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No gênero nunca se fez coisa sequer semelhante em língua portuguesa. Cuidado, pois, e urgência na publicação.” Foram essas as palavras que Freyre escreveu à Editora José Olympio em setembro de 1974, ao devolver as provas do “diário”. Entusiasmado e ansioso com a nova obra em preparo, os cuidados a que se referia era com a revisão então sendo feita e para a qual Freyre e o velho amigo José Olympio negociavam um acordo quanto aos trechos de Tempo morto que deveriam ou não ser cortados ou emendados. A publicação do livro de que tanto se orgulhava vinha responder a um vago desejo que Freyre manifestara desde a juventude, quando notara o contraste entre os países católicos e protestantes. Os ingleses, em particular, foram várias vezes lembrados por Freyre como pessoas que “amam escrever diários”, diferentemente de “nós latinos”. O que esses faziam dentro do confessionário, os ingleses faziam nos diários, que se tornaram um rico manancial para a reconstituição histórica e psicológica de sua cultura. A publicação tardia do Diário de Samuel Pepys, aclamado como uma obra-prima no gênero, cujo texto do século 17 só veio a público no século 19, deve ter em muito suscitado o entusiasmo de Freyre por essa forma literária. E ele, um anglófilo convicto que “nunca se confessou a padre”, admite na introdução ao seu novo livro que confiar seus segredos, dúvidas e inquietações a um diário íntimo era, na verdade, uma das marcas de sua formação anglo-saxônica. Daí o orgulho de se sentir pioneiro num país que só tinha “Pepys de meia-tigela”, como disse em Casa- grande & senzala. A importância desse livro não reside, no entanto, nesse aspecto que Freyre quis salientar em meados dos anos 1970. Em vez de se impor como uma obra-prima do gênero diário, Tempo morto e outros tempos é uma obra-prima do que o crítico Stephen Greenblatt chama self-fashioning (autoconstrução) e um documento autobiográfico extremamente valioso para se observar um homem maduro revivendo sua juventude. Uma obra, como o próprio Freyre sugeriu, muito semelhante a um de seus textos favoritos, The private papers of Henry Ryecroft , de outro inglês, George Gissing (1857-1903); um texto claramente autobiográfico escrito em forma de diário e que foi tomado como história autêntica por vários leitores na época de sua publicação em 1902. Uma espécie de “ensaio-memória” de Gissing, ou mesmo “uma tentativa de sua transformação em personagem de ficção”, como o descreveu Freyre num manuscrito inédito e não datado que se encontra em seus papéis. Leitor aficcionado do que é chamado ego-documents (tudo o que for escrito na primeira pessoa, incluindo cartas, diários, autobiografias, memórias etc.) Freyre é também bem conhecido como um autor que falava muito, talvez obsessivamente, de si mesmo e que, como tantas outras figuras ilustres, esteve muito envolvido, ao longo de uma longa vida, na sua autoapresentação. Lafcadio Hearn, William Butler Yeats e Thomas Hardy, por exemplo, escritores pelos quais Freyre tinha especial admiração, haviam sido muito bem-sucedidos nesse empenho. O último, acreditando que um texto biográfico seria considerado mais autêntico do que um ego-documento, chegou ao extremo de preparar uma autobiografia disfarçada em biografia tentando produzir e controlar a imagem que a posteridade teria dele. Conforme confessou a um visitante indiscreto, “cada dia eu moldo minhas memórias como se fosse minha esposa, na verdade, que as estivesse escrevendo... Minha ideia, evidentemente, é fazer que esse trabalho seja publicado após minha morte como se fosse uma biografia minha escrita por minha mulher.” A biografia apareceu em dois volumes, em 1928 e 1930, conforme o planejado; e não fosse a indiscrição do visitante, o segredo biográfico de Hardy teria provavelmente se mantido. Se é verdade, como alguns estudiosos sugeriram, que a biografia de Freyre publicada em 1945 por seu primo Diogo de Mello Meneses foi um trabalho de colaboração em que o herói do livro teve um papel dominante, então é provável que Freyre tenha se inspirado na estratégia do romancista inglês. De todo um vasto e rico material autobiográfico que Freyre deixou – que inclui notas biográficas a serem acrescentadas às várias edições de sua obra, rascunhos de autobiografia, inúmeras passagens de reminiscências esparsas em profusão em seus livros, artigos, resenhas e prefácios etc. – Tempo morto se destaca como sendo o mais longo, o mais famoso e talvez o mais sedutor de todos. Escritor de imenso talento, Freyre se esmerou em produzir a imagem que ele queria que os leitores tivessem dele. Quando o texto apareceu em 1975, ele o apresentou como um “diário de adolescência e de primeira mocidade”, parte do qual fora “devorada pelo cupim” e o que restou datilografado por volta de 1960 e publicado quinze anos mais tarde “com um mínimo de revisão” e “simplesmente com um ou outro acréscimo para esclarecer obscuridades”. A despeito dessas declarações, fica claro que o texto foi escrito e reescrito ao longo dos anos, houvesse ou não um núcleo original de entradas feitas na própria época dos eventos que descreve. Quando se comparam alguns fatos ali narrados com o que outros documentos comprovadamente da época revelam, o caráter memorialístico de Tempo morto fica evidente.1 Idealizadas pela nostalgia, muitas passagens de sua juventude ali descritas dizem muito mais sobre um Freyre maduro e famoso do que sobre a vida entre 1918 e 1930, o período a que supostamente se estava referindo. Confusões de datas, referência a um curso que teria seguido “do Professor Sir Alfred Zimmern... baronete e portanto nobre britânico”, quando, na verdade, o pacifista inglês – que só receberia o título de Sir anos mais tarde – só deu uma única aula em Columbia University no período em que Freyre ali esteve, são algumas de muitas evidências de ser Tempo morto um livro de memórias sob a forma de diário. Um dos casos mais flagrantes que se pode apontar é o que diz respeito à séria tentativa que Freyre fez, quando retornou ao Brasil em 1923, de não se radicar no Recife, mas sim tentar sua sorte em São Paulo. Quando editou seu diário-memória de juventude para publicá-lo 52 anos depois, a autoimagem criada pelo autor de Casa-grande & senzala ao longo dos anos impunha que se acentuasse sua permanente relutância em radicar-se fora de Pernambuco, de que fazia tempo se tornara verdadeiro arauto. De todo modo, em 1948, mais de vinte anos após grande parte do período de que trata Tempo morto, Freyre não deixa dúvidas sobre o fato de seu diário ser, efetivamente, uma “autobiografia à prestação” (para lembrar uma de suas muitas expressões originais), quando escreve a seu amigo José Lins do Rego dizendo: “tenho acrescentado várias coisas ao diário sobre V. Está ficando um livro.” Como bem advertiu o psicanalista Erik Erikson, à medida que envelhecemos, todos nós, conscientemente ou não, reinterpretamos nossa própria vida e nossa memória de eventos significativos vai mudando ao longo do tempo. Assim, é como se todo esforço de reviver o tempo perdido produzisse inevitavelmente “ficções da memória”, para usar a feliz expressão que Alberto da Costa e Silva usou como subtítulo às suas memórias da infância, Espelho do príncipe. É por reconhecer também o caráter fictício de toda reminiscência que Gabriel García Márquez iniciou sua autobiografia dizendo que “la vida no es la que uno vivió, sino la que uno recuerda y cómo la recuerda para contarla.” Finalizando, é importante insistir que, se é verdade que Tempo morto não pode ser lido literalmente como a narrativa da vida do Freyre em formação e como revelador da autoimagem que o jovem aprendiz tinha de si mesmo entre 1918 e 1930, o “diário” não deve ser, de modo algum, descartado como um texto irrelevante. Além de se impor como uma obra-prima de autoapresentação e de dramatização da juventude de Freyre, ele muito nos diz sobre sua personalidade e, desde que cuidadosamente cotejado com outros documentos autobiográficos e biográficos, é obra que muito pode ajudar na difícil tarefa de reconstruir e interpretar sua vida. Ao receber um exemplar de Tempo morto em 1976, o amigo e admirador José Guilherme Merquior, encantado com o texto, insiste que era chegada, para Freyre, a “hora da autobiografia” e que, a partir daquele momento, ele “só deveria se contar”, já que, afinal de contas, como diz, “contar-se foi sempre um dos seus fortes mais fortes”. Aguardava o “segundo volume” desse livro essencial “com água na boca”, conclui. Freyre não viveu o suficiente para publicar esse ansiado volume, mas um dos manuscritos preciosos que deixou entre seus papéis era exatamente a continuação de Tempo morto. Dando-lhe o título “De menino a homem”, Freyre o descreveu como “atualização de um diário” e “nova edição aumentada do livro do mesmo autor intitulado Tempo morto e outros tempos”; e também, significativamente, qualificou a ambos os textos de “memorialismo”. É de imaginar que, se esse volume tivesse sido publicado, Freyre assumiria publicamente o caráter memorialístico de seus “diários”, o fato de serem “autobiografias à prestação”, e na linha dos hibridismos que tanto valorizava, faria a defesa aberta de um gênero híbrido: diário em forma e autobiografia em conteúdo. MARIA LÚCIA GARCIA PALLARES-BURKE estudou e lecionou na Universidade de São Paulo, onde obteve os graus de mestre, doutor e livre docência, e atualmente vive em Cambridge, Inglaterra, onde é pesquisadora associada do Centre of Latin American Studies da Universidade de Cambridge. É autora de vários livros, dentre eles Nísia Floresta, O carapuceiro e outros ensaios de tradução cultural (Hucitec, 1996), As muitas faces da História – nove entrevistas (Unesp, 2000) e Gilberto Freyre – Um vitoriano dos trópicos (Unesp, 2005). 1 Sobre o caráter memorialístico de Tempo morto, ver; M. L. G. Pallares-Burke, Gilberto Freyre, um vitoriano dos trópicos, Unesp, 2005; J. Needell, “Race, gender and modernity”, American Historical Review, vol. 100, nº1, 1995. Prefácio do autor Tempo morto e outros tempos é um diário de adolescência e de primeira mocidade (1915-1930) que só agora se publica – iniciativa de um amigo do autor, Renato Campos. Publica-se de modo extremamente incompleto: faltando- lhe numerosos registros. Registros de acontecimentos e de experiências, para o autor, importantes. Importantes para o que foi sua adolescência, para o que constitui a sua primeira mocidade e para a projeção, dessas duas fases decisivas de sua vida, sobre as que a elas se vêm seguindo. É uma projeção, essa, não de todo passiva: guardado pelo autor um tanto do ânimo de aventura dos seus dias de adolescente e de muito jovem e do gosto de experimentação que foi, então, muito seu. Ainda hoje, há vezes em que amanhece e, até, nasce de novo, dentro das próprias tardes e mesmo das noites mais longas da sua vida de agora, com o ânimo de adolescente, assim guardado, reverdecendo com o verde de que falava o grande alemão. Sucede que das notas em que foram sendo registradas, pelo autor, reações íntimas, pessoais, secretas, até àqueles acontecimentos e àquelas experiências, perdeu-se boa parte, devorada pelo cupim. Deixadas em velho baú, juntamente com cartas e com outros papéis pessoais, aí permaneceram alguns anos, após a chamada “Revolução de 30”. Até que, aberto um dia o baú, só alguns dos papéis que ele guardava se apresentaram em estado de ser lidos e copiados, isto é, datilografados, como foram, com um mínimo de revisão pelo autor: respeitadas, em simples apontamentos, alguns quase em sinais taquigráficos, palavras de adolescente de 15 e de jovem de 20 anos. Feito um ou outro acréscimo para esclarecer obscuridades. Conservadas repetições. Respeitadas espontaneidades um tanto desordenadas. Do título – sugerido por certos registros do próprio diário em que se fala da relação do homem com o tempo – o autor é o primeiro a reconhecer a inexatidão. Haverá, afinal, de modo absoluto, tempo morto? Ou o homem é que morre, como indivíduo e ao seu próprio tempo, num transtempo, este como que imortal? Imortal como superação do tempo apenas histórico. O que morre no tempo parece que é apenas uma parte, maior ou menor, dele e não o todo que passa de uma época a outra. Épocas que sejam mais que a existência de um homem só. De um simples indivíduo. Mesmo assim, esse homem só é, por vezes, capaz de, pelo que fez ou criou, sobreviver, de certo modo, noutras existências e noutras épocas. O homem de