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Tralha doméstica em meados do século XIX - Reflexões da emergência da pequena-burguesia do Rio de Janeiro PDF

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LIMA, T. A.; FONSECA, M. P. R. da; SAMPAIO, A. C. de O.; FENZL-NEPOMUCENO, A. & MARTINS, A. H. D. A tralha domés- tica em meados do século XIX: reflexos da emergência da pequena burguesia do Rio de Janeiro. Dédalo, S. Paulo, pub. avulsa, 7:205-230, 1989. Bibliografia AIZEN, M. et alii. Breve histórico da limpeza urbana na cidade do Manuel de Ia Céramique Européene. Office du Livre, Rio de Janeiro. Companhia Municipal de Limpeza Urbana Fribourg, 1987. — COMLURB, Rio de Janeiro, 1985 (mimeo.). MAXIMINO, E. P. B. Sítios com pederneiras no vale médio do rio BATTIE; D. & M. Turner. The Price Guide to 19th and 20th Cen- Tietê: um estudo de arqueologia histórica. Dissertação de tury British Pottery. The Antíque Collector's Club, Baron Mestrado apresentada à Universidade de São Paulo, 1985 Woodbridge, Suffolk, 1982. (mimeo). BRANCANTE, E. F. O Brasil e a cerâmica antiga. Cia. Litográ- QUEIROZ, M. I. P. de. Do rural e do urbano no Brasil. 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A TRALHA DOMÉSTICA EM MEADOS DO SÉCULO XIX: REFLEXOS DA EMERGÊNCIA DA PEQUENA BURGUESIA DO RIO DE JANEIRO Tânia Andrade Lima* Marta Pereira R. da Fonseca** Ana Cristina de O. Sampaio** Andrea Fenzl-Nepomuceno*** António H. Damasio Martins**** Introdução do de vida burguês, antecedendo a instalação de uma ordem burguesa propriamente dita no país A arqueologia de espaços domésticos, ao (Pereira de Queiroz, 1978:56-57). tentar recuperar atividades cotidianas, rotineiras No início do século XIX, à medida que a Eu- e anónimas de grupos humanos, penetra em um ropa Ocidental vive o processo de industrializa- dos domínios mais informativos da cultura, con- ção e desenvolvimento capitalista, a burguesia tribuindo para o conhecimento de aspectos não avança progressivamente, impondo seus valores. conscientes, e por isso mesmo altamente revela- O Estado Absolutista Português, ao renunciar no dores da estrutura de uma sociedade. século anterior a um projeto nacional de indus- Trabalhando basicamente com o lixo, com trialização, com a assinatura do Tratado de Me- aquilo que foi considerado imprestável e, por esta thuen, fica fpra desse processo, embora inte- razão, descartado, a arqueologia tenta recompor grado ao capitalismo emergente através do co- a trajetória de vida desses elementos materiais, mércio. Deslocando-se para o Brasil em 1808, em busca dos padrões passados do comporta- traz consigo a ideologia burguesa vigente no oci- mento humano que permitiram a sua criação, se- dente europeu, assistindo-se assim ao transplante leção, aproveitamento, descarte e eventual reci- de um modo de vida sem qualquer conexão com clagem, até o seu abandono final. A feição sócio- a sociedade que o produziu. econômica de uma população transparece clara- A chegada da corte determina, portanto, mente em seus dejetos e a variabilidade dos refu- importantes transformações nos valores da coló- gos domésticos reflete, entre outros aspectos, di- nia. A abertura dos portos às nações amigas pos- ferenças entre classes sociais. sibilita uma grande diversificação nos bens de A análise de alguns contextos habitacionais consumo, até então restritos, em virtude das prá- e depósitos de lixo existentes no Rio de Janeiro ticas monopolistas e dos entraves à sua produção em meados do século XIX, entre as décadas de no país. O rompimento do pacto colonial traz um 20 e 70, vem permitindo constatar, a partir da forte incremento à atividade comercial e substan- cultura material, uma das peculiaridades da for- ciais mudanças nos hábitos de vida da popula- mação social brasileira: o surgimento de um mo- ção. Alicerçada nas relações escravistas, a socie- dade brasileira à essa época tem como classe do- minante os senhores de terras, e, como classe su- balterna, os escravos, com uma camada interme- (*) Bolsista CNPq/Pesquisador. diária apenas incipiente (Sodré, 1985:23), em '(**) Arqueólogas 6? DR/SPHAN-FNPM. grande parte à margem do sistema produtivo e (***) Estagiária 6? DR/SPHAN-FNPM. (****) Bacharelando em Arqueologia FINES/RJ. sobrevivendo à custa de pequenos expedientes 205 LIMA, T. A.; FONSECA, M. P. R. da; SAMPAIO, A. C. de O.; FENZL-NEPOMUCENO, A. & MARTINS, A. H. D. A tralha domés- tica em meados do século XIX: reflexos da emergência da pequena burguesia do Rio de Janeiro. Dédalo, S. Paulo, pub. avulsa, 7:205-230, 1989. (Cândido, 1970), em um país de estrutura essen- comportamento, recupera suas evidências dire- cialmente agrária. tas. Dentro dessa perspectiva, buscando sobre- É por volta de 1820 que tem início o desen- tudo resgatar e comprovar o modo de vida dessa volvimento urbano, notadamente nas cidades classe, de médio poder aquisitivo, foi analisada, portuárias, pontos de escoamento da produção comparativamente, a tralha doméstica prove- agrícola e das matérias-primas exportadas, bem niente dos seguintes sítios do Rio de Janeiro, in- como de recebimento e distribuição das manufa- seridos nessa faixa cronológica: turas importadas, sem que se tenha processado — Casa dos Pilões, no Jardim Botânico. ainda a industrialização no país. Consolida-se a — Ilha do Major, na Baía da Ribeira, mu- vida citadina no Rio de Janeiro, capital do Impé- nicípio de Angra dos Reis. rio e centro do poder político e administrativo. Ê — Paço Imperial e Antigo Cais da Praça rompida a dominação colonial, com a emancipa- XV, ambos no centro da cidade. ção, sendo necessária uma rápida expansão da administração pública, para atender às necessi- dades do novo Estado. Usos e costumes cariocas no século XIX Ao longo* desse processo vai progressiva- mente crescendo, ganhando força e influência Ao desembarcar no Rio de Janeiro, em essa camada intermediária, pequeno-burguesa, 1808, a corte portuguesa encontrou uma cidade identificada com os valores de uma classe domi- de aspecto sujo, enlameada e mal cheirosa, com nante externa, a burguesia europeia, e assimilan- a população concentrada no Morro do Castelo e do seus padrões de comportamento. O processo arredores, evitando as partes baixas, invariavel- de urbanização é acelerado em meados do século, mente inundadas com as chuvas. Pouco a pouco graças à implantação das estradas-de-ferro e à açudes e pântanos começaram a ser aterrados, transição da mão-de-obra escrava para o traba- numa tentativa de melhorar as condições higié- lho livre, com a interdição do tráfico. nicas locais, porém "permaneceram" ainda, por Numa escala social até então pouco mati- um tempo considerável, inúmeros focos de água zada aparece o desejo da diferenciação e da as- estagnada responsáveis pela insalubridade rei- censão, graças à crescente diversificação de ativi- nante. dades, marcando o surgimento de novos compor- Até 1870 não houve praticamente nenhum tamentos sociais. Essa pequena burguesia pre- serviço de limpeza pública, nem varredura de lo- matura torna-se cada vez mais expressiva nume- gradouros. O lixo era simplesmente atirado nos ricamente, composta por profissionais liberais, quintais das casas e nas ruas, que "... por bai- pequenos comerciantes, servidores públicos, civis xas, mal calçadas e sem declive, estão sempre co- e militares, artesãos,-religiosos, letrados, peque- bertas de lodo formado por águas gordurosas e nos proprietários, etc. A frivolidade, a afetação, substâncias que ali apodrecem, ali se cobrem de o requinte, o gosto pelo supérfluo, ao arremedo uma camada esverdeada, ali exalam partículas do estilo europeu, são introduzidos no cotidiano deletérias ..." (carta de um leitor ao "Jornal dos do Rio de Janeiro. O interior das residências, an- Debates Políticos e Literários", de 28 de junho tes singelo e restrito aos elementos mais essen- de 1837, p. 62). ciais, ganha uma nova feição nos revestimentos Os dejetos eram também jogados nas praias das paredes, no mobiliário, nos adornos e objetos ou lançados ao mar, transformando estes locais de mesa; os cuidados pessoais passam por um em áreas de despejos, imundas, impedindo pas- maior refinamento, tanto no vestuário, quanto seios ou banhos de mar. Aí eram atirados ani- no trato dos cabelos, da pele, e da própria saúde, mais e negros mortos, restos de alimentos, toda a impulsionando fortemente o comércio e o setor sorte de objetos imprestáveis, quebrados, e maté- de prestação de serviços. rias fecais. Estas matérias eram acumuladas nas A arqueologia de espaços domésticos, ao residências, em grandes tonéis de madeira, onde operar diretamente com a materialização desse esvaziavam-se os urinóis. Guardados normal- 206 LIMA, T. A.; FONSECA, M. P. R. da; SAMPAIO, A. C. de O.; FENZL-NEPOMUCENO, A. & MARTINS, A. H. D. A tralha domés- tica era meados do século XIX: reflexos da emergência da pequena burguesia do Rio de Janeiro. Dédalo, S. Paulo, pub. avulsa, /:205-230, 1989. mente sob as escadas, esses barris ou "tigres", damente consumidos por uma sociedade que tal como foram apelidados pela população, eram pulsa com um novo ritmo. Esses bens de con- despejados geralmente após o entardecer, pelos sumo, até então restritos às elites rurais e desco- escravos. Era frequente o seu "estouro" nas ruas, nhecidos pela maioria da população, tornam-se quando transportados demasiadamente cheios, acessíveis às novas camadas urbanas. A ânsia de sendo lá mesmo abandonados, infestando as vias copiar os costumes, o bom gosto e o requinte eu- públicas. ropeu é canalizada para a decoração de interio- Todas as tentativas para a criação de servi- res, para o vestuário, para o uso de acessórios e ços sistemáticos de limpeza urbana foram inde- cosméticos, em grande parte inadequados para o feridos pela Câmara Municipal nesse período clima tropical. (Aizen et alii, 1985). Apenas ocasionalmente A partir de 1815 e das disposições do Con- eram contratados homens para a limpeza das gresso de Viena, o Rio de Janeiro passa a ser sen- ruas, praças e praias, os chamados galés, sendo a sivelmente mais procurado por comerciantes remoção de dejetos feita, em geral, pelos pró- franceses, sobretudo" após 1818, marcando forte- prios moradores. Em 1874 foi feito um contrato mente a sociedade carioca e refinando as suas para limpeza das praias e foi somente em 1876 maneiras de vestir, pentear, comer e se compor- que, afinal, teve início um serviço efetivo de lim- tar. Os ingleses instalam-se na Rua Direita (atual peza e irrigação, sendo contratada para esta fina- Rua l? de Março) e os franceses, um pouco mais lidade a empresa de Aleixo Gary. Em meados do tarde, estabelecem um comércio varejista nas século XIX, portanto, os depósitos de lixo da ruas do Ouvidor e dos Ourives (atual Rua Miguel população carioca eram, fundamentalmente, a Couto), já em 1840 quase totalmente tomadas orla marítima, as ruas e os quintais das casas. por lojas de moda. São introduzidos tecidos fi- Todavia, não obstante a imundície da ci- nos, como sedas, tafetás, rendas e bordados; dade e o fato de as casas cariocas serem desprovi- jóias, leques, diademas e pentes para os cabelos, das, até meados do século, de água encanada e estes últimos indispensáveis à moda dos coques esgotos, a população mantinha cuidados^eom a de palmo e meio de altura, os chamados "trepa- higiene pessoal, possivelmente em virtude da in- moleques"; perfumes, cremes, óleos e loções fluência indígena. A água era apanhada pelos es- para o cabelo e para a pele tornam-se imprescin- cravos aguadeiros nas bicas e aquedutos públi- díveis à toalete, tanto feminina quanto mascu- cos, consistindo o asseio em abluções feitas em lina, refinando a aparência da população ur- bacias ou baldes, não raro perfumadas com es- bana. sências naturais. Não há referências ao uso de es- Os interiores das residências, antes despoja- covas de dentes antes da chegada da corte, ao dos, recobrem-se de papéis de parede; cristais e que tudo indica um elemento introduzido por ela. vidros, faianças e porcelanas são incorporados ao Com efeito, a chegada de D. João VI e sua acervo doméstico; os pesados móveis coloniais comitiva, em torno de 15.000 pessoas, na então são substituídos por mobiliário francês e inglês, e pacata Rio de Janeiro, que contava à época com o piano torna-se peça fundamental nos lares ca- cerca de 600.000 habitantes, marca uma nova e riocas. decisiva etapa na vida da cidade. As transforma- O comportamento social adapta-se às novas ções ocorridas a partir daí estão diretamente rela- condições, a maneiras à mesa modificam-se. cionadas à abertura dos portos às nações amigas Anteriormente só a faca era utilizada, com o seu e aos tratados de aliança e comércio assinados uso limitado aos homens, chefes de família. Co- com a Inglaterra, em 1810, garantindo, entre mia-se com os dedos — o polegar, o indicador e o outros benefícios, a absorção de seus produtos médio — ou sorvia-se o alimento, em geral pasto- pelo mercado brasileiro, em condições mais favo- so ou líquido, diretamente das malgas. As elites ráveis que as da própria metrópole (Lobo, 1978). dominantes possuíam garfos, facas e colheres de Uma crescente variedade de produtos, so- prata, porém sempre guardados, sendo conside- bretudo ingleses, inunda o comércio do Rio, avi- rados mais como investimento do que como uten- 207 LIMA, T. A.; FONSECA, M. P. R. da; SAMPAIO, A. C. de O.; FENZL-NEPOMUCENO, A. & MARTINS, A. H. D. A tralha domés- tica em meados do século XIX: reflexos da emergência da pequena burguesia do Rio de Janeiro. Dédalo, S. Paulo, pub. avulsa, 7:205-230, 1989. sílio. Gradativamente os talheres são introduzi- uma nítida separação de classes e a nobreza mes- dos nos estratos pequeno-burgueses, sendo a uti- ma não tem quase contatos com a burguesia, lização simultânea do garfo e da faca conhecida posto que aquela já não conta com tanta gente de como "comer à inglesa", marcando bem a ori- importância ou que se destaque pela riqueza e gem do costume (Cascudo, 1983; Luccok, 1975; pelo fausto. Pelo contrário, segue o estilo da Cor- Freire, 1951). te, vivendo modesta e simplesmente. A classe A Inglaterra introduz no mercado brasileiro comercial, em via de regra, é pouco considerada, a sua faiança fina, produzida em larga escala, porque nesse meio não imperam a educação ou a numa faixa de preço acessível à população de cultura; suas exigências não vão, por certo, além médio poder aquisitivo. Numa alternativa entre a do ganha-pão. Sem embargo, já existem algumas faiança portuguesa, grosseira, e a porcelana, exceções de apreço e conheci diversos brasileiros comercializada em grande quantidade pelos-chi- que mandam seus filhos a escolas e universidades neses, no entreposto de Macau, o novo produto alemãs" (Ebel, 1972:187-89). Tais "exceções de conquista o mercado não só pela sua qualidade, apreço" em poucos anos tornam-se a norma e as mas sobretudo pela variedade de padrões, que classes médias consolidam a sua posição na for- iam da chinoisçrie a cenas bucólicas de paisagens mação social brasileira. inglesas, modificando a aparência das mesas e aumentando o número de utensílios necessários à refeição. Os sítios pesquisados e a tralha recuperada Os hábitos alimentares, até então calcados na culinária portuguesa, adaptada aos géneros a) A~Casa dos Pilões aqui disponíveis, muitos dos quais absorvidos Localizada no Jardim Botânico do Rio de dos indígenas, consistiam em caldos, cozidos, Janeiro, vem sendo objeto de uma pesquisa inter- mingaus, feijões, farinha de mandioca, compotas disciplinar desde 1985, para atender ao projeto de frutas regionais, canjicas, melados, arroz-do- de sua restauração. Tem como proposta funda- ce, bolos e doces à base da goma de mandioca mental estabelecer os níveis estratigráficos cor- (Luccok, op. cit; Cascudo, op. cit). Por volta de respondentes às ocupações ocorridas, com a fina- 1820 e 1830 chegam ao Rio os italianos e france- lidade de resgatar informações que possam con- ses oferecendo seus serviços de confeiteiros e so- tribuir para a reconstituição da história da casa. fisticando a culinária local. Em 1831 instala-se a As escavações efetuadas permitiram consta- primeira sorveteria da cidade. Importa-se maci- tar a ocorrência de leis ocupacionais, representa- çamente azeites, frutas secas, nozes, manteigas, dos por seis camadas estratigráficas (figura 1). queijos, especiarias, doces, vinhos, licores, cerve- Aspectos estruturais da primeira delas, a Cama- jas, águas minerais, etc. Alimentos já conhecidos da I, por suas características morfológicas e loca- ganham uma nova feição, como, por exemplo, o cionais, evidenciaram vestígios que possibilita- chá; anteriormente considerado como remédio, ram a seguinte afirmação: no espaço/tempo que ganha o status de bebida elegante, graças à con- lhe é correspondente, funciona no prédio um sis- vivência com os ingleses, sendo entretando sorvi- tema mecânico de produção, onde a força-motriz do à moda chinesa, em tigelinhas. Da mesma utilizada foi hidráulica, através da instalação de forma a galinha, tida como alimento de convales- uma roda d'água. Esta afirmação, associada aos centes, é consumida pela nobreza e classes de resultados da pesquisa histórica, permitiram médio e alto poder aquisitivo (Freire, op. cit.; concluir que esta camada corresponde à ocupa- Silva, 1984). ção da área por uma oficina de compactação de Os valores das classes dominantes são rapi- pólvora. A Casa dos Pilões fazia parte do Com- damente absorvidos pelas novas camadas urba- plexo de Oficinas da Real Fábrica de Pólvora, nas (Viotti da Costa, 1987), que pouco a pouco instalada na fazenda de Rodrigo de Freitas, por tentam ascender socialmente. Conforme registra D. João VI e sua datação está definida entre 1809 Ernest Ebel, em 1824, "...entre os brasileiros há e 1831, período do seu funcionamento neste lo- 208 r S & g- H cn o, > CASA DOS PILÕES — J. B. (s> 3 -• Perfil da parede oeste do vão da roda d'água — 5.4/p. 57 150 200 5a ? x ya Sedimento terroso c/ entulho moderno lê Camada Arqueológica III i-1 Í > Aterro da camada III g-8- II Camada Arqueológica II l? fi Calha de Madeira em decomposição S' Só o - Parede do vão da roda d'água (cam. arq. I) • H •S1 > ao C l §• & 3 LIMA, T. A.; FONSECA, M. P. R. da; SAMPAIO, A. C. de O.; FENZL-NEPOMUCENO, A. & MARTINS, A. H. D. A tralha domés- tica em meados do século XIX: reflexos da emergência da pequena burguesia do Rio de Janeiro. Dédalo, S. Paulo, pub. avulsa, l :205-230, 1989. cal. Informações resultantes da pesquisa históri- industrial consistiu em engrenagens, rodas den- ca demonstram que o conjunto era formado por tadas, aros, peças de encaixe, pinos, parafusos, 16 prédios ocupados pelas oficinas, 10 prédios re- argolas, ganchos, correntes e cintas. sidenciais, além do palacete (antiga sede da fa- A tralha doméstica propriamente dita com- zenda), destinados a funcionários da fábrica, e põe-se de utensílios de mesa e cozinha (em louça: ainda por cerca de 86 arrendatários na área da pratos, pires, xícaras, malgas, travessas, tampas, fazenda, desenvolvendo atividades paralelas co- potiches, bules e potes; panelas de ferro, vasilha- mo olaria, fabrico de cal, plantio de feijão, pro- mes de cerâmica, garrafas de vidro e grés para cessamento de madeira, etc. bebidas, taças de vinho, talheres), restos alimen- A leitura dos vestígios da Camada II permi- tares (ossos de animais), enfeites de casa (bibe- tiu perceber alterações no tamanho e feitio do lôs, jarrinhas, potinhos, etc.), itens de vestuário prédio no espaço/tempo que lhe é correspon- (fivelas de cintos, botões), produtos de higiene, dente, o que é confirmado pela "Planta Cadas- toucador e farmácia (escovas de dentes, pentes, tral da Fazenda Rodrigo de Freitas de 1844" travessas de cabelo, frascos e potes de cosméti- (Arquivo Cidade do Rio de Janeiro, Seção de Ico- cos, perfumes e medicamentos), utensílios de nografia, M3 G14 N? 8. Até o momento, entre- costura (tesoura, dedal), brinquedos (bolas de tanto, não foi possível determinar o tipo de ativi- gude, soldado de chumbo, miniatura de louça dade desenvolvida no prédio durante esta ocupa- para boneca), adornos (correntes, berloques, me- ção. Sabe-se apenas que está situada cronologi- dalhas, contas), artigos de escrita (pena, cabo de camente entre 1831, data de desativação da fá- pena, lápis, porta-grafite com grafites, carimbo, brica de pólvora, e 1864, data-base da Camada potes de tinta), cachimbos de barro, ferraduras e III, quando o prédio sofreu uma reforma para moedas. atender aos interesses do Imperial Instituto de O material utilizado nesta pesquisa é prove- Agricultura Fluminense, sob a orientação de niente da camada intermediária entre a I e a III, Cari Glasl. ou seja, pode ser situado cronologicamente entre os anos de 1831 e 1834, e passível de ser atribuído às famílias dos funcionários ou dos arrendatários QUADRO CRONOLÓGICO DA CASA DOS PILÕES que residiam na área. 1962 Camada VI Museu Botânico 1937 Camada V Residência Kuhlman As louças 1932 Camada IV Reforma Campos Porto 1864 Camada III Imp. Inst. Agric. Fluminense Entre os fragmentos de louça recuperados, ? Camada II ? 1809 Camada I Oficina de Pilões faiança fina, em sua maioria, e porcelana, em pequena proporção, foi possível proceder às se- guintes identificações, com base em Coysh & Os vestígios arqueológicos resgatados na Wood, 1982-84; Godden, 1984; Brancante, Casa dos Pilões procedem de aterros que cobrem 1981; Battie & Turner, 1982; Jenkins, 1981; Ma- as Camadas I, II e III, o que caracteriza este nuel de Ia céramique européenne, 1987; Lês po- material como entulho, tratando-se provavel- teries-faiences porcelaines européennes, 1983; mente de lixo proveniente das unidades habita- The Knopf Collector Guide to American Anti- cionais que existiram nas cercanias, anterior- quities, 1983. mente referidas. Aí foram reconhecidas três cate- gorias: restos de obras, lixo industrial e domés- a) Em faiança fina: tico. Entre os restos de obras foram recuperados 1) Padrão "dosPombinhos"ou "Willow cravos, pregos, argolas, dobradiças, chaves, fer- Pattern" rolhos, ganchos, puxadores, aldrabas, cadeados, Faiança fina inglesa, do período conhecido fechaduras, amoladores, chaves inglesas, azule- como Chinoiseríe. O padrão é derivado original- jos, lajotas, tijolos, pedras, telhas e vidros, O lixo mente dos chineses e fez sua aparição na Europa 210 LIMA, T. A.; FONSECA, M. P. R. da; SAMPAIO, A. C. de O.; FENZL-NEPOMUCENO, A. & MARTINS, A. H. D. A tralha domés- tica em meados do século XIX: reflexos da emergência da pequena burguesia do Rio de Janeiro. Dédalo, S. Paulo, pub. avulsa, 7:205-230, 1989. entre 1800/1815, atingindo posteriormente uma pela produção de louça em lustre rosa e pela poli- estandardização. Foi extremamente popular na cromia, em meados do século XIX. O tipo de de- Inglaterra, gerando uma lenda e um soneto sobre coração foge ao estampado, sendo pintada a o motivo. Até 1880 foi fabricado por 54 estabele- mão, utilizando como temática flores estilizadas. cimentos cerâmicos ingleses. Apresenta variações Trata-se de uma louça básica, vinculada a servi- de pasta, esmalte e tonalidade azul. Foi também ços de chá e café, sugerindo uma alternativa en- fabricado nas cores verde e rosa, esta última em tre a faiança fina branca ou creme, e a estampa- Maastricht, Holanda, por Petrus Regout (Foto da em azul. Foi produzida entre 1820 e 1840 (Fo- n? 1) to n? 5). 2) Padrão "Italian Scenery" 6) Padrão "Borrão Azul". Faiança fina^ inglesa. Este padrão foi lança- Faiança fina inglesa. O termo descreve um do pela Leeds Pottery, nas cores azul e sépia. En- tipo de estampado em azul, -onde a tinta escorre caixa-se no período de 1815 a 1835, durante o dentro do esmalte, produzindo um aspecto bor- qual houve uma grande expansão na produção rado ou um efeito de halo. Este resultado é pro- da faiança fina inglesa, justamente com a intro- vocado pela introdução de produtos químicos, dução de novos desenhos. Nesta época desenvol- como o óxido de cálcio ou cloreto de amónia, veu-se um culto ao pitoresco e a maioria dos cera- dentro do forno de vitrificação. Foi introduzido mistas passou a designar seus padrões como ce- na Inglaterra entre 1835 e 1845, sendo popular nas metropolitans, vistas britânicas e cenários por toda a época vitoriana (1837-1901), particu- antigos (Foto n? 2). larmente para a exportação. Foi fabricado por vários ceramistas, com motivos em chinoiserie, 3) Padrão "Milkmaid". flores e paisagens clássicas (Foto n? 7). Faiança fina inglesa. Trata-se de um padrão lançado por Josiah Spode, por volta de 1814, 7) Padrão "Athens". mostrando uma moça ordenhado uma vaca, em Faiança fina inglesa, em borrão azul. O um campo com carneiros, apresentando uma cartucho foi um recurso utilizado pelos ceramis- borda floral. O mesmo padrão foi adaptado por tas para estamparem, de forma decorativa, o tí- outros ceramistas, como por exemplo Davenport, tulo do padrão, o nome do fabricante ou iniciais. em aparelhos de chá. Foi também copiado pela A palavra "Athens" designa um padrão, prova- Don Pottery (1790-1834). Observa-se que a práti- velmente fabricado por John Rogers & Son, entre ca de copiar foi muito comum entre os ceramistas 1831 e 1842 (Foto n? 8). ingleses, até 1842, quando surge o copyryght (Foto n? 3). 8) Padrão "Floral". 4) Padrão "Blueor GreenEdged". Faiança fina inglesa, fabricada por Cope- Faiança fina inglesa. Caracteriza-se pela land & Garrett, entre 1833 e 1847. O padrão flo- decoração incisa limitada apenas às bordas, onde ral foi muito popular na Inglaterra, acompa- é aplicada uma pintura em tons de azul ou verde. nhando muitas vezes a estamparia utilizada em O período de sua fabricação está entre 1780 e papéis de parede para as residências. Os pionei- 1830, sendo que por volta de 1800 já estaria sen- ros neste padrão foram Wedgwood e Josiah do exportada para a América do Norte. Dada a Spode, entre 1759 e o presente, e 1770/1833, res- sua simplicidade decorativa, vincula-se o seu uso pectivamente. a pratos de cozinha, de acordo com Jenkins (1981:55) (Foto n? 4). 9) Padrão "WildRose". Faiança fina inglesa. Fabricado entre 1830 e 5) Padrão "Policromo". 1850, quando alcançou grande popularidade, A origem desta faiança fina aponta para a tem como característica uma borda floral que região de Sunderland, Inglaterra, caracterizada circunda uma cena bucólica. Esta cena é com- 211 LIMA, T. A.; FONSECA, M. P. R. da; SAMPAIO, A. C. de O.; FENZL-NEPOMUCENO, A. & MARTINS, A. H. D. A tralha domés- tica em meados do século XIX: reflexos da emergência da pequena burguesia do Rio de Janeiro. Dédalo, S. Paulo, pub. avulsa. /: 205-230, 1989. Foto l: Faiança fina inglesa, "Willow Pattern' Foto 2: Faiança fina inglesa, padrão "Italian Scenery ". 212 LIMA, T. A.; FONSECA, M. P. R. da; SAMPAIO, A. C. de O.; FENZL-NEPOMUCENO, A. & MARTINS, A. H. D. A tralha domés- tica em meados do século XIX: reflexos da emergência da pequena burguesia do Rio de Janeiro. Dédalo, S. Paulo, pub. avulsa. l :205-230,' 1989. Foto 3: Faiança fina inglesa, padrão "Milkmaid". Foto 4: Faiança fina inglesa, padrão "Blue or Green Edged". 213

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