanas e pobres, caracterizada como religião iniciática, detranse edemistério. Otranse no Tambor de Mina é descrito como apresentando características discretas, evidenciando-se aos não iniciados, principalmente por detalhes do vestuário. A partir dos depoimentos de médiuns e da observação de antropólogos, discute-se otranse dos voduns da Casa das Minas e o de caboclos de outros terreiros, procurando-se seus elementos específicos em comum com oEspiritismo Kardecista. O transe é apresentado como estado comparável ao sonho, ao sonambulismo e aos estados anestésicos experimentados por um número maior de pessoas. Palavras-chave: tambor de mina; transe; mediunidade; vidência; possessão; religiões afro-brasileiras; Maranhão; casa das minas; terreiro demina. SUMMARY Trance in the Afro-Brazilian Religions of Maranhão. The general vision ofTambor deMina (Drum ofMina), anafro-brazilian religion scattered throughout Maranhão and Amazônia especially among the low income, urban, negro population is of a religion characterised as one that iniciates people in trance and mystery. The trance of Tambor de Mina has been described as discreet, perceived by the "non-iniciaied'' only as alterations in the dress and body apparel of the subject. Starting with declarations from mediums and the observations of anthropologists, discussion ofthe trance ofpractioners ofVodun of Casa das Minas and ofthe caboclos (entities) from others terreiros Trabalho apresentado na IX Jornada sobre Alternativas Religiosas na América Latina, organizado no o lFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, 21 a 24/09/1999. 'o Dr. em Antropologia, professor da UFMA. DT'. em Antropologia, professora da UEMA. o•• 106 Cad. Pesq., SãoLuís,v.ll, n.1,p. 106-127,jan./jun. 2000. (worship centers), the search for its specific common ground with spiritualism of Kardec. The trance is presented as comparable to the dream state, to sleepwalking and states of being anaesthetised, things verified outside of the religious experience. Key-words: drum of mina; transe; mediunicom; seer possession; afro-brazilian religions; Maranhão; house of minas; backyard of minas. 1 INTRODUÇÃO Mina, nome derivado do antigo Forte deElMina na atual República do Gana. o Maranhão, situado entre oNor- Segundo estudos recentes (Oliveira, te e oNordeste do Brasil, numa região 1997), negros minas são os que proce- tropical, possui folclore diversificado e dem da região situada ao sul do Forte bonito patrimônio histórico- de El Mina, destacando-se entre os arquitetônico. Sua capital, São Luís, lo- mais importantes os Jêje, os Nagô e calizada em ilha pré-Amazônica, por outros. suas características culturais e A população negra do Maranhão arquitetônicas, recentemente foi reco- concentra-se principalmente em São nhecida pela UNESCO como Luís eem algumas regiões do interior, Patrimônio da Humanidade. Devido a como Codó eCururupú e outras. Mui- circunstâncias históricas egeográficas, tos negros vivem em comunidades ru- oMaranhão permaneceu relativamen- rais,originadas deantigos quilombos ou teisolado. Por influências indígena, eu- de fazendas decadentes deixadas a es- ropéia eafricana, desenvolveu-se, nesta cravos e seus descendentes. Estima- região, uma cultura popular muito se que existem no Maranhão mais de diversificada. Atualmente oMaranhão 300 comunidades rurais negras possui cerca de cinco milhões de habi- (Almeida, 1993), a maioria enfrentan- tantes, a quinta parte dos quais reside do hoje sérios problemas de luta pela na capital. São Luís éuma bela cidade, posse da terra, onde seus antepassa- com características coloniais e onde a dos viveram há mais de um século. pobreza atinge amaioria dapopulação. As religiões trazidas para oBrasil Entre 1750 e 1850, o Maranhão por escravos, difundiram-se original- esteve entre as três ou quatro maiores mente entre populações negras e po- regiões importadoras de escravos no bres, que até hoje predominam entre Brasil que, em 1819, representavam os seus participantes. Em toda parte do 66% de sua população, segundo cálcu- país, constitui-se, como constatou Ed- los apresentados por Taunay (Dantas, son Carneiro (1961), um fenômeno ti- 1988). Em inícios do séc. XIX, grande picamente urbano, difundido nas parte destes escravos pertencia a gru- capitais e em uma ou outra cidade do pos procedentes da Costa da África, interior. No Maranhão, areligião afro- denominados genericamente denegros brasileira élargamente difundida epos- Cad. Pesq.,SãoLuís,v.11,n.1,p. 106-127,jan./jun. 2000. 107 sui variações regionais nos instrumen- daqueles mesmos produtos e lá, apre- tos, nas danças, nos ritmos, no repertó- sença negra é também muito grande. rio dos cânticos, nas entidades Em Cururupú, os salões de curadores espirituais cultuadas, no vestuário, no são numerosos e a religião afro-brasi- comportamento dos participantes, etc., leira secruza com elementos doTerecô, originando várias tradições, sendo as da Mina e da Umbanda. Os principais denominadas Tambor de dois terreiros de Tambor de Mina, Cura ou Pajelança, Terecô e Mina mais antigos doMaranhão, foram Umbanda. fundados por africanos, em São Luís e A religião de origem africana tra- continuam atuantes até hoje. São eles: dicional, predominante no Maranhão e a Casa das Minas e a Casa de Nagô. na Amazônia, denomina-se Tambor de Localizam-se no bairro de São Mina. Possui características específi- Pantaleão, distando apenas uma qua- cas que a distinguem de outras religi- dra um do outro, próximos ao Centro. õesafro-brasileiras, como oXangô de Ambos devem ter sido fundados, com Pemambuco, oCandomblé da Bahia, o poucos anos de diferença, provavel- Batuque do Rio Grande do Sul, ou a mente na década de 1840. A Casa das Umbanda do Rio de Janeiro. No Ma- Minas, considerada a mais antiga, é a ranhão os principais núcleos de Tam- única exclusivamente Jêje, que cultua bor de Mina localizam-se na capital do apenas voduns e que não tem casas Estado. No interior, apesar do Tambor diretamente derivadas ("filiais"). deMina sertambém conhecido, há pre- Existem em São Luís centenas de dominância de outras denominações outros terreiros, de número e caracte- como Cura ou Terecô. rísticas difíceis de serem precisados. Codó, localizada há cerca de 350 Estes terreiros seguem, sobretudo, a km de São Luís, às margens do Rio tradição da Casa de Nagô, que come- Itapecurú, foi núcleo irradiador do cul- çou a ser difundida em fins do século tivo de algodão e cana de açúcar, com XIX. Alguns apresentam influências da mão de obra escrava. Nesta região, a Cura ou Pajelança, do Terecô, da religião afro-brasileira tradicional éde- Umbanda, doCandomblé, etambém da nominada Terecô, Encantaria de Bár- cultura jêje da Casa das Minas. No bara Soeira, ou Tambor da Mata. modelo do Tambor de Mina do Mara- Possui características específicas e di- nhão prevalece, entretanto, o tipo de fundiu-se em regiões vizinhas, atingin- organização da Casa de Nagô, com in- do São Luís e outras cidades do fluências da Casa das Minas. Desde Maranhão e de outros Estados. meados do século XX a Umbanda se Cururupú, no Litoral Norte, acer- difundiu largamente noMaranhão ten- ca de 500 km de São Luís, em direção dohavido aproximação entre entidades ao Pará, foi, nos séculos XVIII eXIX, antigas do Tambor de Mina com enti- importante porto de entrada de escra- dades cultuadas na Umbanda. Grande vos de contrabando (Salles, 1971). Foi número de terreiros de São Luís e do igualmente núcleo irradiadordo cultivo Maranhão realiza culto em que secon- 108 Cad. Pesq., São Luís, v.11,n. J,p. J06-J27,jan./jun. 2000. centram elementos da Umbanda da Oscânticos sãopredominantemente em Mina, interrelacionados com certo pre- "Nagô" eem outras "línguas africanas", domínio de características de uma de- como Tapa, Cambinda, Jêje eem Por- las, havendo casas que se definem de tuguês, língua que predomina na maio- Umbanda ou como Tambor de Mina. ria das casas'. Entre as características gerais da OTambor de Mina éuma religião Mina Nagô, (da Casa de Nagô e dos iniciática, como as demais religiões terreiros por ela mais influenciados), afro-brasileiras. Os devotos têm que se podemos indicar: o predomínio (ou a submeter a longo processo de inicia- exclusividade, em certos grupos) de ção. No Maranhão, pormenores deste mulheres entre asfilhas-de-santo; ouso, processo são pouco comentados e co- como instrumentos musicais, de dois nhecidos, pois a iniciação quase não tambores denominados abatás', com possui ritos públicos. Poucas dançan- armação de metal e couro nas duas tes, duas ou três em cada comunidade, bocas, tocados horizontalmente, sobre se submetem aos ritos completos de cavaletes e acompanhados pelo ferro iniciação, que quase não são realiza- (agogô) e por cabaças revestidas de dos. Talvez porque, nas casas mais an- contas coloridas ou sementes; o uso, tigas, ainiciação étotalmente privada, durante osrituais, de roupas semelhan- no Tambor de Mina não se costuma tes pelas dançantes: saia da mesma cor, fazer festa para apresentação das ini- blusa branca rendada (cabeção) e san- ciadas à comunidade (como as saídas dálias na cor da saia, geralmente me- de iaô do Candomblé). nores que os pés. Quando em transe, O Tambor de Mina éuma religião as dançantes também usam uma toa- de mistérios. Em geral as vodunsis dão lha rendada amarrada na cintura ousob poucas informações sobre mitos eritu- os braços. A dançante de mina do ais relacionados com o culto. Não se Maranhão raramente usa torso oupano usa falar abertamente sobre segredos amarrado na cabeça, que pode ser en- da religião e sobre as entidades contrado em algumas casas e em ritu- cultuadas. Muitos detalhes são envol- aisespecíficos. Adança éfeita emroda, vidos pelo manto do segredo enão são no sentido contrário ao dos ponteiros comentados. Com isso osignificado de do relógio, ou para frente e para trás. diversos elementos do culto não é ex- IOs tambores nagôs diferem dos tambores jêjes, que são em número de três, denominados "hun", o maior, tocado ligeiramente inclinado, "humpli" e "gumpli", tocados, geralmente, por homens. Possuem couro em uma só boca, e são tocados com a mão e com varetas de madeira, denominadas "aguidaví". São também acompanhados por ferro (gan) e cabaças, tocadas por mulheres. 2Até agora quase não foram realizados estudos específicos de Lingüística sobre os cânticos no Tambor de Mina. Na Casa das Minas acredita-se que a maioria dos cânticos seja em língua Jêje (Fon de Abomey). Afirma-se porém, que os cânticos para a família de Quevioçô são em Nagô e que na festa para a família de Dambirá, canta-se também em Cambinda e em Cachéu. Na Casa de Nagô, canta-se principalmente em Nagô, mas diz-se que alguns cânticos são em Tapa e Caxias e outros em Português. Nos outros terreiros a maioria dos cânticos são em Português, mas há também cânticos originários das casas. mães Jêje e Nagô e cânticos conhecidos como em línguas procedentes das regiões do Congo e de Angola, ainda não devida- mente identificadas. Sobre cânticos da Casa das Minas veja-se Sogbossi, 1999. Cad. Pesq., São Luís, v. 11,n. 1,p. 106-127, jan./jun. 2000. 109 plicado, muitos conhecimentos não são ((Em um exame de parte de transmitidos e se perdem. A Mina é literatura sobre o tema, uma religião sobre aqual pouco sefala Hoskins, (1975) distingue e pouco se comenta. A maioria dos três fenômenos diferentes participantes considera-se adepta do contidos por vezes sob a catolicismo emuitas práticas docatoli- mesma rubrica: a cismo popular' foram assimiladas. A mediunidade, que designa Mina é considerada pelos praticantes genericamente o fato da uma obrigação, um trabalho, uma he- comunicação entre homens rança familiar, mais doquepropriamen- e espíritos, não se confun- teuma religião. dido com a possessão, o transe, que se refere a alte- 2 ALGUNS ESTUDOS rações orgânicas e SOBRE TRANSE E fisiológicas no estado cor- poral tido como normal; e POSSESSÃO a possessão, definida ge- ralmente como um estado de ((O transe para mim não é consciência 'alterada', no incorporação, é a manifes- qual o indivíduo experi- tação da verdadeira natu- menta no próprio corpo a reza da gente. Uma possi- manifestação de seres em bilidade de esquecer todas cuja existência acredita. as coisas que não têm a ver Há assim transe sem pos- com você." (Verger. In: Ho- sessão e possessão sem landa, 1999) transe, bem ora o mais fre- Existe ampla bibliografia que dis- qüente seja a associação cute problemas relacionados com os dos dois fenômenos. A sig- fenômenos do êxtase religioso, dotran- nificação desses três se e da possessão. Não nos compete termos, nem sempre éames- aqui fazer um apanhado desta biblio- ma, alterando-se de autor para autor." grafia. Vamos nos deter em alguns tra- balhos que consideramos interessantes Gilbert Rouget (1980), em estudo emais relacionados com temas que ire- clássico, chama atenção para as dife- mos debater adiante. Como mostra renças entre transe e êxtase, que al- Maria Laura V. C. Cavalcanti (1983, guns autores empregam como p.79): sinônimos econsidera (1980, p.35) que 30S terreiros de Mina organizam muitas festas do catolicismo popular, em homenagem a entidades espirituais recebidas em transe mediúnico, que apreciam tais festas, como a festa do Divino Espírito Santo, quase sempre na época da maior festa da casa, o Tambor de Crioula, para Averequete e outros, o Bumba-Meu-Boi, principalmente para entidades caboclas. Geralmente as festas de vodum iniciam-se por uma ladainha católica em latim. Assim a presença do sincretismo religioso é um elemento muito marcante no Tambor de Mina do Maranhão. 110 Cad. Pesq., São Luís, v. 11,n. 1,p. 106-127, jan.rjun. 2000. "o transe é sempre ligado a uma a simples conseqüência do superestimulação sensorial mais ou uso de bebidas alcoólicas menos marcada - barulhos, música, ou de tóxicos. A outra ex- odores, agitação -, o êxtase é ao con- plicação, sustentada a par- trário ligado maisfreqüentemente àuma tir da constatação de ser a privação sensorial- silêncio,jejum, obs- possessão um fato social- curidade". Lembra que as manifesta- mente determinado, a des- ções do transe podem serespetaculares peito de suas implicações ou discretas, que o transe em muitos biopsicolôgicas, defenderá casos pode ocorrer independente da a idéia de que para expli- música, que os tipos de música variam cá-la é preciso conectá-la com os tipos de transe, que a música com a ordem social abran- pode ser instrumental ouvocal eosins- gente, ora vendo-a como trumentos podem serde tipos diversifi- mecanismo adaptativo, ora cados. como instrumento de pro- Márcio Goldman (1985, p.22-54) testo social, ora como meio apresenta um amplo panorama dos es- de reforço da ordem tudos sobre apossessão no Brasil ein- existente. "(Goldman, 1985, dica as duas vertentes principais, que p.28-29). denomina de biologizante e Goldman critica asduas vertentes sociologizante, afirmando que: e outras visões vigentes entre nós e "Creio então ser possível propõem-se analisar o fenômeno da sustentar, de modo muito possessão investigando as noções de sumário como não poderia ritual e de pessoa nos terreiros de can- deixar de ser aqui, que his- domblé. toricamente foram apresen- Estudando manifestações religio- tados dois modelos para a sas afro-brasileiras na Amazônia, análise da possessão nos Furuya (1994), lembra com Crapanzano cultos afro-brasileiros - e, que a possessão por espíritos éum fe- por implicação, para os nômeno cultural, havendo um idioma da próprios cultos como um possessão compartilhado pelos mem- todo. Por um lado, o mode- bros dacomunidade. Afirma que "Cada lo mais antigo e hoje com- manifestação de um espírito éinterpre- pletamente ultrapassado tada de acordo com o padrão transmi- por seu reducionismo eevo- tido ao longo do tempo dentro da lucionismo comprometedo- comunidade discursiva" (1994, p.76). res propõe explicar o tran- Considera que algumas comunidades se reduzindo-o a um fator tendem a "congelar" seu idioma e ou- biológico, patológico e in- tras permitem "renovação" de idiomas. dividual, seja ele de cará- Daniel Halperin (1992), analisan- ter histérico, neurótico, ou do otranse em um terreiro demina não Cad. Pesq., São Luís, v.11,n. 1,p. 106-127, jan./jun. 2000. 111 tradicional de S. Luís, discute a duração doestado depossessão notam- interação entre os médiuns em transe, bor de mina, examina o problema da técnicas de indução ao transe, fazendo falsa possessão, da capacidade de comparações com seções de terapia de vidência discutindo exemplos de mé- dança. Apresenta distinção entre tran- diuns que seidentificam como consci- se, como estado alterado de consciên- entes. cia, e possessão, que considera um Luís Nicolau Parés (1997) apre- fenômeno cultural ereligioso determi- senta um estudo etnográfico sobre sete nado menos por alterações neurológi- casas de culto em São Luís, interessa- cas do que por sistemas de crenças do em analisar a mediunidade e apos- compartilhadas(1992, p.29). Considera sessão. O autor discute tipos de que a integração da análise científica mediunidade edepossessão através das do estado de transe com a interpreta- diversas categorias utilizadas pelos in- ção cultural dapossessão, necessita ex- formantes. Assim procura caracterizar plorações posteriores. Constata que os a mediunidade, a irradiação e a pos- médiuns afirmam que entram em tran- sessão no espiritismo, napajelança, no se por obrigação econsidera que os ri- terecô, notambor demina, nocandom- tuais tem efeitos terapêuticos com blé e na umbanda no Maranhão. No conseqüências físicas e mentais. Os capítulo 3 (p.100-148) oautor discute médiuns afirmam que os caboclos des- aspectos fenomenológicos docompor- carregam energias negativas. Considera tamento na possessão por espírito, no que otranse desempenha função auto- contexto de diferentes rituais, analisan- protetora e favorece o amor próprio, do, a despeito de sua dimensão sagra- uma vez que em geral asentidades elo- da,aspectos externos observáveis como giam seus médiuns e estes também se num espetáculo. Constata aexistência referem com grande afeição à suas de diferentes estágios, utilizando pala- entidades protetoras. vras portuguesas usadas pelos partici- HALPERIN (1995, p.157-235) pantes da mina, a saber: irradiação, retoma debates levantados em traba- incorporação, manifestação, virada e lho anterior arespeito de transe e pos- saída. Destaca os fatores de variação sessão em terreiros não tradicionais de nas expressões externas da possessão tambor de mina do Maranhão. Volta a por espírito em função da ortodoxia da discutir diferenças entre transe e pos- casa, dacategoria daentidade espiritual sessão apartir da bibliografia disponí- e da experiência do médium. Analisa vel e de depoimentos de informantes assim a incorporação na Casa das'Mi- privilegiados. Discute categorias corno nas Jêje, na Casa de Nagô, na mina de vibração, energia, força, trabalho, obri- caboclo, destacando por exemplo apo- gação e catarse em relação ao estado laridade entre calma e violência. O tra- depossessão. Em outro capítulo (1995, balho é ilustrado com um vídeo em que p.298-358), Halperin discute oproble- são apresentadas 51 detalhes de com- ma da memória, da consciência ou da portamento nas diferentes casas, em inconsciência, tendo em vista a longa vários momentos derituais públicos. 112 eM.Pesq., SãoLuís, v.ll, n.l,p.l06-127,jan./jun. 2000. 3 O TRANSE NO TAMBOR ciaepelouso de alguns símbolos como DE MINA colar, rebenque, bengala, lenços, etc. pela entidade incorporada. Como asdemais religiões afro-bra- Na Casa das Minas-Jêje e na sileiras,oTambordeMinaéumareligião Casa deNagô, apenas mulheres entram de transe ou possessão. O transe em transe e dançam com seu vodum. mediúnico é um elemento central e Comenta-se que, no passado, alguns estruturante desta religião, sendo enca- homens dacasa Jêje entravam em tran- rado como mudança de identidade, ge- se, mas permaneciam sentados e seus ralmente acompanhado de alteração da voduns eram saudados em particular, vontade, da memória e da consciência. em ambiente privado. Diferentemente Os conceitos de médium e de dos demais terreiros, na Casa das Mi- mediunidade sãolargamente utilizados e nas só os voduns éque dançam. Antes osconceitos de transe epossessão mui- de entrar em transe as vodunsis per- tasvezes sãousados indistintamente. manecem sentadas, com roupas co- Como não temos experiência pes- muns, geralmente brancas. soal do estado de transe, procuraremos Nos outros terreiros de Mina as analisá-Io a partir de observações e dançantes já entram no salão com a entrevistas, realizadas em terreiros de vestimenta ou farda. Após o cântico Tambor deMina, sobretudo com infor- "Imbarabô" e/ou outros cânticos de mantes da Casa das Minas, onde con- abertura, que duram cerca demeia hora, versamos e realizamos entrevistas há canta-se freqüentemente cânticos de vários anos, inclusive com pessoas em chamada, após o quê otranse costuma transe com entidades espirituais pois, ocorrer, àsvezes quase aomesmo tem- na Mina, os voduns, orixás ecaboclos po, em diversas dançantes. Avodunsi, permanecem várias horas incorporados quando entra em transe, procura atoa- e conversam com a assistência. Em lha, que levou e deixou dobrada sobre certos grupos otranse émuito discreto uma mesa próxima. Em algumas ca- e em outros ocorre de forma mais es- sas, uma atendente, chamada toalheira, petacular, podendo ocorrer independen- é quem amarra a toalha, para firmar a te da música, como assinala Rouget. entidade. Antes de receber a toalha, a Na Casa das Minas, durante as vodunsi se mostra desequilibrada, va- cerimônias, quase não sepercebe quem cilando como se fosse cair ao chão. entrou em transe, que toma-se mais Colocada atoalha, passa adançar com visível apenas por pequenos gestos e maior firmeza. Uma vez firmada a in- detalhes do vestuário, como o uso de corporação écomum aentidade, quan- uma toalha branca, que dá destaque às do se trata de um caboclo, rodar entidades. As mudanças de identidade diversas vezes em tomo de si mesma, são pouco perceptíveis e se algumas com coreografia muito bonita. exteriorizam principalmente nomodo de A maioria das entidades permanece comunicação da entidade em transe incorporada até otérmino doritual pú- com outras dançantes, com a assistên- blico, que dura diversas horas. Cad. Pesq., São Luis, v.11,n. 1,p. 106-127, jan./jun. 2000. 113 4 O TRANSE DOS VODUNS o vodum vem num momento NA CASA DAS MINAS de distração. Sente dor de cabeça, medo e a pessoa Na Casa das Minas dizem que a fica como se estivesse com força da chegada do vodum" ocorre taquicardia, como se fosse primeiro no assentamento", que só de- morrer. No início' o corpo pois afilha recebe oreflexo, e que nas não está acostumado, mas casas onde o transe é mais violento, aos poucos o vodum vai se provavelmente não foram feitos assen- adaptando ao corpo da tamentos adequados. Quando ovodum vodunsi. " chega, fora do momento da dança, can- Na Casa das Minas sempre hou- ta alto seu cântico de chegada e vai ao "corné", ou quarto dos segredos, fazer ve pessoas que dançaram desde a ida- saudações, batendo palmas ritualizadas de de sete ou oito anos, como afalecida D.Amância, ouafinada Dedé (Antônia diante dos assentamentos. Embora otranse seja um fenôme- de Nochê Decé, irmã de D. Enedina). no sócio-cultural, aprendido econtrola- D. Amélia, nascida em 31 de dezem- do no interior do grupo, é ao mesmo bro de 1903, recebeu seu vcdum pela tempo uma experiência pessoal e indi- primeira vez com doze anos, emjanei- vidual, variando com cada pessoa. rode 19156. Suabisneta Elizabete, tam- Como diz D.Deni, que dirige os rituais bém dançou na Casa com 'doze anos, na Casa das Minas: em 1985. Segundo D. Deni: "Quando o vodum vem pela primeira vez a pessoa "Um médium já nasce com não sabe. Outras vezes fica este dom. Nasce com um apreenstva e nervosa, mas guia e o corpo pertence aos 4 Na Casa das Minas os voduns conhecidos e cultuados são em número de aproximadamente sessenta e se agrupam em famílias, a saber: a família real ou de Davice, chefiada por toi Zomadonu, o dono da casa, a família de Dambirá, chefiada por toi Acossi Sakpatá, a família de voduns nagôs, ou de Quevioçô, que são hóspedes e cuja maioria dos voduns são mudos, chefiada por Badé, e ainda duas famílias menores, a de Aladanu e a de Savalunu. Os voduns de cada família possuem características e cânticos específicos, cada uma toma conta de uma determinada parte da casa e se responsabiliza por determinadas atividades. 5 Os assentamentos são preparados com pedras "vivas", como afirmam as vodunsis. Dizem que "a pedra écomo se fosse um ímã que tem aforça do vodum". Na Casa das Minas dizem que as pedras de assentamen- to ficam guardadas ocultamente em degraus, no quarto do segredo, recobertas com jarras e louças. Existem também assentamentos em outros pontos da casa e do quintal, marcado por árvores com a cajazeira ginja, e pinhão branco. Costuma haver assentamentos nos alicerces, nas paredes e no centro do barracão de danças, muitas vezes marcado por um ladrilho colorido que se destaca dos demais. Fala-se que na Mina os caboclos não têm assentamentos e que estes se destinam especialmente aos voduns e orixás. 6 D. Amélia contava que, quando recebeu seu vodum pela primeira vez, estava sentada no muro da varanda da Casa das Minas assistindo a dança dos voduns. O pai dela, seu Gregório era tocador chefe. Sua avó, D. Maria Cecília do Nascimento Bandeira, ex-escrava africana, morreu quando ela tinha nove meses, é considerada uma das fundadoras da Casa das Minas. Sua tia, D. Maria Quirina, morreu em dezembro de 1914, na festa do pagamento do barco que dirigira. Toi Doçú, o vodum de D. Quirina, incorporou em Amélia e fez com que ela pulasse do muro para a"gurna" ou varanda de danças. Ela só soube oque ocorreu, no dia seguinte. 114 Cad. Pesq., São Luís, v.11,n. 1,p. 106-127, jan./jun. 2000. dois. Antes de nascer o guia vesse viva. Dormindo apes- faz um pacto pois precisa soa sonha, no transe daquele corpo. Assim, o algumas vezes fica como se espírito já vem prevenido e estivesse sonhando." tem consciência, mas apes- D. Deni diz que o transe nunca soa não sabe. Todos têm seu ocorre de uma vez. A pessoa vai sen- guia mas nem todo mundo tindo aproximações e minutos antes é médium, só os que entram senteum sinal, mas amanifestação vem em transe e recebem seu rápido. Pessoas acostumadas a assistir guia. O médium é como festas em um terreiro, percebem pe- uma área aberta e tem que quenas alterações nos gestos que an- dar caminho para o guia ou tecedem o transe e podem mesmo para o que não presta. Por prever qual vodunsi vai entrar em tran- isso quanto mais orar é se. melhor para a pessoa. " Na Casa das Minas os voduns se retiram (desincorporam) em grupo, no D.Deni também diz que oespírito fim da festa, quando asvodunsis ficam da vodunsi nunca abandona totalmente deitadas no "comé", repousando a ca- o corpo durante o transe: beça em pequenos travesseiros. As "O vodum domina o corpo, vezes, antes de seretirar, os voduns tro- mas o espírito não se afas- cam asroupas usadas na dança. D.Deni ta, só quando a pessoa diz que, ao sair do transe, só sabe que morre. Depois do transe dançou porque está com aroupa suada fica-se normal, as novatas eque algumas vezes sente um vazio no é que não se sentem bem. " estômago, por ter passado várias horas sem comer. Por isso o pessoal da casa D. Deni diz que é necessário pre- deixa sempre na cozinha um prato de parar o corpo para receber o vodum. comida para quando asvodunsis "acor- "Tem que tomar banho de darem". Diz que depois, aos poucos, limpeza (com "amansi") e vem um cansaço, como setivessem tra- fazer preces. Deve se con- balhado muito. centrar, procurar esquecer "Quando o vodum passa o mal e rezar o Pai Nosso. " muitas horas, depois do Ela aconselha às vodunsis evita- transe fica-se meio lerda, e rem comer qualquer coisa três horas é preciso dormir um pouco antes doinício dasfestas, pois ovodum para reanimar. paralisa adigestão. Diz também que: D.Deni diz que quando recebe seu "Algumas vezes o transe dá senhor (vodum), ela se sente como se medo, - a pessoa fica in- estivesse dormindo, ou como se fosse consciente, como se não uma sonâmbula e andasse dormindo. existisse, como se não esti- Após otranse sóselembra doque ocor- Cad. Pesq., São Luís, v.11,n. I, p. I06-127,jan./jun. 2000. 115
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