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tempo e milênio nas religiões afro-brasileiras PDF

21 Pages·2012·0.12 MB·Portuguese
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XXIV Encontro Anual da ANPOCS TEMPO E MILÊNIO NAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS GT Religião e Sociedade Roberto MOTTA, PhD Universidade Federal de Pernambuco Petrópolis Outubro de 2000 Tempo e Milênio nas Religiões Afro-Brasileiras Roberto Motta, Ph.D. Professor-Titular de Antropologia Univ. Federal de Pernambuco (Recife) Resumo As religiões afro-brasileiras apresentam-se em grande variedade, indo de formas estruturadas que tendem cada vez mais a formar “igrejas” independentes, a grupos informais, voltados sobretudo para a prática de terapias mágicas. Essas religiões se caracterizam, de modo geral, por sua orientação intramundana, ao mesmo tempo em que se afastam de toda idéia de ascese e de “negação do mundo”. Não possuem a idéia de progresso, no plano quer do indivíduo, quer da comunidade. São portanto religiões eminentemente presenteístas, que não implicam o projeto de um mundo que há de vir ou de uma transformação deste mundo, no que se diferenciam de outras religiões brasileiras, inclusive do catolicismo associado à teologia da libertação. E nessa recuperação do presente, encontra-se a grande força, bem como a contradição fundamental destas religiões, o que parece explicar tanto a sua difusão quanto os limites dessa difusão. Apesar disso tudo, algumas de suas variedades não deixam de apresentar ao menos o esboço de mitos messiânicos, representados pela cidade da jurema e pela vaga lembrança de certos heróis libertadores. Além disso, os terreiros afro- brasileiros, numa espécie de curto-curcuito apocalíptico, criam seu mundo dentro do mundo, ao qual os fiéis têm acesso através de um percurso iniciático, implicando o renascimento místico do indivíduo e do grupo que, pelo transe, confundem suas personalidades com as dos santos. Candomblé, Xangô e Tambor de Mina As religiões afro-brasileiras formam um conjunto bastante complexo, dentro do qual podemos em primeiro lugar distingüir as variedades mais próximas ao candomblé da Bahia e ao xangô do Recife,1 orientadas para o culto dos orixás, os quais, apesar de tendências recentes, que vêm levando a acelerada dissolução dos laços sincréticos, correspondem aos santos da Igreja, de cuja dignidade participam, sua liturgia não admitindo a invocação a espíritos de baixo nível, caboclos, mestres, ciganos e tutti quanti. Os cultos desse primeiro grupo possuem também uma prática ritual centrada em torno do sacrifício (obrigação) e do transe que, ao menos no plano do tipo ideal, assume a forma de um êxtase. O devoto, no decorrer das dansas públicas ou dos sacrifícios secretos, fica saturado pela irradiação do deus. Inteligência e afeto já não se exprimem através do discurso. O candomblé2 e seus equivalentes se caracterizam ainda pela organização em torno de terreiros e de um sacerdócio, representado por babalorixás e ialorixás, cujo acesso é em teoria reservado aos que passaram por um processo específico de iniciação ou ordenação. O sincretismo não se limita ao plano das personalidades míticas. O calendário da Igreja também se aplica ao culto dos orixás. Em certos casos, antes da celebração no terreiro, assiste-se à missa em determinada igreja. Nos mesmos dias, ou pelo menos nos mesmos ciclos –pois as festas têm novenas, vigílias, oitavas--, as liturgias se completam, mas sem confundir-se. Essa quase completa ausência de confusão sugere a noção de um sincretismo 1 Embora minha pesquisa tenha se estendido a várias cidades brasileiras (inclusive São Luís do Maranhão), foi no Recife sobretudo que realizei o vasto trabalho de campo que se encontra na base de meus trabalhos publicados sobre o tema, no Brasil e no estrangeiro, entre os quais Motta 1977, 1991b, 1994, 1998, 1999, etc.. 2 O termo candomblé será muitas vezes usado, no decorrer desta comunicação, para designar o conjunto das religiões afro-brasileiras. 3 vertical ou metafórico entre o candomblé e o catolicismo.3 Este funcionava para aquele como uma espécie de metalíngua, permitindo que a religião afro-brasileira, a qual, pelo menos na origem, não possuia uma teologia sistematizada, se pensasse e se representasse a si mesma. Era assim que as imagens católicas dos santos geralmente se colocavam (o que ainda continua largamente a ser praticado), no interior dos pegis (santuários afro- brasileiros), em prateleiras situadas acima das pedras e dos ferros, nos quais, segundo a crença africana, reside a força (axé) dos deuses. Santos da igreja e orixás do xangô sendo as metáforas uns dos outros, nunca ou quase nunca apareciam no mesmo nível icônico nem no mesmo contexto ritual. Os fiéis os separavam em cerimônias diferentes, ou pelo menos em momentos diferentes das mesmas cerimônias. Até data relativamente recente, nenhuma festa de orixá podia realizar-se antes da recitação do terço e de certas ladainhas. Chegava- se mesmo ao ponto de, em plena festa, parar de vez em quando a dança, para que os fiéis se ajoelhassem e “adorassem” os panos bordados com as imagens católicas dos santos.4 E também acontecia que, mesmo nos atos mais simples, a religião africana só podia ser legitimamente praticada pelos que tivessem recebido o batismo do padre.5 Decadência do Sincretismo O sincretismo constituiu, nas décadas de 30 e de 40, um dos temas preferidos da pesquisa afro-brasileira.6 A partir porém aproximadamente de 1970, a tendência principal dos pesquisadores7 vem sendo dar-lhe importância bem menor, sendo reinterpretado, de acordo com a sugestão de Bastide, como “máscara colonial”. Pode-se, nesse ponto de vista, reconhecer a influência de um vago populismo de inspiração marxista, considerando os afro- brasileiros como uma espécie de classe oprimida, um proletariado que teria resistido ao 3 Tenho em vários de meus trabalhos tratado do sincretismo afro-brasileiro e de suas variedades. Ver, por exemplo, Motta 1976, 1991a. 4 Era pelo menos o que acontecia, no Recife, nos terreiros de tradição xambá, considerados, nessa cidade, como um dos ritos ortodoxos, ao lado dos ritos nagô, jeje e congo. Mas todas essas tradições, muitas vezes chamadas nações, encontravam-se fortemente marcadas pela influência ritual e mitológica dos Iorubas da África Ocidental, cujo idioma, em versão arcaica conhecida no Brasil como nagô, tornou-se a língua geral da diáspora afro-brasileira, salvo no Maranhão e na Amazônia, onde tem de enfrentar a concorrência do jeje (fon), originário do que hoje em dia corresponde à República do Benin. 5E acontecia que os terreiros se revelassem autênticos conservatórios de tradições católicas, há muito abandonadas pela Igreja oficial. Onde mais se iria escutar certa ladainha de São João Batista, a não ser num terreiro do Recife, alguns quartos de hora antes das danças e dos transes em honra de seu alter ego afro- brasileiro, o orixá Xangô? 6Arthur Ramos (1940) e Waldemar Valente (1955) são exemplos eminentes da tendência filo-sincrética. 7O exemplo arquetípico da tendência ânti-sincrética é o livro de Juana Elbein dos Santos (1976), o qual, desde seu aparecimento, não parou de influenciar a pesquisa afro-brasileira. De fato, muito antes que essa tendência se generalizasse entre os pesquisadores, a partir dos anos 70, ela já se encontrava nos trabalhos de Edison Carneiro (1936; 1937). Este autor, que não tem gozado da reputação que certamente mereceu, exerceu decisiva influência sobre Roger Bastide, o qual, apesar de seu “politeismo” teórico e empírico, falava muito de “pureza africana” e considerava o candomblé como a sobrevivência, no Brasil, de uma África que coexistiria com a sociedade brasileira, mas sem jamais com esta fundir-se. 4 opressor justamente pela religião, assimilada a uma pré-consciência de classe à qual não faltaria certo potencial revolucionário. Mas a verdade é que têm ocorrido transformações na vivência religiosa, as quais em grande parte se originam no próprio catolicismo, para o qual o culto dos santos se torna menos importante. Digamos então que, querendo-o ou não, a religião afro-brasileira se afasta da Igreja Católica, na medida justamente em que esta se afasta da religiosidade tradicional ibero-americana. Pois a Igreja repudia essa devoção largamente orientada para o alívio das aflições do quotidiano e volta-se --é eminentemente o caso da teologia da libertação-- para um projeto histórico de transformação da sociedade.8 Ora, as ligações sincréticas do candomblé faziam-se essencialmente com o catolicismo popular, baseadas que estavam, ao nível das estruturas profundas, na equivalência entre o culto dos santos e o dos orixás. Religiões Urbanas Observemos ainda que o candomblé e suas variantes regionais (xangô, tambor de mina) constituem fenômeno essencialmente urbano. Suas bases se encontram em certas grandes cidades litorâneas --nunca, ou quase nunca, no interior ou em áreas de agricultura-- as quais têm historicamente servido como portos para o escoamento das grandes plantações de cana-de-açúcar ou, secundariamente, de tabaco ou algodão. E tudo leva a crer não fossem propriamente religiões de escravos. Pois sua base social originária parece sobretudo encontrar-se numa plebe urbana ou mesmo numa pequena burguesia negra, composta de pequenos comerciantes, artesãos, prestadores de serviços, cada vez mais absorvidos pelo setor informal tão característico das cidades brasileiras. A experiência social dessa camada, condicionada por um regime de produção e troca direto e concreto, por relacionamentos personalizados, face to face, é sem dúvida afim ao caráter extremamente concreto, às vezes até mesmo brutal, da liturgia afro-brasileira, cujo rito fundamental outro não é que o sacrifício sangrento de animais. Ora, o crescimento do setor informal não deixa, a seu modo, de representar uma consequência do processo de desenvolvimento 8Na realidade, se bem que o distanciamento da Igreja com relação à religião popular se torne bem mais forte nas últimas décadas dos século XX, trata-se de processo bem mais antigo, ligado ao que Gilberto Freyre (1936) chamou a “reeuropeização” do catolicismo brasileiro, que já se evidencia a partir da segunda metade do século XIX. Essa idéia, retomada por Roger Bastide (1951), o qual prefere falar de “romanização” e depois por historiadores como Ralph della Cava (1970) e Thomas Bruneau (1970), tornou-se uma das idéias centrais da pesquisa histórica e sociológica sobre a religiosidade brasileira, conforme o exemplo de Pedro Ribeiro de Oliveira (1985). Ora, essa “reeuropeização”, que atinge sobretudo o catolicismo de certa elite social e intelectual, levando-o a uma orientação mais ética e mais social, provoca indiretamente um vazio na religião popular, ocasionando o surgimento de outras igrejas ou para-igrejas, inclusive de um candomblé cada vez mais “reafricanizado”, as quais tentam assumir a herança do antigo catolicismo tradicional. 5 econômico. Pois tal setor é essencialmente constituído daqueles que o processo de modernização rejeitou ou abandonou. As religiões afro-brasileiros vêm portanto a significar o reflexo, mas o reflexo invertido, da modernização da sociedade brasileira. E essa inversão nos ajuda a entender o paradoxo derivado da coexistência do candomblé, o qual passa no momento por acelerada expansão do número de seus adeptos,9 com as mais avançadas manifestações da modernidade brasileira. Estamos aqui diante do exato oposto, tanto da correlação entre o “mundo real” do “trabalho homogêneo” e as religiões do “homem abstrato” em seus “desenvolvimentos burgueses: protestantismo, deismo, etc”, postulada por Karl Marx no primeiro capitulo de O Capital, como da ligação entre capitalismo moderno e racionalidade religiosa, tal como a concebe Max Weber na introdução aos seus Ensaios Reunidos sobre a Sociologia da Religião. Isso dito, nada impede que se reconheça uma sutil afinidade entre a modernidade, pelo menos brasileira, e o candomblé. Aquela abandona as noções cristãs de pecado (“original” ou “atual”) e culpa. E este não poderia atribuir menor importância às mesmas noções. Muito representativa, neste particular, é a atitude de um famoso babalorixá, o pranteado João da Goméia, o qual, no dizer de seu biógrafo: Desde menino, foi muito religioso. Frequentava sempre a Igreja e era amigo de padres e de freiras. [...] Candomblecista e católico convicto, Joãozinho da Goméia frisava sempre que o candomblé não impõe uma moral, como as demais religiões, e não se preocupava com o que lhe sucederia após a morte (Siqueira 19971:91-2). E desse modo a religião afro-brasileira resolve um problema comparável ao da quadratura do círculo, permitindo conciliar uma experiência religiosa que chega até a fusão mística do fiel com o divino, com ampla permissividade, inclusive no domínio sexual, o que por certo não lhe traz desvantagens na disputa com outras religiões, seitas e movimentos, pela conquista do mercado brasileiro dos bens e serviços mágico-religiosos. Catimbó, candomblé de caboclo, macumba Ao lado do candomblé e de suas variantes regionais, que representam, por assim dizer, a forma “clássica” de religião afro-brasileira, encontram-se tanbém cultos menos estruturados, de aspecto ainda mais marcadamente mágico que religioso. Apesar dos numerosos africanismos que hoje em dia os caracterizam, tudo leva a crer que tais cultos -- que já podemos reconhecer em documentos da Inquisição, datados de fins do século XVI e reproduzidos em Vandezande 1974-- consistissem, em suas versões originárias, de um 9 É o que tem destacado Reginaldo Prandi, sobretudo em Prandi 1991. 6 sincretismo entre certas práticas de origem indígena e a religião popular luso-brasileira.10 O catimbó da região do Recife, bem como o seu equivalente de Salvador, denominado candomblé de caboclo,11 é fundamentalmente o culto dos mestres, espíritos curadores de origem páleo-luso-brasileira, e dos caboclos, que são igualmente espíritos curadores, mas de origem ameríndia. A essas duas influências, parece que desde o princípio se juntaram alguns traços da religião dos ciganos hispano-portugueses ou, de maneira mais ampla, muitas das práticas ligadas à feitiçaria luso-brasileira mais antiga.12 É assim que se reencontra no catimbó o espírito de Maria Padilha, venerada pela Carmen de Prosper Mérimée, junto com toda uma categoria de espíritos ciganos, complementar às dos mestres e caboclos.13 Catimbó, candomblé de caboclo, macumba e outros constituem cultos menos estruturados do que candomblé, xangô, ou tambor de mina. Estes desde o princípio formaram congregações hierarquizadas, as quais, neste momento de rutura das ligações sincréticas com a Igreja Católica, tendem a cada vez mais transformar-se em igrejas independentes, disputando com outras igrejas, seitas e movimentos a conquista do mercado religioso. Por outro lado, catimbó e equivalentes não requerem, em regra geral, o acionamento de um processo iniciático, com seus custos e complicações. De fato, o grosso da clientela dos cultos menos estruturados provém do subproletariado das grandes cidades, o qual não possui bastante capacidade econômica para enfrentar os custos inerentes aos ritos, em princípio considerados como mais eficazes, do candomblé ou do xangô. Invocados através do canto e da dança, ou só do canto, os espíritos, incorporados pelo médium num transe de possessão verbal –que contrasta com o transe de êxtase do candomblé e do xangô- - dão consultas aos interessados, transmitindo conselhos e receitas. De fato, catimbó e assemelhados representam eminentemente sistemas de cura e de alívio. O consulente, em contrapartida, deve deixar um agrado (em dinheiro ou em espécie), cujo valor depende de um cálculo sutil, no qual se leva em conta o prestígio do médium, dentro do mercado 10 Sobre o catimbó, vejam-se Cascudo 1951; Fernandes 1938; Alvarenga 1949; Andrade 1963; Bastide 1945; Vandezande 1975; Motta 1977, 1980; Mota 1987; Carvalho 1990; Carlini 1993; Nascimento 1994; Pinto 1995; Assunção 1999. 11 Sobre o candomblé-de-caboclo consulte-se o trabalho pioneiro de Edison Carneiro (1938) e o trabalho ainda recente de Santos (1995). 12 Sobre a feitiçaria luso-brasileira, largamente continuada pelo catimbó e cultos semelhantes, bem como, em muitos aspectos, pelo próprio candomblé, veja-se Mello e Souza 1986. 13 Minha primeira comunicação pública sobre o possível relacionamento da Maria Padilha do Catimbó com a Maria Padilha da Carmen, de Prosper Mérimée, eu a fiz em comunicação até hoje inédita, intitulada Espíritos Ciganos no Catimbó do Recife, apresentada ao grupo de trabalho Religião, Cultura e Identidade, na XV Reunião da Associação Brasileira de Antropologia, realizada em Curitiba, em março de 1986. Repeti- a em vários outros congressos e textos publicados na década de 80 (entre eles Motta 1988). Esse relacionamento tem sido também estudado pelas professoras Monique Augras (1989) e Marlise Meyer (1993). Muitos dados sobre a pré-história de Maria Padilha no folclore mágico luso-brasileiro encontram-se em Mello e Souza (1986). 7 concorrencial dos bens e serviços mágico-religiosos em que se acha inserido, bem como a capacidade financeira do próprio consulente. As Umbandas Podemos ainda reconhecer uma terceira categoria de religião afro-brasileira. É a umbanda,14 que tenta reinterpretar a tradição popular através de uma teologia que invoca a inspiração de Allan Kardec (pseudônimo de Leon Rivail, cujo Livre des Esprits foi publicado em 1857). Dentre os muitos aspectos deste sistema de crenças, merecem ser aqui destacado a fé no progresso indefinido do universo e dos espíritos que o habitam, encarnados ou desencarnados, residentes na Terras, noutros planetas e noutras galáxias. Mas é um progresso que se faz ao longo de infindáveis reincarnações terrestes e extra-terrestes. Concebe-se a Terra como “planeta de expiação”, outros astros, entre os quais por excelência Júpiter, sendo lugar de uma existência bem mais evoluída, o que sem dúvida vem a representar concepção excessivamente etérea do mundo que há de vir. Orixás, exus, mestres, caboclos, ciganos e outros passam a ser vistos como espíritos situados em certo nível de evolução espiritual e que, de acordo com esse nível, são capazes de ajudar ou prejudicar a humanidade presentemente incarnada. Outro aspecto a merecer destaque é a importância atribuída pelo Kardecismo e, através dele, pela Umbanda, à doutrinação, isto é, ao ensinamento ou ao diálogo entre os encarnados e os desencarnados, o que está longe de fazer-se apenas num sentido, havendo espíritos tão, ou mais, necessitados de luzes que os atualmente sujeitos à morte. A Umbanda, por causa desses seus elementos kardecistas, representa uma valorização da palavra, atuando conseqüentemente como fator de racionalização15 das religiões afro- brasileiras. Se preferirmos empregar uma terminologia helenizada, extraída ou adaptada de Victor Turner (1975), diríamos que a influência umbandista vem reforçar o logos em detrimento do eikon (ícone, imagem). Neste sentido, a Umbanda não deixa de apresentar alguma analogia, ainda que remota, com a Reforma protestante, a qual em contraste sobretudo com o “Catolicismo Popular” (o Vulgarkatholizismus dos autores alemães), implica em forte reação iconoclasta, desvalorizando sacramentos e rituais e enfatizando a palavra, as escrituras e a doutrinação. 14 A bibliografia sobre a Umbanda compreende, entre outros, Brown 1986; Camargo 1961; Concone 1987; Costa 1983; Ortiz 1978; Warren 1970. 15 Cândido Procópio Ferreira Camargo, em famoso e seminal trabalho (ainda quando não se concorde com ele em todos detalhes), insiste sobre o papel racionalizador (precisamente em sentido weberiano) exercido pela Umbanda (Camargo 1961). 8 O que, já em trabalhos anteriores (Motta 1977, 1999), denominei xangô umbandizado,16 ao mesmo tempo em que adota certos elementos da sistematização kardecista (classificação das entidades em linhas e falanges, maior ênfase sobre a palavra, etc), conserva os toques, as danças, a hierarquia (ou pelo menos a nomenclatura) dos terreiros de xangô e de candomblé. Tal é muito tipicamente o caso do Omolokô, descrito nos trabalhos de Tancredo da Silva Pinto e seus discípulos. Essa tendência se encontra estreitamente associada com aquilo que também tenho denominado “modelo Goméia”, resultante da adaptação, na qual o finado João da Goméia17 parece ter desempenhado papel pioneiro, do candomblé da Bahia (ou do xangô de Pernambuco) às circunstâncias de um Rio de Janeiro em crescimento demográfico acelerado, sobretudo em sua periferia, cheia de migrantes desenraizados e deprivados de suas estruturas de apoio comunitárias e culturais. Tudo indica que, em certos bairros ou cidades, os terreiros desse novo tipo de candomblé,18 assim como, pode-se presumir, as igrejas pentecostais ou neo-pentecostais (bem antes das Comunidades Eclesiais de Base ou grupos de católicos carismáticos, que, ao menos em parte, parecem representar a resposta atrasada da Igreja Católica a essa situação), constituissem expressão principal de solidariedade, como se desses terreiros e dessas igrejas surgisse a própria sociedade. Os Novíssimos19 As religiões afro-brasileiras orientam-se essencialmente para o alívio das aflições deste mundo, neste mundo, e se preocupam muitíssimo pouco com o que possa acontecer depois da morte.20 O conceito afro-brasileiro de santidade (axé) confunde-se com os de força e de saúde. Tal é o horror que a morte provoca, que os ritos funerários afro- brasileiros consistem numa verdadeira dessacralização ou “desiniciação”. Na iniciação havia sido instalada no corpo do fiel, sobretudo em sua cabeça, a presença física, material, da 16 Esta denominação foi aceita por Brandão (1986), autora de trabalho essencial sobre o assunto e, mais recentemente, por Fonseca (1995), cujo estudo é o único disponível sobre essa figura ímpar da religião afro- brasileira em Pernambuco, que é Pai Edu, senhor do Palácio de Yemanjá, situado no Alto da Sé, em Olinda, a um passo de uma das catedrais mais antigas do Brasil. 17 Gisèle Binon-Cossard (1970) proporciona uma saborosa descrição da mitologia, do ritual e da organização do terreiro de João da Goméia, em Nova Iguaçu. 18 O modelo Goméia (bem como os seus similares) propaga-se pelo Rio de Janeiro e por São Paulo, onde a tradição do Candomblé-Xangô é originariamente menos forte do que na Bahia ou no Recife. Mas, fato aparentemente paradoxal, esse modelo é reexportado também para estas cidades. No Recife, conforme atesta minha observação, o Candomblé da Goméia (sob diversos nomes) penetra especialmente (sem que nisso se manifeste grande diferença com relação ao Rio de Janeiro) nos bairros e conjuntos residenciais de constituição mais recente (Vila do IPSEP, Jardim Brasil, Prazeres, etc). 19 Este termo está aqui empregado com sentido técnico derivado do catecismo católico. Neste, os quatro novíssimos são morte, juízo, inferno e paraíso. 20 O que é em geral válido mesmo para a umbanda, apesar de atenuado para as variedades mais diretamente sujeitas à influência do kardecismo e à doutrinado progresso através das reencarnações. 9 divindade, tanto mais que, nessa religião, que não compartilha a separação, característica das religiões européias, entre corpo e alma, não se chega tampouco a conceber outras formas de presença. Trata-se agora, antes do sepultamento, de retirar do morto todo vestígio de santidade. Os deuses são deuses de vivos e não deuses de mortos. Somente Iansã --Iansã egun nitá, Iansã vencedora dos fantasmas-- é que pode, em certas circunstâncias, enfrentar a morte e penetrar nos cemitérios.21 Na verdade, os devotos acreditam na sobrevivência do egun, o fantasma que ronda os lugares por onde viveu. Todo terreiro mais ou menos tradicional se acha na obrigação de possuir o seu quarto de balé, no qual recebem sacrifício o egun, ou os deuses a ele associados, entre os quais Iansã, que é senhora de todos os eguns. Porém a respeito da imortalidade da alma em sentido mais estrito, suas noções são muito vagas e não deixam de lembrar as dos antigos gregos. Para a mentalidade afro-brasileira, como é geralmente o caso das religiões populares, ou a devoção trará algum proveito para a vida do fiel neste mundo, ou não servirá mais para nada. Neste ponto, como em outros, a atitude arquetípica é a de João da Goméia, o qual, como já vimos, “não se preocupava com o que lhe sucederia após a morte”. Outra não era, no Recife, a opinião do finado Mário Miranda, que, como várias vezes pude escutar, gostava de exprimir-se a sua congregação do seguinte modo: Quando a pessoa morre, acabou-se. Sabe o que é o céu? Quando morre uma pessoa boa, o povo diz, “que pena, vamos rezar por ele”. Quando é um homem ruim, todo mundo diz “já morreu tarde, caixão nele”. O inferno é essa vida aqui mesmo. Quem foi que falou em diabo? Eu não acredito em nenhum diabo. O diabo é o olho grande do povo. Nessa vida eu acredito mesmo é em três deuses: Exu, dinheiro e a polícia. Tais declarações de radical agnosticismo em nada aliás impediam meu pranteado informante e amigo de, no decorrer da mesma alocução, solicitar a seus fiéis e amigos que lhe trouxessem 400, 500 frangos para a grande obrigação na véspera do dia de Exu (24 de agosto). É que o candomblé, finalmente, está voltado para questões relativas ao trabalho e ao dinheiro, à saúde, ao amor e ao sexo. Ele se caracteriza pela ausência de um projeto de transformação do mundo ou dos indivíduos. Longe de querer mudar a ordem (ou a desordem) da existência, o que lhe importa é dela aproveitar-se ao máximo, através 21 Pode-se conjeturar que a associação com os fantasmas por parte dessa deusa --mais ou menos correspondente à Persefone ou Proserpina da mitologia greco-romana--, que é também senhora do raio e da ventania, derive da assimilação da alma a uma espécie de sopro. 10 tanto da manipulação mágica do quotidiano, quanto do acionamento das redes de clientela que sempre se formam ao redor dos terreiros. A estrutura básica do candomblé se configura no “contrato diádico”22 que se estabelece entre o deus e o homem, pelo qual este se compromete a “dar de comer” àquele, através da oferta de vítimas sacrificiais, na verdade também do seu próprio corpo, para que o deus possa se manifestar pela dança e pelo transe. Na véspera 23 das festas dos orixás é normal, como se fazia em casa de Mário Miranda, que se matem cinco ou seis bichos de quatro pés (cabras, bodes, carneiros), além de cerca de 40 aves. É também na região do Recife que Pai Edu (o qual hoje aparece com frequência na televisão italiana), mata ou faz matar perto de 500 frangos para a festa do seu Exu, ao mesmo tempo em que reune em sua casa, para banquetes bem irrigados, intelectuais, jornalistas, damas da alta sociedade... A finada Badia, cujo terreiro ficava bem no centro do velho Recife, jamais oferecia, no aniversário de sua iniciação, menos de 15 quadrúpedes, acompanhados de 45 galináceos. E pai Raminho, que não gosta de perder para ninguém quando se trata dos esplendores da liturgia, lançou recentemente a moda dos sacrifícios de bois, matando,dentro de seu terreiro, quatro ou cinco deles quando das grandes cerimônias do mês de agosto.24 Aí se encontra a essência da religião.25 Cabeças cortadas, cheiro do sangue que escorre e impregna as roupas dos circunstantes, libações, alegria, gritos de glória, passos de dança sobre o chão vermelho, êxtase. Em compensação, o orixá dá ao fiel proteção e apoio na gerência do seu quotidiano e nas crises de sua existência, ao mesmo tempo em que lhe faz o dom de uma nova identidade, instalada na cabeça do homem pelos ritos de iniciação, que aparece 22 A idéia desse contrato diádico encontra-se, de modo explícito, em Georges Foster (1967), tendo sido aplicada ao catolicismo popular brasileiro por Daniel Gross (1971). No Brasil, Thales de Azevedo (1969) tinha chegado às mesmas conclusões, notando a profunda continuidade de estrutura entre o catolicismo popular ibero-americano, baseado no culto dos santos (mesmo quando essa religiosidade não apresenta o menor vestígio de influência africana), e a religião afro-brasileira. 23 Desenvolvo essa opinião em minha tese de doutorado, Motta 1986, em Motta 1993 e em vários outros de meus trabalhos, inclusive em alguns dos mencionados neste artigo. 24Sobre os sacrifícios de bois em casa de Raminho, veja-se também Ferreux 1993. 25Aí se acha a essência não apenas da religião afro-brasileira, mas da religião, em geral, com o que Sigmund Freud certamente concordaria, pois para o autor de Totem e Tabu as religiões com projetos éticos não seriam mais do que transposições, noutra clave, das religiões sacrificiais. Mas o caráter primordial do sacrifício não precisa de justificativas psicanalíticas. Tudo, nas igrejas cristãs, gira em torno do sacrifício da Cruz, do qual a missa católica não pretende ser mais que a “reapresentação” incruenta. Não faltam portanto boas razões a Walter Burkert para dizer que “A maior experiência que o devoto pode ter do deus encontra- se não na conduta piedosa, ou na prece, no canto e na dança, mas no golpe mortal da lâmina e no jorro de sangue. [...] A matança sacrificial é a experiência básica do sagrado. O homo religiosus age e torna-se consciente de si como homo necans” (1983: 2-3). E é justamente esse contacto imediato com o que de mais básico existe na condição humana, que explica o fascínio (às vezes a repulsa) exercido pela religião afro- brasileira. 11

Description:
pois se trata de uma religião que considera a atividade sexual como .. Brandão, Maria do Carmo 1986 Umbanda: Religion and Politics in Brazil. Ann Arbor: 1986 Meat and Feast: The Xangô Religion of Recife, Brazil, Ph. Diss.
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