��������������������������������������� juventude A O NDRÉA SÓRIO resumo Pesquisa realizada em dois estúdios de à juventude no país. Além dos sur�stas, outros tatuagem da cidade do Rio de Janeiro apontou para grupos jovens, como os punks do ABC paulista, a predominância da prática na faixa etária dos 20 aos �zeram uso da marca (Marques 1997). 29 anos. Cerca de 60% do público de um dos estú- Em observação de campo em dois estúdios dios é formado por jovens entre 16 e 29 anos. Por trás de tatuagem na cidade do Rio de Janeiro entre da sedução que a tatuagem exerce sobre a juventude, 2003 e 2004, percebi que os grupos de cultura parece estar um processo de marcação social – sobre jovem não formam a maioria da clientela. Em o corpo – de autonomia pessoal, que foi nomeado na um dos estúdios pesquisados, próximo às praias literatura dedicada ao estudo da tatuagem contempo- de Copacabana e Ipanema, os sur�stas são um rânea como posse de si, conceito que remete à emer- grupo visível entre os clientes, mas não consti- gência de um processo de individualização, em que tuem o público majoritário. Por outro lado, o a tatuagem pode se apresentar como signo propício mesmo imaginário que associa a prática a estes a uma prova pessoal (e social) de força e coragem ou grupos, normalmente associa-a a um universo como epíteto de uma rebelião silenciosa contra ins- masculino e os próprios grupos jovens são pen- tâncias de controle do indivíduo, sobretudo a família. sados como fundamentalmente masculinos1 ou palavras-chave Tatuagem. Juventude. Auto- sem maiores re�exões a partir do recorte de gê- nomia. nero, como por exemplo em Vianna (1985) so- bre o universo funk carioca, Caiafa (1988) sobre os punks cariocas, Costa (1993) sobre os “ca- “Menino do Rio recas” paulistas e Abramo (1994) sobre punks Calor que provoca arrepio e darks. Em campo, identi�quei um público Dragão tatuado no braço majoritariamente feminino e que não podia ser Calção, corpo aberto no espaço” associado a nenhum grupo jovem especí�co. Caetano Veloso Analisando �chas de cadastro de clientes de um dos estúdios pesquisados, localizado no Introdução bairro da Tijuca, Zona Norte2 carioca, obser- vou-se que as mulheres formam cerca de 70% Quando Petit, o “Menino do Rio” que Cae- dos clientes, número observado por outros tano Veloso cantou em versos, fez sua aparição na tatuadores em outros estúdios, como Emer- Praia de Ipanema com o célebre “dragão tatuado son, tatuador da Rocinha3, que a�rmou ao no braço”, ele não foi o primeiro de sua geração a associar surf e juventude ao uso de tatuagens 1. Conforme também observado por Weller (2005). (Marques 1997). Contudo, foi um pioneiro e 2. Área da cidade de baixo poder aquisitivo, embora a serviu de ícone na difusão da prática tanto en- Tijuca sobressaia aí como região de classe média. 3. Antiga “maior favela da América Latina”, hoje com tre jovens quanto entre as camadas médias ca- status de bairro, encravada no morro entre os bairros riocas. A partir de Petit e da cultura de massas, da Gávea e São Conrado, Zona Sul carioca, áreas ex- construiu-se um imaginário ligando a tatuagem tremamente valorizadas da cidade. cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006 �� | A����� O����� site Beleza Pura4 que 70% de seus clientes são em que uma Resolução Municipal impediu a mulheres (Leal 2005). Estas �chas de cadastro prática para menores de 16 anos, e entre os 16 apontaram, ainda, para faixas etárias dominan- e 17 anos apenas com termo de responsabili- tes no público local, outras que não aquelas dade assinado pelo responsável. Ainda assim, consideradas “jovens”. Estes dados indicaram a os estúdios pesquisados implementaram regras necessidade de se repensar a tatuagem não mais próprias, ainda mais rígidas: naquele pesqui- como uma prática de juventude, mas como um sado na Zona Sul, menores não são tatuados, processo de marcação corporal que tem atingi- enquanto no estúdio pesquisado na Zona Nor- do estratos populacionais que não estão rela- te7 o termo deve ser apresentado pelo próprio cionados às culturas jovens. responsável. Fonseca (2003), em levantamento quanti- Esta situação indica uma tutela por parte da tativo das �chas de cadastro de clientes5 de um família que é vista por alguns como incômoda. estúdio pesquisado na cidade de Florianópolis, Parece ser a necessidade de romper com este observou que as faixas etárias não-jovens sofre- status de menoridade, não no sentido jurídico, ram um incremento e os homens deixaram de mas valorativo, que leva alguns a se tatuarem ser o público majoritário em função do cresci- assim que os 18 anos chegam. Ou seja, a marca mento da clientela feminina6. Quanto à mu- parece ser um indicativo de liberdade – aqui dança na faixa etária, o levantamento da autora uma liberdade sobre o próprio corpo que se demonstra que não houve clientes acima dos conjuga a uma liberdade por escolhas. Trata- 40 anos entre 1997 e 1998, situação que mu- se de um processo análogo ao que se observou dou paulatinamente a partir de 2000, ano em entre algumas mulheres de diversas faixas etá- que já houve um cliente nesta faixa etária; em rias em que a resistência da família, sobretudo 2001, 7 clientes; em 2002, 12. A expressivida- nas �guras do pai e do marido, teve que ser de daqueles abaixo de 20 anos, por outro lado, enfrentada com a�rmações como “esse corpo é caiu. Em 1997, eram 142 indivíduos, contra meu”, indicando não apenas a necessidade de 135 dos 20 aos 39 anos. Em 2002, eram 90 uma autonomia individual, mas a di�culdade abaixo dos 20 anos contra 235 acima, com de se adquirir/exercer esta autonomia. uma super-representação da faixa de 20 a 24 anos: 113 indivíduos. Per�l etário e de gênero Há ainda muitos jovens que buscam a ta- tuagem como prática de modi�cação corpo- O levantamento efetuado no cadastro de ral. Entre os casos observados em campo, os clientes do estúdio pesquisado na Tijuca8, re- recém-completos 18 anos são, muitas vezes, ferente aos meses de setembro e dezembro de comemorados pela aquisição da marca. Os 18 2003 e janeiro de 2004, demonstrou uma varia- anos têm sido uma idade-limite, na medida 7. Embora a comparação entre Zona Norte e Sul cariocas seja bastante presente na Antropologia Urbana brasilei- 4. Ligado ao site do projeto Viva Favela do Viva Rio, ra, esta linha de análise não foi privilegiada no presente ONG carioca. O projeto privilegia as comunidades trabalho em função da baixa diferenciação observada de favelas e assim o faz também o Beleza Pura, mas entre os clientes dos dois estúdios pesquisados. voltado ao universo da estética. 8. No estúdio pesquisado na Zona Sul, percebi que rara- 5. Entre 1996 e 2002, exceto 1999. mente os clientes preenchiam tais �chas, enquanto na 6. O ano em que as mulheres se tornam maioria no es- Zona Norte nenhum cliente deixava de preenchê-las. túdio pesquisado por Fonseca (2003) é 2000, man- Assim, não foi possível pesquisar o cadastro do estú- tendo-se maioria nos dois anos subseqüentes. dio observado na Zona Sul. cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 83-98, 2006 Tabela n. 1– Faixa etária dos clientes do estúdio pesquisado na Zona Norte. MÊS /ANO FAIXA TOTAL SETEMBRO/ JANEIRO/ DEZEMBRO/ ETÁRIA 2003 2004 2003 16-17 4 (2.5%) 6 (2.4%) 1 (0.6%) 11 (2%) 18-19 16 (10%) 10 (4%) 12 (7.2%) 38 (6.6%) 20-25 57 (35.8%) 78 (30.7%) 46 (27.7%T) ������1�8 1� �(3�1�.�3�%�)� �� | �� 26-29 20 (12.6%) 49 (19.3%) 29 (17.5%) 98 (17%) Tabela n. 1– Faixa etária dos clientes do estúdio pesquisado na Zona Norte. 30-39 36 (22.6%) 87 (34.2%) 52 (31.3%) 175 (30.2%) MÊS /ANO 40-49 19 (12%) 17 (6.7%) 22 (13.2%) 58 (10%) SETEMBRO/ DEZEMBRO/ JANEIRO/ FAIXA ETÁRIA TOTAL 50-59 20063 (3.8%) 240 0(31.6%) 3 2(010.48%) 13 (2.2%) 16-17 4 (2.5%) 6 (2.4%) 1 (0.6%) 11 (2%) 60 ou mais 1 (0.6%) 3 (1.2%) - 4 (0.7%) 18-19 16 (10%) 10 (4%) 12 (7.2%) 38 (6.6%) 20-25 57 (35.8%) 78 (30.7%) 46 (27.7%) 181 (31.3%) TOTAL 159 (100%) 254 (100%) 166 (100%) 579 (100%) 26-29 20 (12.6%) 49 (19.3%) 29 (17.5%) 98 (17%) 30-39 36 (22.6%) 87 (34.2%) 52 (31.3%) 175 (30.2%) 40-49 19 (12%) 17 (6.7%) 22 (13.2%) 58 (10%) 50-59 6 (3.8%) 4 (1.6%) 3 (1.8%) 13 (2.2%) Gráfico n. 1 – Faixa etária dos clientes do estúdio pesquisado na Zona Norte, em 60 ou mais 1 (0.6%) 3 (1.2%) - 4 (0.7%) TOnTAúLmeros absolutos1,5 9n (o1s00 m%)eses pesquisa2d54o (s1.0 0%) 166 (100%) 579 (100%) Grá�co n. 1 – Faixa etária dos clientes do estúdio pesquisado na Zona Norte, em nú- meros absolutos, nos meses pesquisados. 90 80 70 60 50 set/03 40 dez/03 30 20 jan/04 10 0 16- 18-19 20-25 26-29 30-39 40-49 50-59 60 ou 17anos anos anos anos anos anos anos mais ção interessante quanto à faixa etária da clientela. consideração a preponderância numérica de ca- DeGzermáfbicroo né .c 2o n–s Pideerrcaednot upaeilso sd tea tculiaednoteress n doo e esst-údios opse esqmu idseatdeorm nian Zadoansa i dNaodretse,, qnuoes fmoreasmes agrupa- túdio um mês de alto movimento. Os meses do das. Entre os 16 e 17 anos é possível ser tatuado citados, agrupados em dois grupos etários, com corte aos 25 anos. verão, os que o antecedem e o mês de julho são com a apresentação de uma autorização dos considerados mais proveitosos �nanceiramente9. responsáveis. A partir dos 18 anos, construí fai- O total do mês de setembro foi de 159 respostas xas que possibilitassem tanto uma diferenciação sobre idade em 162 �chas10, enquanto o de de- numérica visível ao leitor, quanto a que público zembro foi de 254 em um total de 262 �chas e é realmente majoritário e em que faixa etária. o de janeiro foi de 166 respostas em 180 �chas, O que se torna mais relevante, ao meu ver, conforme a tabela 1 e o grá�co 1 acima. é saber em que medida a tatuagem é hoje uma A construção de faixas etárias é, até certo prática de juventude e em que medida ela tem ponto, arbitrária. A busca por um critério que sido buscada por sujeitos mais velhos. Embora as permitisse a organização de tais dados levou em de�nições de juventude tenham sido recorrente- mente baseadas em uma dicotomia entre a faixa etária e alguns marcos de transição para a idade 9. Segundo os tatuadores, em função da remuneração adulta11 (Pais, Cairns e Pappámikail 2005), não salarial adicional recebida no período de férias. 10. Comparando-se os dados quantitativos de Fonseca (2003), que são anuais, com minha amostra, que é 11. São eles: �m do processo de escolarização, primeiro mensal, observa-se que o estúdio da Tijuca que pes- emprego, saída da casa paterna, primeira união con- quisei atende mensalmente uma proporção de clien- jugal e primeiro �lho, com um sentido linear dos tes semelhante a que o estúdio catarinense pesquisado acontecimentos que têm se perdido nas últimas dé- pela autora atende anualmente. cadas em virtude de fatores como novos arranjos con- cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 83-98, 2006 �� | A����� O����� Grá�co n. 2 – Percentuais de clientes no estúdio pesquisado na Zona Norte, nos meses citados, agrupados em dois grupos etários, com corte aos 25 anos. 26 anos e acima 26 anos e acima 16-25 anos 16-25 anos 0,00% 10,00% 20,00% 30,00% 40,00% 50,00% 60,00% 70,00% 0,00% 10,00% 20,00% 30,00% 40,00% 50,00% 60,00% 70,00% Gráfico n. 3 – Percentuais de clientes no estúdio pesquisado na Zona Norte, nos meses Grá�Gcor ánfi.c o3 n–. 3P –e rPceerncteunatuisa ids ed cel cielinentetes sn noo eessttúúddiioo ppeessqquuisisaaddoo n an aZ oZnoan Nao rNteo, rntoe,s nmoess ems eses citados, agrupados em dois grupos etários, com corte aos 29 anos. citadocist,a adgors,u apgarduopsa deoms edmo ids ogirs ugpruops oest áetráioriso, sc, ocmom c coorrttee aaooss 2299 a annoso.s . 30 anos e acima 30 anos e acima 16-29 anos 16-29 anos 0,00% 10,00% 20,00% 30,00% 40,00% 50,00% 60,00% 0,00% 10,00% 20,00% 30,00% 40,00% 50,00% 60,00% é possível neste trabalho operar a partir destes Acima desta faixa, ou seja, dos 26 em diante, marcos, uma vez que os dados que permitiram há um total de 349 casos (60,1%), conforme a construção de um per�l de clientes são majo- pode ser observado no grá�co nº 2. Se o cálcu- ritariamente quantitativos, o que me leva a uma lo fosse efetuado com um grupo de 16 aos 29 abordagem mais etária e geracional do que dos anos, este total se alteraria para 338 clientes jo- marcos da transição à idade adulta. Desta forma, vens (56,9%), contra 250 a partir dos 30 anos agrupei os resultados �nais em dois blocos: um (43,1%), conforme pode ser observado no grá- que vai dos 16 aos 25 anos e outro que vai dos �co n.º 3. A faixa entre 26 e 29 anos, portanto, 26 em diante. Esta escolha se alinha com a in- é o diferencial para se de�nir se a tatuagem é dicação etária da OMS sobre o escopo etário da hoje procurada por jovens ou não-jovens. categoria “juventude” como sendo constituído Pode-se observar na tabela acima que o públi- de indivíduos entre 10 e 24 anos, embora alguns co preponderante está entre os 20 e os 39 anos, autores possam utilizar outro escopo12. com uma ligeira vantagem para as faixas entre Segundo os dados levantados, dos 16 aos 25 20 e 25 anos e entre 30 e 39 anos. Esta última anos tem-se um total de 230 clientes (39,9%). faixa é, talvez, aquela que cause alguma surpre- sa, pois os 30 anos não costumam ser considera- dos como juventude, muito embora os marcos jugais, uma nova moral sexual pós-década de 1970, da passagem à vida adulta venham se tornando a atual di�culdade de inserção no mercado de traba- tardios, ou seja, sendo alcançados em idades lho e, conseqüentemente, de estabilidade �nanceira (Vieira 2006). mais avançadas. O avanço etário da juventude, 12. Pais, Cairns e Pappámikail (2005), por exemplo, para conforme apontado por diversos autores (Pais, efeitos de pesquisa tomaram a faixa de 16 aos 34 anos. cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 83-98, 2006 T������� � ��������� | �� Cairns e Pappámikail 2005), envolve dependên- Outra variação quanto ao gênero16 é o ta- cia �nanceira, maior tempo residindo na casa manho da tatuagem: as femininas costumam paterna/materna, instabilidade pro�ssional no ser menores do que as masculinas. A região do mercado de trabalho, mais anos de escolariza- corpo a ser tatuada também pode diferir entre ção e, para alguns (Singly 1993), relações afeti- homens e mulheres, havendo regiões que são vas instáveis – marcos mais relevantes do que a preferidas por elas e outras por eles, e ainda idade do indivíduo. Outros autores (Lyra et al. algumas tatuadas por ambos. Segundo o le- 2002) apontam, inclusive, para a criação de no- vantamento efetuado, as regiões mais tatuadas vas categorias classi�catórias para este fenôme- pelas mulheres são as costas (26,4%), seguidas no, como “adultescência”, “pós-adolescência” e por pescoço/nuca (23,6%) e por calcanhar/pé “geração canguru”13. Para outros, contudo, mais (9,5%). Entre os homens, o braço emerge como surpreendente pode ser a existência de casos de preferido absoluto (61,7%), evocando a noção tatuagem em indivíduos acima dos 60 anos. de força física como um valor masculino. Quanto ao gênero, atualmente o público fe- minino tem sido maioria nos estúdios (Mi�in Família, Estado, mercado de trabalho 1997; Leitão 2002). Em conversas com tatu- e tatuagem adores cariocas, a informação foi con�rmada. Esta parece ser uma mudança no quadro dos Embora o consumidor da tatuagem não seja tatuados, pois historicamente a tatuagem oci- essencialmente adolescente, estúdios e poder dental esteve mais ligada ao universo masculi- público desenvolveram uma série de restrições no, sobretudo nas �guras dos marinheiros, dos para o seu atendimento. A partir de agosto de militares e dos criminosos14. A partir das �chas 2004, a Prefeitura do Município do Rio de Ja- de cadastro de clientes preenchidas em um dos neiro determinou que menores de 16 e 17 anos estúdios pesquisados, pode-se observar esta podem ser tatuados desde que responsáveis as- maioria feminina, que constitui uma média de sinem um termo de responsabilidade. Apesar 70% da clientela daquele estúdio15. das restrições e do baixo número de clientes As tatuagens mais populares entre as mulhe- nesta faixa etária (2%), pode-se encontrar nos res, segundo as �chas de cadastro pesquisadas, se- próprios estúdios quem tenha feito a primeira guindo a classi�cação dos próprios tatuados, são tatuagem em idade inferior aos 16 anos. a borboleta (13,7%), a estrela (12,9%) e a �or Em uma tarde de observação na Zona Nor- (11,5%). Evocam valores da feminilidade: frágeis, te, ouvi a história de Márcia17, uma moça de 28 delicados, pequenos. As tatuagens mais populares anos, casada, mãe de dois �lhos, microempre- entre os homens, segundo as �chas pesquisadas, sária. Estava fazendo sua terceira tatuagem. A são os ideogramas japoneses (14,4%), as tribais primeira, contou, �zera aos 13 anos. Já estava (11,4%) e as letras/frase/escrita (10,6%). desgastada e ela pensava em retirá-la com laser. Não queria retocá-la nem cobrir com outro de- senho, pois achava a região tatuada exposta, à mostra com certos tipos de roupa. A tatuagem 13. Embora os autores não indiquem o sentido desta úl- localizava-se nas costas, perto do ombro. Segun- tima expressão, parece se tratar de uma crítica à saída do disse, esteve em um evento com clientes de considerada tardia da casa paterna/materna. 14. Ver Gilbert (2000) e Le Breton (2002), entre outros. 15. Em setembro de 2003, foram 80,2% de mulheres; 16. Para uma re�exão mais aprofundada, ver Osório em dezembro de 2003, foram 70%; em janeiro de (2005a) e Osório (2005b). 2004, foram 65,5%. 17. Todos os nomes são �ctícios. cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 83-98, 2006 �� | A����� O����� sua empresa e, sentindo calor, retirou o casaco. tinha a certeza de que ela seria bem atendida, O vestido que usava deixava a tatuagem à mos- com pro�ssionais capacitados e material este- tra, o que foi observado por algumas pessoas e rilizado. Ao mesmo tempo em que não queria automaticamente transformou-se em assunto perder a cliente, ele se preocupava com o que entre elas. O comentário que recebeu e repro- Costa (2004) chamou de biossegurança. duziu para mim foi o seguinte: “Nossa, você Durante a conversa com Maria, alertou-a tem tatuagem? Mas nem parece!”. que pensasse bem sobre qual desenho gostaria A tatuagem executada sobre a adolescente de tatuar e em que parte do corpo. O ingresso de 13 anos passou a ser vista como um trans- no mercado de trabalho foi o alvo dos alertas torno 15 anos depois em função das exigências sobre o local escolhido. Segundo ele, deveria do mercado de trabalho, ainda que Márcia não optar por uma região que não lhe causasse fosse empregada, mas microempresária. O ato transtornos futuros. Sobre o desenho, disse que de tatuar-se, contudo, não causou nenhum ar- aquela tatuagem seria carregada pelo resto da rependimento, visto que ela fez mais duas ta- vida, que escolhesse algo de que não se arre- tuagens. A diferença era, apenas, na escolha da pendesse, pois os gostos da adolescência nem região do corpo: tatuava-se em regiões em que sempre são os mesmos da idade adulta. Neste pudesse esconder a marca. O desejo de escon- ponto, a mãe de Maria concordou e disse que dê-la não é particularidade sua, mas uma preo- a mentalidade da adolescência e os interesses cupação de vários tatuados, sempre em função deste período nem sempre acompanham as do mercado de trabalho18. mudanças da vida. Apenas depois de tantos O comentário recebido por Márcia deixa alertas, perguntou-se a Maria o que ela deseja- transparecer que a tatuagem não é tão bem acei- va tatuar: “uma estrela”, respondeu. O dono do ta quanto se imagina atualmente: não apenas há estúdio relaxou, pois �cou de acordo que era situações em que ela deve ser escondida, como o um desenho difícil de causar arrependimento. fato de ter de sê-lo envolve uma percepção real, Na medida em que os desenhos escolhidos factual, e não imaginária, de que a tatuagem pode pelas mulheres, especialmente criados para elas e causar transtornos. Uma marca mal-vista no mer- classi�cados nos estúdios sob a categoria “dese- cado de trabalho, que deve ser escondida, torna-se nhos femininos”, envolvem representações de fe- um adorno charmoso na praia, ou em outras situ- minilidade, estes desenhos são formados por um ações, como o �erte, por exemplo (Leitão 2003). escopo restrito de possibilidades que envolvem, Em outra ocasião, antes de serem tornadas fundamentalmente, animais e insetos conside- públicas as novas determinações municipais rados não-agressivos, �ores e desenhos infantis, sobre o funcionamento dos estúdios, observei como bonecas, querubins e personagens de gibis um caso correlato no mesmo estúdio. Maria, e desenhos animados (Meninas Superpoderosas 16 anos, acompanhada pela mãe, queria ser ta- e Hello Kitty, entre outros). Os desenhos infan- tuada. O recepcionista encaminhou mãe e �lha tis são aqueles mais passíveis de causarem “ar- para que conversassem com o proprietário do rependimento”, pois se imagina que não farão estúdio. Este não se recusou a tatuar Maria, ar- sentido para o(a) (corpo) adulto(a). gumentando para mim que, se ele se negasse a Há uma representação social sobre a ado- atendê-la, ela procuraria um outro estúdio ou lescência presente nas histórias acima que pa- outro pro�ssional. Em seu estúdio, disse-me, rece ser um dos fatores de preocupação quanto à tatuagem em menores. O adolescente – e o jovem de um modo geral – é visto como uma 18. Para maiores considerações, ver Osório (2006). cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 83-98, 2006 T������� � ��������� | �� força transformadora, mas também como um hora para ser atendida, mas não havia informa- elemento desordenado e caótico: não pensa no do a ninguém de sua família que seria tatuada futuro, não pensa em seu ingresso no mercado naquela ocasião. Quando o marido lhe telefo- de trabalho e por isso pode se arrepender de se nou para saber onde estava, disse-lhe que seria tatuar em locais visíveis, ou mesmo de se tatuar; tatuada em um estúdio. O marido foi contra. sua mentalidade e interesses podem mudar, pois A cena sucedeu da seguinte forma: o marido é um ser incompleto e inexperiente, que viveu desligou o telefone; voltou a ligar e Cândida poucos anos. Enquanto ele muda e a juventu- tentou explicar-lhe que era seu o corpo que se- de passa, a tatuagem permanece. Por isso deve- ria marcado e que ela desejava uma tatuagem; se pensar bem, escolher com cautela e re�etir. o marido contatou os pais dela que, também Mas, como indica Almeida (2001), mesmo contrários, tentaram demovê-la de suas inten- para pós-adolescentes, nem sempre a tatuagem ções por telefone; ao �nal da sessão de telefone- é o resultado de um processo re�exivo. mas, ela comentou comigo: “O corpo é meu, o Segundo Lyra et al. (2002), idéias sobre a dinheiro é meu, ninguém tem nada a ver com adolescência normalmente evolvem concep- isso. Agora você vê: eu tenho 38 anos e não ções de crise, desordem, irresponsabilidade e posso tomar minhas próprias decisões!”. risco (de gravidez, de contágio por HIV, de uso Cândida sofreu reprimendas em duas ins- de drogas e de uso/vitimização por violência). tâncias: como esposa e como �lha. No primeiro Conforme os autores (Lyra et al. 2002: 12), o caso, conquanto participando da “família con- adolescente é um “sujeito permanentemente jugal moderna”, ou família nuclear, observa-se a em risco, submetido a uma condição especial”. força do marido como autoridade, o que faz pen- O risco que o adolescente representa a si e à sar no que Vaitsman (1994: 33) chamou de “um sociedade é o que leva a idéia de prevenção. No individualismo patriarcal, legitimando as relações caso das tatuagens, esta prevenção tomou a for- hierárquicas entre homens e mulheres, nas esfe- ma de uma ação estatal regulatória. ras pública e privada”. “Aquilo que, realmente e Embora os cuidados gerados pelo Estado na de forma mais evidente, pertence ao indivíduo aplicação de tatuagens em jovens tenham dado – seu corpo e seu esforço” (Vaitsman 1994: 28) aos pais a última palavra sobre o assunto, du- –, a família de origem e a família nuclear à qual rante o campo no estúdio da Tijuca não percebi Cândida pertence tentaram simultaneamente nenhum con�ito geracional na escolha pela ta- roubar-lhe, ou negar-lhe. Sendo esposa, Cândida tuagem. Nunca ouvi nenhum cliente comentar não cessou de ser �lha, ainda sob a vigilância ze- posições contrárias oriundas da família, a não losa, embora distante, dos pais. ser no caso de mulheres adultas com relação Entre os clientes mais jovens, todavia, a famí- a seus maridos. Aqui, a questão da indepen- lia não era mencionada. Diversas vezes, na ver- dência �nanceira feminina como relacionada à dade, observei moças jovens comparecerem ao sua emancipação se torna bastante visível, bem estúdio acompanhadas pelas mães, o que indica como a separação entre estas esferas da inde- uma aceitação da prática, mas também, gostaria pendência e da autonomia (Vieira 2006). de sugerir, sendo uma prática atualmente majo- O caso mais paradigmático, neste sentido, ritariamente feminina, tem se tornado parte das foi o de Cândida, 38 anos, casada, mãe e traba- práticas femininas de embelezamento e, portan- lhando fora de casa em pro�ssão não especi�ca- to, um momento passível de ser compartilhado da. Chegou ao estúdio no �nal da tarde, vinda entre mãe e �lha. Na maior parte das vezes, vi diretamente de seu trabalho. Havia marcado as mães aguardarem suas �lhas na sala de espera. cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 83-98, 2006 �� | A����� O����� Em alguns casos, a mãe se tornava conselheira, tornava mais evidente, mesmo que se tratasse do observando o processo de tatuar e interferindo, uso do piercing e não da tatuagem. Apresentados quando achava necessário. Esta interferência diz na reportagem como grupos geracionais em con- respeito, sobretudo, ao que será tatuado (dese- �ito, percebe-se como os pais faziam uso de per- nho) e onde (local do corpo). De fato, obser- cepções médicas do corpo para confrontarem os vei que as mães que desempenham este papel usos que os �lhos – jovens – fazem dele. O corpo de “conselheiras” exercem um controle sobre emerge como o local da disputa e do controle. os corpos de suas �lhas. A mãe no estúdio de Ao longo da reportagem, percebe-se que os tatuagem desempenha uma dupla função: ela pais entrevistados, embora apelem para questões dá apoio, mas também controla, restringindo a de “risco à saúde”, não estão apenas preocupados escolha do desenho e do local do corpo a serem com os malefícios físicos que tal prática pode vir tatuados (Osório 2005b). a trazer, mas também com as suas implicações No caso de adolescentes, a companhia de morais. Os pais se referem a “problemas”, nunca um dos responsáveis é condição sine qua non especi�cados, o que leva a uma idéia de que ou para a tatuagem. No estúdio da Zona Sul, os não há argumentos substanciais e a noção de ris- menores não são nem tatuados nem se aplica co está vinculada a um medo difuso19, ou se tra- piercings, mesmo com o acompanhamento de ta de uma alusão a possíveis estigmas (Go�man um dos responsáveis. Neste estúdio, observei 1975) tampouco determinados. Observe-se que, um caso em que a mãe era contra a tatuagem, na medida em que concepções de juventude en- mas observei também clientes sendo acompa- volvem a idéia de que os jovens podem romper nhadas pelas mães. Nice, cliente na Zona Sul, com códigos morais vigentes mais conservado- fez sua primeira tatuagem em janeiro de 2005: res e que formam uma espécie de grupo de ris- o nome de São Judas Tadeu na nuca. Devota do co (Lyra et al. 2002), é justamente a implicação santo, esperava para tatuar sua imagem em ou- moral de seus atos o que preocupa os pais. Se a tra ocasião, o que realmente ocorreu. Na época descon�ança quanto à assepsia e a capacitação de sua primeira tatuagem morava com a mãe, do piercer podem ser contornadas com a apli- contrária aos desenhos permanentes no corpo, e cação da jóia feita por um médico, salvando o se a�igia em ter que esconder a marca. O irmão jovem dos “riscos à saúde”, a descon�ança moral era cliente do estúdio e a havia levado até lá, não pode ser contornada. em companhia de sua noiva, que também seria Na revista, apenas adolescentes do sexo fe- tatuada. Nice havia escolhido a nuca proposi- minino foram entrevistadas20. Um único rapaz talmente, pois os longos cabelos serviriam para mencionado é primo de uma das entrevistadas, esconder a marca do olhar cuidadoso e vigilante todas menores de 18 anos. Ao �nal da reporta- da mãe. Embora o irmão fosse tatuado, a mãe de gem, as opiniões de um médico e de um psi- ambos não poupava críticas à escolha do �lho e cólogo dão pistas sobre as diferentes visões: de Nice pretendia fugir às situações de constrangi- mento materno ocultando a marca. A vigilância 19. Gonçalves (2005), sobre o medo que os pais têm e a atenção sobre os �lhos permanecem como de que seus �lhos sejam vítimas da violência urba- característica da família (brasileira). na, percebe também que o medo é de origem difusa, Em reportagem de capa para a revista Vida de como se o risco fosse difuso. agosto de 2004 (Almeida 2004), veiculada sema- 20. O estudo dos usos relativos ao piercing não é objeto nalmente pelo Jornal do Brasil, em função da Re- da pesquisa aqui apresentada, portanto não possuo informações sobre o per�l dos adeptos, sua faixa etá- solução Municipal carioca, o con�ito geracional se ria ou gênero majoritário. cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 83-98, 2006 T������� � ��������� | �� um lado os pais e o discurso médico se alinham rapaz argumentou que, sendo fumante, a mãe em uma voz quase uníssona; de outro, os �lhos corria mais riscos de ter a doença do que ele. e o psicólogo apresentam as modi�cações cor- Vânia Maria de Oliveira, dona-de-casa, ne- porais como fruto da sociedade e da cultura. gou às �lhas de 13 e 16 anos permissão para se A professora Maristella Almeida Cunha, submeterem ao piercing. Segundo ela, “isso é só mãe de uma adolescente que fez um piercing um modismo. Vai passar como todas as modas. aos 13 anos, contou à revista Vida como se Além disso, existem riscos à saúde delas. (...) Se preocupou com o que considerou “despreparo permitisse que elas colocassem o piercing, estaria para algum imprevisto. Não havia kit de pri- trazendo problemas para todos nós” (Almeida meiros socorros, nem um pro�ssional de saúde 2004: 18). A �lha de 16 anos argumentou que (...)” (Almeida 2004: 17), apesar de ter consi- o piercing pode ser retirado, diferentemente da derado o local bastante asséptico. Logo após, tatuagem, que é permanente: “Tatuagem, não. ela concluiu: “Não considero o piercing um É uma marca para sempre” (Almeida 2004: 18). adorno bonito. Ao contrário, acho vulgar” (Al- Neste caso, o piercing está em contraposição à meida 2004: 17). tatuagem na percepção adolescente, mas não O designer grá�co Cláudio Novaes, pai de na materna. Esta diferença é utilizada como ar- uma adolescente de 14 anos que teve a jóia co- gumento para uma prática vista pelos pais não locada em seu umbigo, tinha como argumen- apenas como perigosa, mas como de mau gosto, tos contra a prática “perigos [não especi�cados] vulgar, fruto de uma moda que, como todas as à saúde”, o peso de ser uma marca de�nitiva21 modas, há de passar um dia. no corpo e a imaturidade da �lha para cuidar Sobre esta categoria, “moda”, é interessan- do local perfurado. A solução para as a�ições te observar que a palavra traz em si a idéia de do pai zeloso foi procurar um cirurgião que algo passageiro, idéia compartilhada pela �lha. colocasse a jóia na menina. A preocupação de Ao mesmo tempo, “moda” ganha um tom pe- Cláudio fora reforçada, segundo a reportagem, jorativo, de algo que in�uencia os sujeitos para por um evento familiar. O primo de sua �lha, além de sua capacidade re�exiva e crítica, o que é Daniel Viana, colocara um piercing na língua, indicado pela noção de que um piercing poderia aos 17 anos, sem o conhecimento dos respon- trazer problemas a toda a família e não apenas às sáveis. Segundo Daniel, o pro�ssional “esterili- meninas. Sendo algo passageiro para Vânia, ela zou os instrumentos e me mostrou que a agulha não lhe dá valor, prevendo que o tempo dará cabo era descartável (...)” (Almeida 2004: 19), o que dos desejos das �lhas. A adolescente, contudo, lhe fez con�ar no processo. Contudo, segun- utiliza o mesmo argumento para tentar conven- do a repórter, ele teve “uma leve in�amação no cer a mãe de que os even tuais problemas também local” (Almeida 2004: 19), o que fez a mãe do seriam passageiros, pois a jóia pode ser retirada. rapaz, médica, determinar a retirada da jóia, Não creio, contudo, que se tratem dos mesmos alegando, segundo Daniel, que ele estava pro- “problemas”. Quando a adolescente compara penso a desenvolver um câncer na língua. O tatuagem e piercing, trazendo à tona a diferente natureza das práticas quanto à sua permanência, o que faz é elaborar uma re�exão sobre elas. Ela 21. O piercing não é de�nitivo. Segundo o piercer que se coloca em posição desprivilegiada para decidir trabalhava no estúdio pesquisado na Zona Sul, pou- cas semanas após a retirada da jóia, independente de sobre algo que pode marcá-la por toda a vida, quanto tempo ela permaneça no corpo, são su�cien- como a tatuagem, mas não para decidir sobre o tes para a oclusão do furo. Contudo, alguma marca piercing, por sua qualidade não-permanente. pode ser deixada na pele. cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 83-98, 2006 �� | A����� O����� No con�ito de gerações, são noções morais fosse o único. A cada nova tatuagem, contou de gosto (o vulgar e o modismo, por exemplo) que ele, a mãe reforça o desejo de que não se tatue parecem exprimir os prós e contras para piercings mais. Seu pai, por outro lado, foi mais enfático e tatuagens – e possivelmente outras práticas de na crítica ao �lho: disse-lhe que “quem pinta o modi�cação corporal, mas gostaria de sugerir corpo é índio”, indicando a velha diferenciação que o que está em jogo é, de fato, o grau de auto- entre hábitos civilizados, de bom gosto, e hábi- nomia dado ou negado aos �lhos. Quando o tos selvagens, que devem ser evitados. gosto adolescente e o gosto paterno entram em Moda ou “coisa de índio”, trata-se de algo con�ito (no caso paterno, relacionado a questões que não nos pertence e que, por isso, deve ser morais), lança-se mão dos “riscos à saúde” para abandonado. Trata-se, justamente, de uma coibir as intenções dos mais jovens. Em sujeitos diferença cultural. O pai do cliente observa a acima desta faixa etária, não há como proibir a prática como culturalmente mais alinhada com prática, mas a atuação repressiva da família opera outros povos, operando uma desvalorização da mais diretamente com as noções de gosto e de mesma. É justamente nesta falta de percepção risco, como que escondendo por trás do embate da tatuagem como uma nova prática corporal, a questão central da autonomia. alinhada com uma nova cultura do corpo, que Não se trata, aqui, de negar a preocupação os pais de adolescentes encontram argumentos dos pais quanto ao bem-estar de sua prole, nem para se oporem aos piercings, desvalorizando-os tampouco observar seu papel exclusivamente a partir da noção de que se trata de uma moda. sob a ótica da imposição de limites. Pelo contrá- Tenho sugerido aqui, contudo, que se trata me- rio, apontei neste trabalho como as mães, espe- nos de uma questão de “gosto” ou de “risco” do cialmente, podem apoiar as �lhas na decisão de que da percepção da família de que se tatuar é adquirir uma tatuagem. O que a reportagem apre- uma forma de exprimir individualidade e que senta é uma visão que os pais têm da juventude e o piercing constitui, neste processo de indivi- de modi�cações corporais que se tornaram popu- dualização e exercício de autonomia, espécie de lares recentemente, tanto quanto de seu próprio meio caminho andado. papel regulatório como pais, cuidando tanto da status saúde quanto do comportamento moral de seus Mudança de �lhos. Este papel da família não é recente, mas é um produto das transformações sociais entre os Em outras ocasiões, vi meninas com os re- séculos XVIII e XIX na Europa, popularizadas cém-completos 18 anos irem ao estúdio para nos preceitos higienistas (Donzelot 1986). serem tatuadas. Mônica foi ao estúdio da Tiju- Um cliente do estúdio pesquisado na Zona ca para se dar de presente de aniversário, como Sul, Francisco, indicou como viveu o processo contou, sua primeira tatuagem. Havia atingido familiar contrário à tatuagem. Morando sozi- à maioridade três dias antes. O namorado foi nho desde seus 19 anos, tatuou-se sem o co- acompanhá-la na aventura. Escolhera tatuar nhecimento de seus pais. O desenho gravado um leão por ser o seu signo astrológico. O ta- no braço era escondido pelas mangas de cami- tuador escolheu um leão �lhote como modelo sa. Quando se tornou mais con�ante de seu de- e teve a preocupação de torná-lo “um desenho sejo por novas marcas, Francisco tornou-se, ao feminino”, conforme disse a Mônica, ou seja, mesmo tempo, mais relaxado no encobrimento sem traços de agressividade. A moça escolheu a da tatuagem. A mãe, ao perceber o desenho, panturrilha como local a ser marcado, na parte disse-lhe que era bonito, mas que esperava que lateral, um pouco acima do tornozelo. cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 83-98, 2006
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