CESALTINA CADETE BASTO DE ABREU SOCIEDADE CIVIL EM ANGOLA: da realidade à utopia. Trabalho apresentado ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro como requisito parcial para obtenção do grau de Doutora em Sociologia. Banca Examinadora: Maria Celi Scalon (Presidente) José Maurício Domingues (Orientador) João Feres Jr. Carlos Serrano Marcelo Bittencourt Rio de Janeiro 2006 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. Para o Hugo, meu filho Com a esperança de um futuro melhor! Em memória de Mário Adauta e José Negrão Persegui, neste trabalho, o vosso ideal de novos modos de produzir conhecimento. Mukanda* de Agradecimento Seis anos se passaram desde 13 de Março de 2000, quando iniciei a pós-graduação em Sociologia. Muita coisa aconteceu desde então, e muitas foram as instituições e as pessoas que me estimularam, ajudando-me de diversas maneiras a enfrentar o desafio. Ao IUPERJ, o meu profundo reconhecimento pela oportunidade concedida, o ambiente de estudo, o apoio nas áreas de secretariado, biblioteca, computação. Agradeço aos professores o ambiente de abertura ao debate de ideias e à troca de experiências. Um especial “muito obrigada” (com aspas, professor...) ao meu orientador, José Maurício Domingues, pelo estímulo das suas provocações e pela infinita paciência em ler meus longos arrazoados... À CAPES pela outorga da bolsa de estudos para o curso de Doutoramento... À minha família, pelo amor, carinho e apoio que me permitiram superar os obstáculos e encontrar os caminhos para chegar até aqui... Aos amigos que, apesar das ausências e dos silêncios prolongados, me têm privilegiado com o seu apoio e solidariedade... Aos colegas das atividades acadêmicas e profissionais, pela partilha de conhecimentos e experiências que me permitiu crescer como pessoa. Em especial, aos parceiros do Instituto de Pesquisa Econômica e Social (A-Ip), pela amizade e cumplicidade num projeto que tem tudo para dar certo, apesar dos percalços de percurso... Entendo este trabalho como uma modesta contribuição para a busca dos caminhos do futuro no meu país, Angola. Se as suas fundações remetem à produção acadêmica, em especial do hemisfério sul, a construção da tese foi possível graças às opiniões dos participantes na pesquisa de campo. Tomara que tenha conseguido descodificar as mukandas de todos os que aceitaram fazer parte deste projeto, e a quem apresento os meus sinceros agradecimentos. Cesaltina Abreu. * “mukanda” significa mensagem em “angolês”! INDICE INTRODUÇÃO...............................................................................................................1 CAPÍTULO 1 – ANGOLA E A MODERNIDADE I – INTRODUÇÃO: para além da modernidade e da tradição........................................21 II – A TRAJETÓRIA ANGOLANA 1. Marcos históricos.........................................................................................................28 2. O ambiente institucional e o quadro jurídico angolano...............................................30 III. NOS CAMINHOS DA MODERNIDADE 1. Discutindo a Modernidade...........................................................................................38 2. “Fim da História”, “Choques de Civilizações” ou “Encontros Civilizacionais”?......39 3. Modernidade e civilização...........................................................................................44 4. Buscando subsídios na discussão sobre globalização..................................................47 5. Um quadro teórico desejável.......................................................................................49 CAPÍTULO 2: A SOCIEDADE CIVIL EM DEBATE I – INTRODUÇÃO.........................................................................................................52 II. O DEBATE ATUAL SOBRE SOCIEDADE CIVIL 1. Como a sociedade civil progressivamente se diferenciou do Estado..........................57 2. As tendências nos debates atuais sobre sociedade civil..............................................62 2.1. A corrente liberal......................................................................................................62 2.2. A corrente marxista..................................................................................................64 2.3 A corrente habermasiana...........................................................................................66 2.4. A sociedade civil e o socialismo real.......................................................................72 2.5. Discursos do oriente.................................................................................................74 2.6. África Subsahariana..................................................................................................76 2.7. A sociedade civil global...........................................................................................80 III. A VALIDAÇÃO DO CONCEITO............................................................................82 IV. A CONSTRUÇÃO DO PÚBLICO EM ANGOLA 1. O Debate sobre Sociedade Civil..................................................................................86 2. Os dilemas da Participação em Angola.......................................................................91 3. Subsídios para um quadro teórico da sociedade civil em Angola...............................93 CAPÍTULO 3 – OS DISCURSOS DA SOCIEDADE CIVIL I.INTRODUÇÃO...........................................................................................................96 II – O QUADRO TEÓRICO PARA ANÁLISE DOS DISCURSOS 1. A teoria do discurso....................................................................................................97 2. Aspetos metodológicos da discussão.........................................................................101 III – IDEOLOGIAS E UTOPIAS NOS DISCURSOS CONTEMPORÂNEOS SOBRE SOCIEDADE CIVIL. 1. Ideologias e utopias inscritas nas representações discursivas...................................106 2. Sociedade Civil no discurso neoliberal.....................................................................109 3. Desconstruindo o discurso dominante......................................................................116 4. A oposição à ideologia neoliberal ............................................................................119 IV – O QUADRO PARA A ANÁLISE DOS DISCURSOS SOBRE A SOCIEDADE CIVIL EM ANGOLA...................................................................................................124 CAPITULO 4 - A SOCIEDADE CIVIL EM ANGOLA: contribuições da pesquisa de campo. I. INTRODUÇÃO........................................................................................................132 II. IMAGENS, CONTORNOS E PAPÉIS DA SOCIEDADE CIVIL.........................136 1. Os entendimentos sobre sociedade civil...................................................................139 2. Critérios de inclusão ou de pertencimento................................................................142 3. Os Papéis atribuídos à sociedade civil......................................................................146 4. Relações dos participantes com a sociedade civil.....................................................148 5. Relações entre os constituintes da sociedade civil....................................................149 6. Dinamismo e visibilidade da sociedade civil............................................................150 7. Satisfação com o desempenho da sociedade civil.....................................................153 8. Influência do contexto angolano na sociedade civil..................................................154 III. ELEMENTOS DA CULTURA CÍVICA EM ANGOLA 1. Interesse e participação na política............................................................................155 2. Confiança nas pessoas e nas instituições...................................................................161 3. Ação coletiva.............................................................................................................165 3.1. Associativismo........................................................................................................165 3.2. Ajuda Mútua e Solidariedade.................................................................................168 3.3. Relações de Vizinhança..........................................................................................169 IV – EM JEITO DE CONCLUSÃO..............................................................................169 CAPÍTULO 5 – A SOCIEDADE CIVIL COMO MOTOR DA MUDANÇA I. INTRODUÇÃO.........................................................................................................173 II. O ESTADO E A SOCIEDADE CIVIL EM ANGOLA, SEGUNDO OS PARTICIPANTES NA PESQUISA.............................................................................176 III. INSATISFAÇÃO E MUDANÇA. Descodificando mensagens endereçadas à sociedade civil. 1 – Dimensionando e qualificando a insatisfação.........................................................180 2 – Pacificar os espíritos, articular plataformas: a consolidação da Paz como prioridade primeira..........................................................................................................................183 3 – Os caminhos da mudança........................................................................................187 4 - Combate à Pobreza...................................................................................................193 5 – Necessidade de democratização ou mera insatisfação?...........................................195 IV – ARTICULAÇÕES E MEDIAÇÕES 1. As Igrejas e entidades religiosas................................................................................197 2. Os Meios de Comunicação........................................................................................199 3. As Autoridades Tradicionais e o poder local.............................................................201 V. ENTRE O PODER DO ESTADO E A VULNERABILIDADE DA SOCIEDADE CIVIL EM ANGOLA....................................................................................................208 CAPÍTULO 6 – 212 PÁGINAS DEPOIS ... QUE CONCLUSÕES?......................213 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................234 BIBLIOGRAFIA ADICIONAL SOBRE MÉTODOS DE PESQUISA.......................250 SOBRE ANGOLA (Bibliografia não citada)................................................................250 ANEXO METODOLÓGICO (37 páginas) e MAPA de ANGOLA. Apresentação No momento de paz militar que se vive em Angola Após décadas de guerra civil, são frequentes as referências à sociedade civil e ao seu papel na reconciliação nacional e na construção da paz social, por parte de atores estatais e não-estatais. A tese foi concebida como uma contribuição para o conhecimento da sociedade civil em Angola, sua constituição e papéis. A metodologia combinou pesquisa bibliográfica e uma pesquisa de campo realizada em 3 cidades, Luanda, Benguela e Malanje, envolvendo 169 participantes distribuídos por 8 categorias de análise (associações de diversa natureza, ONG’s, meios de comunicação social, entidades religiosas, poder local, setor informal, mulheres e jovens). A tese defende um quadro teórico multidimensional em que a teoria da modernidade articulada mista, com alguns subsídios, se mostra a mais adequada à análise da relação de Angola com o tempo do mundo, e uma combinação das teorias da sociedade civil, enquanto vida associativa independente do Estado, do mercado e da família, e da esfera pública, chamando a atenção para a importância da institucionalização do acesso e uso efectivo dos direitos de liberdade de expressão, de reunião, associação, de proteção da privacidade e da integridade pessoal para o exercício formal da influência sobre os processos de tomada de decisão. Esta perspectiva permite, ainda, perceber o papel de diversos atores sociais que, integrando ou não a sociedade civil, constituem instâncias de intermediação e de diálogo entre os atores da sociedade civil e o Estado e o Mercado. INTRODUÇÃO A escolha do tema para a tese de doutoramento, a sociedade civil em Angola, surgiu na continuidade da reflexão iniciada no mestrado sobre o conceito de participação em Angola, mais especificamente em áreas de intervenção do Fundo de Apoio Social (FAS) no sudoeste angolano, que combinou pesquisa bibliográfica e pesquisa de campo. As conclusões daquele trabalho sugeriam que, apesar de todos os constrangimentos impostos pelo contexto angolano, particularmente a prolongada guerra civil e a prevalência de um regime político autoritário desde a independência e que pouco se democratizou realmente após as reformas dos anos 90, a centralidade da ideia de participação na construção da filosofia de intervenção do Fundo fez a diferença. O protagonismo reservado às instituições locais no processo de identificação, priorização, execução, funcionamento e manutenção dos projetos comunitários financiados, e a criação de interfaces de diálogo e concertação social com outros atores sociais, entre outros factores, permitiram superar as limitações intrínsecas à intervenção do próprio FAS e os impactos negativos da guerra civil, e tiveram como efeito o aumento da auto- estima nas comunidades pobres, uma maior visibilidade dos problemas que elas enfrentam e o envolvimento de outros atores sociais na busca de soluções. A partir destas constatações, impunha-se identificar os caminhos que permitissem aprofundar o conhecimento das representações sociais de atores angolanos, a insatisfação pelo estado das coisas no país, o desencanto em relação aos rumos imprimidos após a independência, a ausência de perspectivas de progresso e bem estar para todos num ambiente de acomodação e respeito pela diversidade cultural de Angola, e também o desejo de inserção nas oportunidades de desenvolvimento global, reivindicando maior inclusão no processo de tomada de decisão e criação de instâncias de participação. Por outro lado, a experiência profissional de 3 décadas de trabalho em diversos níveis da administração do Estado, das fazendas e comunidades de base ao gabinete do Primeiro Ministro, passando por serviços técnicos do aparelho ministerial e uma instituição pública de financiamento de projetos em comunidades carentes, orientava a procura desses caminhos numa esfera de relações sociais exterior ao aparelho do Estado e ao sistema político, na qual a criatividade e a inovação dos cidadãos e das organizações e grupos por eles criados, permitisse vislumbrar saídas para a crise que caracterizou, e ainda caracteriza, a realidade angolana. A aposta na capacidade criativa e na persistência das lutas dos atores sociais angolanos com vista ao alcance de uma sociedade mais justa e equitativa, conduziu à identificação da sociedade civil como objetivo de estudo, em busca de um espaço de intervenção e de participação com capacidade de influenciar as políticas públicas e as decisões em relação ao futuro. As questões identificadas para organizar a pesquisa desse estudo foram essencialmente as seguintes: faz sentido falar de sociedade civil em Angola? O que significa sociedade civil para os angolanos, qual o sentido mais comum atribuído ao conceito? Será que os diversos atores sociais angolanos atribuem sentidos próximos, convergentes ou semelhantes à sociedade civil? Qual o papel da sociedade civil na Angola de hoje? O potencial mobilizador nessa ideia de sociedade civil é mais ideológico ou mais utópico? Existem distinções nos sentidos inscritos nas opiniões entre as 8 categorias de análise (entidades religiosas, associações cívicas / culturais / desportivas, ONG’s/associações profissionais, meios de comunicação social, poder local, setor informal, mulheres e jovens) e entre as 3 cidades abrangidas pela pesquisa? Que razões (se as houver, ou melhor se for possível identifica-las) podem ser apontadas para essas distinções? 1. A concepção da tese, incluindo a discussão do enquadramento teórico do tema e o desenho da pesquisa de campo1, partiu do pressuposto que as ideias e as práticas relacionadas com a sociedade civil em Angola exprimiriam as experiências, as limitações e os constrangimentos herdados / derivados da história recente do País, designadamente a independência política em 1975 após séculos de dominação colonial, a instauração de um regime marxista-leninista durante a I República (1977 a 1991), e a prevalência de um estado de guerra civil (com alguns períodos de trégua pelo meio) desde a independência até Abril de 2002, quando foi assinado o Tratado de Paz entre o governo de Angola e a UNITA (União para a Independência Total de Angola), maior partido da oposição. A recente mudança no cenário político em Angola, com uma aparente solução militar para um conflito que persistia desde antes da independência em Novembro de 1975, deu lugar a uma nova etapa que se anuncia sob o lema da reconstrução e reconciliação nacionais. Embora ainda não pareça definido um programa que guie a transição do país 1 A pesquisa de campo é apresentada no Anexo Metodológico a esta tese. da guerra para a Paz, e muito menos um projeto de construção da nação angolana a partir das subjetividades coletivas constituídas após a independência num ambiente de guerra civil, parece que qualquer caminho a seguir pressupõe mudanças institucionais e de valores mais ou menos profundas, produzidas internamente, e também pressionadas pelas dinâmicas regionais e internacionais nas quais Angola se encontra inserida. Cansada de guerra e em busca da superação das inúmeras distorções herdadas do colonialismo, e não corrigidas após a independência, a sociedade angolana dá sinais de se constituir no principal motor dessas mudanças. Trinta anos após a independência política, os angolanos ainda não se sentem cidadãos no seu país, pelo menos não ainda de forma ampla, inclusiva. Basta lembrar a grande quantidade de pessoas ainda deslocadas das suas áreas de origem, ainda refugiadas em países vizinhos, desmobilizados de guerra, mutilados de guerra, orfãos e viúvas ainda não integrados na sociedade, para não ampliar a lista com as muitas comunidades “remotas”, o público primordial de Ekhe ou os sujeitos de Mamdani, sofrendo as consequências de um distanciamento não apenas geográfico, antes de não inclusão efectiva no processo de construção da nação. A sociedade angolana permanece refém de um passado recente, no qual o discurso político foi bipolarizado pelos dois protagonistas da guerra civil, a vida quotidiana militarizada, e a sociedade silenciada. E três anos após a assinatura do Acordo do Luena, um cessar-fogo assinado pelas mais altas patentes do exército angolano e das forças militares da UNITA numa demonstração que a chave para a solução do prolongado conflito angolano era militar, parece oportuno reflectir sobre o atual momento que o país vive. A opção por um modelo de desenvolvimento socialista, apresentada como inevitável dado o contexto da guerra fria no âmbito do qual Angola foi um dos palcos do confronto entre os ex-blocos capitalista e socialista, não só não corrigiu tais distorções, como contribuiu para exacerbar conflitos sociais e culturais, muitas vezes com base em argumentos étnicos ou raciais, resultantes da colonização e formação de um estado colonial pela anexação dos diversos reinos que existiam no espaço geográfico que hoje corresponde ao país Angola, com conseqüências políticas, sociais e econômicas evidenciadas pelo elevado nível de exclusão social e pela igualmente crescente desigualdade social, privilegiando uma pequena minoria e lançando a grande maioria da sua população numa situação de pobreza bastante acentuada.
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