UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA PORTUGUESA O AMOR PELA FORMA NO CANCIONEIRO GERAL DE GARCIA DE RESENDE Geraldo Augusto Fernandes [email protected] São Paulo 2011 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA PORTUGUESA O AMOR PELA FORMA NO CANCIONEIRO GERAL DE GARCIA DE RESENDE Geraldo Augusto Fernandes Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Literatura Portuguesa Orientadora: Profª Drª Lênia Márcia de Medeiros Mongelli São Paulo 2011 2 Este estudo é dedicado à minha família, aos meus amigos, suportes que são das minhas alegrias e de minhas agruras. 3 Lênia Márcia de Medeiros Mongelli, magistra amantissima, repito o que escrevi durante meu Mestrado – agradeço imensamente pelos ensinamentos e pela paciência. Maria Isabel Morán Cabanas e Leticia Erín Garcia, pela ajuda e carinho a distância. Fernando Maués de Faria Júnior, Michel Sleiman e Raúl Cesar Gouveia Fernandes, pelo apoio. 4 RESUMO Para se descobrir uma “poética” do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende é necessário que se analise a Compilação não somente pelo seu conteúdo, mas principalmente pela sua forma, constituída de ritmo, de rima e de métrica, e, sobretudo, de estruturas estróficas e de recursos retóricos. Esta Tese propõe definir uma ars poetica implícita na Compilação levada a cabo por Garcia de Resende, que, de 1449 a 1516, reuniu poemas, registrando neles uma época denominada “Pré-Renascimento”. Através de seis grupos de formas – a balada, o vilancete, a esparsa, a trova, a cantiga e os poemas de formas mistas, uma inovação do Compêndio – e através do estudo dos artifícios retóricos empregados pelos poetas palacianos, é possível vislumbrar uma “poética” que não foi proposta por Resende em seu Prólogo, diferentemente do que ocorreu com os cancioneiros castelhanos da mesma época. No entanto, através dos paradigmas encontrados no que se pode denominar “amor pela forma” daqueles poetas, e através dos gêneros cultivados por eles, percebe-se, também, uma poética no Cancioneiro resendiano. Palavras-chave: Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, Poética, Poemas de Formas Mistas, Formas e Gêneros, Retórica ABSTRACT In order to find out a “poetics” of Garcia de Resende’s Cancioneiro Geral it is necessary to analyze the songbook not only through its content, but mainly through its form, constituted of rhythm, rhyme, metric and, above all, its stanza structure and rhetoric recourses. The purpose of this thesis is to define an implicit ars poetica of the compilation organized by Garcia de Resende, who collected poems from 1449 to 1516, registering in it an age called “pre-Renaissance”. Through six groups of forms – ballads, vilancetes, esparsas, trovas, cantigas and poems of mixed forms, an innovation of the compendium – and through the study of rhetoric artifices employed by the court poets, it is possible to catch a glimpse of a non proposed poetics by Resende in his Prologue, unlike what occurred with the Castilian cancioneros of the same epoch. However, through the paradigms found in what could be called “love of the form” by those poets, and through the genders they cultivated, it is possible to realize a “poetics” that characterizes Resende’s songbook. Key-words: Garcia de Resende’s Cancioneiro Geral, Poetics, Poems of Mixed Forms, Forms and Genders, Rhetoric 5 SUMÁRIO Introdução ............................................................................................................................... 9 Capítulo I – O Cancioneiro Geral de Garcia de Resende e suas formas ............................. 17 Gênero e forma – As formas estróficas ............................................................................. 19 A balada – A sátira erudita de Rui Moniz (um exemplo de brevitas) ........................... 33 O vilancete – Uma inovação da forma e do gênero ...................................................... 47 A esparsa – Novos perigos, novos tempos, mas ainda um amor “mortal” ................... 64 A trova – Os arrenegos de Gregório Afonso ................................................................ 75 A cantiga – pervivência de formas e temas ................................................................. 108 Capítulo II – O Cancioneiro Geral e os poemas de formas mistas .................................... 125 A cantiga com outras formas .......................................................................................... 137 A trova seguida de outras formas .................................................................................... 142 O vilancete aliado a outras formas .................................................................................. 150 Os oito poemas do quarto subgrupo das formas mistas .................................................. 168 Capítulo III – Recursos retóricos no Cancioneiro Geral ................................................... 181 Os colores da dicção: tradição e ousadias dos poetas palacianos ................................... 187 As “alterações artísticas”: adornos de estilo ................................................................... 250 Conclusão – Uma “poética” no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende ............................ 311 Referências Bibliográficas .................................................................................................. 344 Fontes primárias .............................................................................................................. 344 Bibliografia específica .................................................................................................... 347 Bibliografia geral ............................................................................................................ 356 Obras de referência ......................................................................................................... 361 Apêndice ............................................................................................................................. 363 6 C’est dire qu’il n’y a pas de coupure entre le moyen âge et la Renaissance. (...) Surtout, il transformera le formalisme du moyen âge en quelque chose de nouveau, qui est l’amour de la forme. Le changement s’opérera le jour où la recherche d’une discipline élégante sera, non plus un acte de conformisme, mais un art, non plus la soumission à l’autorité d’une croyance commune, mais un éffort de création personnelle. Pierre Le Gentil 7 Anjo custódio com escudo de Armas de Portugal, pintado pelo artista flamengo Antônio de Holanda, (1480-1557) “Acabou-se de empremir o Cancioneiro Geeral, com previlegio do muito alto e muito poderoso Rei Dom Manuel nosso Senhor. Que nenhũa pessoa o possa empremir nem trova que nele vaa, sob pena de dozentos cruzados e mais perder todolos volumes que fizer. Nem menos o poderam trazer de fora do reino a vender, ahinda que lá fosse feito, sô a mesma pena atras escrita. Foi ordenado e emendado por Garcia de Reesende, fidalgo da casa d' El-Rei nosso Senhor e escrivam da fazenda do Principe. Começou-se em Almeirim e acabou-se na muito nobre e sempre leal cidade de Lixboa, per Hermam de Campos, alemam, bombardeiro d'E1-Rei nosso Senhor e empremidor, aos XXVIII dias de Setembro da era de Nosso Senhor Jesu Cristo de mil e quinhentos e XVI anos.” 8 INTRODUÇÃO Ó filho de nobre pai, eu também, sendo jovem, antigamente, mantinha, de um lado, a língua inativa e, de outro, as mãos laboriosas. Agora, chegando à experiência, vejo que entre os mortais a língua, não a ação, tudo conduz. Sófocles, Filoctete ...la poésie et les poèmes ont un but et des règles qui leur sont propres et qui ne sont point ceux de l’histoire. La poésie jouit d’une liberté absolute et ne connaît qu’une loi, la fantaisie du poète... Luciano, Comment il faut écrire l’histoire Para Pierre Le Gentil, como visto na epígrafe que abre este estudo, l’amour de la forme cultivado pelos poetas medievais da Península Ibérica, principalmente os de fins de Quatrocentos e início de Quinhentos, transformar-se-á em arte no Renascimento. A partir da Renascença, o formalismo será uma disciplina elegante, em que o poeta deixará transparecer sua individualidade poética. Também quanto à forma, Andrée Crabbé Rocha comenta que “é a técnica exterior que se torna cada vez mais exigente, à medida que as regras do jogo vão aumentando”1, para, mais à frente, dizer que os poetas do Cancioneiro Geral “trabalham a sua forma, procurando dar-lhe a maior perfeição possível. Isto pode dar-se em detrimento da beleza e da poesia, é certo, pois se trata dum esforço do intelecto mais do que da sensibilidade, mas contribui largamente para dotar os poetas imediatamente posteriores dum instrumento já posto à prova”2. Os vários artifícios presentes no Cancioneiro – e em toda produção Peninsular da época –, tais como “l’ingénieuse construction de l’arte mayor, genres à forme fixe, le villancico et la canción, l’estribote”, constituem, para Le Gentil, elementos de renovação poética “qu’on ne trouve pas (...) ailleurs”3. Sendo assim, a proposta deste estudo é sistematizar o “amor pela forma” dos poetas palacianos, cujas composições foram compiladas por Garcia de Resende em seu Cancioneiro Geral, publicado em 1516, 1 ROCHA, Andrée Crabbé. Aspectos do Cancioneiro Geral. Coimbra: Coimbra Ed., [s.d]. (Colecção Universitas), p. 90. 2 Ibidem, p. 94. 3 LE GENTIL, Pierre. La poésie lyrique espagnole et portugaise à la fin du Moyen âge: les thèmes, les genres et les formes. 2 vol. Rennes: Plihon, 1949-52, [1949, p. 470 passim]. 9 reunindo poemas de 1449 até a data de sua publicação. Nos estudos empreendidos até agora, críticos e especialistas da obra resendiana comentam frequentemente a inovação formal a que se aplicaram os poetas palacianos. As referências ao formalismo são numerosas, mas não há ainda um estudo que tente explicá-lo, nem suas origens ou a motivação que levou aqueles poetas a – mesmo que calcados em temas tradicionais – montar quase mil poemas em que se destaca a inovação estrutural. Estudiosos como Le Gentil, Crabbé Rocha e Jole Ruggieri afirmam que a poesia desenvolvida pelos poetas palacianos prenuncia estilos literários futuros, mais pela sua estrutura que pelo tema. Os vários artifícios presentes no Compêndio constituem, para o estudioso francês, elementos de renovação poética. É no Cancioneiro Geral, por exemplo, que se retoma um tema a se tornar clássico: o das visões infernais, alusão à passagem da descida aos Ínferos na Divina Comédia de Dante. Na Compilação de Resende, percebe-se também que os poetas estavam atentos às mudanças por que passava o Portugal dos Descobrimentos. Lisboa tornara-se uma metrópole habitada tanto por europeus ávidos pelos resultados da expansão marítima, por genoveses e florentinos, quanto por um turbilhão de escravos africanos. Numa peça de Fernão da Silveira, por exemplo, o poeta reproduz com fidelidade a fala de um negro, principalmente quanto aos verbos não conjugados, no infinitivo. Mistura decassílabos com hendecassílabos, versos de arte maior, e rimas masculinas com femininas, de natureza e disposição várias, como compete aos poetas cancioneiris de então4. Mas a questão social não se revela somente na língua enriquecida pelos Descobrimentos; revela-se também nas relações e nos sentimentos de temor ante um mundo em desconcerto, tema recorrente em muitos poemas quinhentistas. Para exortar um sentimento, valem-se os poetas do Cancioneiro de Resende, com frequência, de figuras e formas que buscam fugir a qualquer sensaboria. É claro que tudo em excesso provoca o contrário em leitor atual, mas servia ao deleite dos apreciadores da “gaia ciência” da época. No processo do “Cuidar e sospirar”, primam os participantes no exercício da retórica, valendo-se do conceptismo e do cultismo, mostrando agudeza e lavor na lapidação de suas intervenções. O artifício da epizeuxe, por exemplo, que usam para enfatizar uma ideia a ser defendida, é próprio da Retórica, de que o processo jurídico- 4 “Coudel-moor por breve de ũa / mourisca ratorta que mandou / fazer a senhora princeza, / quando esposou.” (CG, I, 44). Os poemas do CGGR serão identificados pela sigla CG (Cancioneiro Geral), seguida do número do volume e do número da composição. 10
Description: