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Sobre o domínio da natureza na filosofia da história de Theodor W. Adorno PDF

26 Pages·2011·0.33 MB·Portuguese
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S obre o domínio da natureza na filosofia da história de Theodor W. Adorno: uma questão para a educação Jaison José Bassani Alexandre Fernandez Vaz Universidade Federal de Santa Catarina Introdução O presente trabalho tem como objetivo apresentar elementos da con- cepção de domínio da natureza na filosofia da história de Theodor W. Adorno e, a partir deles, pensar algumas questões para educação, em geral, e a educação do corpo, em específico. A referência fundamental do estudo é a clássica obra escrita com Max Horkheimer durante a década de 1940, Dialética do esclareci- mento. Seguindo o rastro do pensamento dos autores, procuramos mostrar como o conflito do homem com a natureza simultaneamente expressa e produz a tendência de dominação da própria natureza, o que, por sua vez, se prolonga na dominação do homem pelo homem. Revista Brasileira de Educação v. 16 n. 46 jan.|abr. 2011 9 Jaison José Bassani e Alexandre Fernandez Vaz O fio condutor da análise, como uma Para cumprir o objetivo proposto, espécie de roteiro metodológico, é, no apresentamos, na primeira parte do entanto, um texto menos conhecido no trabalho, como Adorno compreende o contexto brasileiro, fruto de uma con- fundo duplo dos conceitos de história e ferência proferida por Adorno em 1932: natureza. Logo após, expomos o núcleo- A ideia de história natural (Adorno, 2003, -chave da filosofia da história de Ador no: p. 588-622; 1991, p. 103-134). a crítica à repetição do sempre-igual (Im- Ao tomarmos esse texto como mergleichen), tema que, como veremos, um fio condutor da exposição que se- é de forte inspiração benjaminiana. gue, buscamos uma porta de entrada Na terceira parte, concentramo-nos no à filosofia de Adorno por meio de uma conceito de segunda natureza. Por fim, a obra mais breve, mas que contém desti- título de nota final, exploramos algumas lados muitos dos problemas e questões consequências da concepção de domínio levantados em seus demais trabalhos, da natureza na filosofia de Adorno para considerando-a uma espécie de índice o campo educacional, em comentário por meio do qual é possível acessar os sobre a relação entre corpo, técnica e temas mais diretamente relacionados produção da consciência reificada. à problemática do domínio da natureza na filosofia da história. Nesse texto, Sobre o duplo caráter dos conceitos como indica Duarte (1993, p. 58), pode- de história e natureza em Adorno mos rastrear importantes pressupostos da concepção de domínio da natureza O conceito de domínio da natureza, que reaparecerá posteriormente, com elemento fundamental tanto na con- todas as suas nuanças, na obra escrita cepção de história e progresso, quanto com Horkheimer. Para Buck-Morss nas ideias sobre arte, cultura e filosofia (1981, p. 132), não apenas no que se de Theodor W. Adorno, tem sua formu- refere à noção de domínio da natureza, lação mais expressiva naquela que é a mas a Dialética do esclarecimento como um obra-chave do pensamento frankfurtia- todo pode ser lida como a efetivação no: Dialética do esclarecimento, livro escrito da ideia de história natural expressa por a quatro mãos com Max Horkheimer e Adorno já naquele trabalho de 1932. publicado pela primeira vez na metade No texto-conferência, encon- dos anos de 1940 (Horkheimer; Ador- tramos um conceito que representa no, 1985, 2003). Na crítica radical ao elemento-chave no pensamento e no processo imemorial de esclarecimento método de Adorno, e que constitui o (Aufklärung), a tese central defendida ponto fulcral de nossa investigação. pelos autores é a de que, no percurso Trata-se do conceito de segunda natureza da civilização – no qual a repressão à (zweite Natur). Tal categoria, como o natureza e a produção da subjetividade próprio Adorno esclarece, e conforme são constituintes e decorrências –, a se verá nas próximas páginas, constitui passagem do estágio do mito para o do fundamento essencial da concepção de esclarecimento é produtora da regres- história natural, no sentido da superação são a um novo estágio mitológico, cujo da antítese habitualmente atribuída ao conteúdo será ainda a dominação e a embate história e natureza. barbárie. 10 Revista Brasileira de Educação v. 16 n. 46 jan.|abr. 2011 Sobre o domínio da natureza… O tema do domínio da natureza de um conceito de história natural capaz está presente com maior ou menor de permitir a superação da oposição tra- força desde os trabalhos da juventude dicional entre os de história e natureza de Adorno até as obras de sua maturi- (Adorno, 1991, p. 104; 2003, p. 589). dade intelectual. Frequentes, embora Portanto, como ele mesmo declara, não por vezes de forma menos explícita, as se trata de entender tal conceito “[…] passagens nas quais a temática aparece en un sentido precientífico tradicional, mostram as preocupações do autor, já ni siquiera de historia de la naturaleza, desde o primeiro terço do século pas- al modo en que la naturaleza es el obje- sado, com as relações perversas entre o to de las ciencias de la naturaleza”. Ao humano e a natureza, e com o esforço mesmo tempo, complementa Adorno, sem limites do primeiro para dominar esses dois conceitos não são entendidos e operacionalizar a si mesmo e o seu “[…] como definiciones de esencia de entorno. Tanto em obras escritas ante- una validez definitiva, sino que persigo riormente ao período de redação da Dia- el propósito de llevar tales conceptos lética do esclarecimento, quanto naquelas hasta un punto en el que queden supe- da mesma época ou preparadas em mo- rados en su pura separación” (Adorno, mento posterior ao de sua publicação,1 1991, p. 104; 2003, p. 589). podemos encontrar claras referências Conforme afirma Buck-Morss à concepção de uma “dialética do es- (1981, p. 112-122), o próprio título da clarecimento” nesse processo, segundo conferência assinala o caráter dialético o qual, como dito anteriormente, o da abordagem de Adorno, expondo o controle e a manipulação da natureza, seu entendimento em relação aos dois condições necessárias para a civilização, conceitos e, sobretudo, indicando a se prolongam na dominação do homem forma como ele os emprega em seus pelo homem, e de cada indivíduo sobre escritos (inclusive nos da maturidade si mesmo. intelectual): como conceitos cognitivos, No que se refere aos textos da ferramentas críticas para a compreensão e juventude de Adorno, destaca-se espe- desmistificação da realidade. Ao mesmo cialmente, dentro dos objetivos desta tempo, cada conceito representaria a investigação, a conferência “A ideia de chave para a desmistificação e o enten- história natural” (Adorno, 1991, p. 103- dimento do outro: 134; 2003, p. 588-622). Ela representa a contribuição para a conhecida “Dis- La naturaleza daba la clave para cussão de Frankfurt”, o debate sobre o exponer la no identidad entre el historicismo que ocorria na universida- concepto de historia (como idea re- de daquela cidade e do qual já haviam gulativa) y la realidad histórica, del participado, entre outros, Max Scheler mismo modo que la historia propor- e Karl Mannheim (Buck-Morss, 1981, cionaba la clave para desmitificar la p. 119). O problema que se coloca para naturaleza. Adorno sostenía que la Adorno é o da fundamentação filosófica historia real pasada no era idéntica al concepto de historia (como pro- 1 Por exemplo, Adorno (1993, p. 209; 2003, 2127-2128, 8407 e 8431-8432; 1995b, p. 29 e greso racional) a causa de la natu- 45). raleza material a la que violentaba. Revista Brasileira de Educação v. 16 n. 46 jan.|abr. 2011 11 Jaison José Bassani e Alexandre Fernandez Vaz Del mismo modo, los fenómenos Si es que la cuestión de la relación “naturales” del presente no eran entre naturaleza e historia se ha idénticos al concepto de naturaleza de plantear con seriedad, entonces (como realidad esencial o verdad), sólo ofrecerá un aspecto respon- porque […] habían sido histórica- sable cuando consiga captar al Ser mente producidos. (Buck-Morss, histórico como Ser natural en su deter- 1981, p. 112-113, grifos do original). minación histórica extrema, en donde es máximamente histórico, o cuando consiga Ao insistir na imbricação entre captar la naturaleza como ser histórico história e natureza, mais especifica- donde en apariencia persiste en sí mis- mente na inter-relação dialética, na mo hasta lo más hondo como naturaleza. não identidade e, no entanto, na mútua (Adorno, 1991, p. 117; 2003, p. 604, determinação desses dois conceitos, grifos do autor) Adorno recusa-se a conceder-lhes – em oposição à ontologia heideggeriana, Essa crítica ao estabelecimento mas também a certa tradição hege- de um primado lógico e temporal en- liano-marxista, representada espe- tre os conceitos de natureza e história cialmente por Lukács – o estatuto de está presente de forma mais ou menos princípio ontológico (Buck-Morss, 1981, explícita no desenvolvimento posterior p. 113; Jay, 1988, p. 98). Para Adorno, da obra de Adorno. Embora não seja a partir do momento em que determi- possível neste trabalho abordar a ques- nada teoria estabelece a história ou a tão com maior profundidade, importa natureza como premissa ontológica, destacar que os contornos de tal crítica perde-se, com isso, como aponta Buck- se tornam mais delineados no livro Dia- -Morss (1981, p. 122-123), os significados lética negativa, em que Adorno radicaliza multidimensionais de cada conceito. O suas apreciações em relação, por um resultado, em ambos os casos, afirma a lado, à filosofia da história de Hegel, comentadora, é a justificação ideológica especialmente à ideia de uma história do existente, seja porque as condições universal que confirmaria a marcha sociais são entendidas como “naturais”, triunfal e soberana do Espírito Absoluto perdendo-se de vista seu devir histórico, e, por outro, à ontologia fundamental de ou ainda porque o processo histórico, Heidegger, ao seu anseio de tomar o Ser a partir da ideia de que há um télos a como princípio originário e absoluto. ser alcançado, é considerado essencial, No primeiro caso, trata-se do rechaço desprezando-se como simples contin- ao conceito hegeliano de história como gência o sofrimento dos indivíduos par- desdobramento racional da verdade e ticulares e a materialidade que compõe como realização progressiva da liber- a história; seja ainda porque a própria dade. Para Adorno, a identidade entre materialidade é ontologizada como es- o real e o racional presente no sistema sência em si mesma. Conforme sustenta hegeliano não é possível não por ques- Adorno, só é possível levar adiante a tões de “insuficiência teórica”, mas em ideia de uma história natural a partir de decorrência dos limites da realidade e uma perspectiva crítica, na medida em da própria razão: “ninguna Razón le- que se insiste na tensa relação entre gitimadora sabría volver a dar consigo estes dois conceitos: misma en una realidad cuyo orden y 12 Revista Brasileira de Educação v. 16 n. 46 jan.|abr. 2011 Sobre o domínio da natureza… configuración derrota cualquier preten- cínica. No entanto, não se precisa sión de la Razón” (Adorno, 1991, p. 73; negar com isso a unidade que sol- 2003, p. 555). Tal rechaço está ancorado da as fases e os momentos descon- na crítica de Adorno às concepções de tínuos, caoticamente estilhaçados, história como movimento ascendente da história, uma unidade que, a em direção a uma unidade sintética, a partir da dominação da natureza, um “resgate” ou reconciliação de uma se transforma em domínio sobre os totalidade “perdida”. Em uma palavra: homens e, por fim, em domínio so- na crítica às interpretações da história bre a natureza interior. Não há ne- como progresso. Para Adorno, assim nhuma história universal que con- como também para Max Horkheimer duza do selvagem à humanidade, e, sobretudo, para Walter Benjamin, mas há certamente uma que con- seus interlocutores mais próximos, a duz da atiradeira até a bomba atô- glorificação da história como categoria mica. (Adorno, 2003, p. 3344- 3345; suprema tem como consequência, em 2009, p. 266) termos filosóficos, a racionalização e a No que diz respeito à crítica a justificação do sofrimento e da violência Heidegger (2006), Adorno nutre uma que seu curso impõe aos indivíduos, em profunda desconfiança em relação ao sua particularidade, e à natureza. Se há intento daquele em Sein und Zeit, escrito progresso na história, como elemento em 1929, de estabelecer a historicidade articulador e unificador do caráter como essência ontológica da existência, disperso e caótico dos eventos históri- resolvendo, aparentemente, a disputa cos, o que de alguma forma valida o entre uma posição histórica e outra on- conceito de “história universal” – que tológica. Para o filósofo frankfurtiano, está na base tanto da filosofia hegeliana a tentativa de Heidegger de colocar-se e das ciências matemáticas de Kant, fora da divergência entre história e natu- quanto do desenvolvimento positivista reza revela-se, já na origem, um equívo- da ciência histórica (Adorno, 2003, co, uma vez que somente por meio de um p. 3343; 2009, p. 265) –, este só pode ser conceito de historicidade que se abstrai pensado, em face da vida atormentada e do sofrimento dos indivíduos particula- da monstruosidade do existente, num res e da materialidade, ou seja, por meio único sentido: como aumento crescente de um conceito a-histórico de história, seria do domínio e da violência contra a na- possível ontologizar a antítese história- tureza humana e inumana. Em um tom -natureza (Adorno, 2003, p. 3407-3408; muito próximo daquele das teses Sobre 2009, p. 297-298). Do mesmo ponto de o conceito de história de Benjamin (1977, vista, a filosofia de Heidegger conteria 1985), Adorno afirma que um elemento regressivo – “não se pode A história universal precisa ser sair da história senão por regressão” construída e negada. Depois das (Adorno, 2003, p. 2996; 2009, p. 97) – catástrofes passadas e em face das ao pressupor o Ser (ou a natureza, que catástrofes futuras, a afirmação de nesse caso constituem sinônimos) como um plano do mundo dirigido para o elemento imediato, “como o primun ab- melhor, um plano que se manifesta soluto no processo do mundo” (Duarte, na história e que a sintetiza, seria 1993, p. 63). De acordo com Adorno, Revista Brasileira de Educação v. 16 n. 46 jan.|abr. 2011 13 Jaison José Bassani e Alexandre Fernandez Vaz […] não menos ilusória é já a aquilo “[…] que sustenta [tragen] a questão de saber se a natureza se história humana […], o que nela há mostra como o elemento absolu- de substancial” (Adorno, 1991, p. 104; tamente primeiro, como algo pura 2003, p. 589;).3 Por outro, o significado e simplesmente imediato em face “negativo” do conceito de natureza, tal de suas mediações. Ela representa como Adorno o delimita, diz respeito ao aquilo que ela persegue sob a forma mundo natural ainda não transformado hierárquica do juízo analítico cujas pelo trabalho, ainda não incorporado premissas governam tudo o que se- pela história, não conhecido, em uma gue e repete assim o obnubilamen- palavra, não humanizado, e que repre- to do qual ela gostaria de escapar. senta uma ameaça, um fora de controle, (Adorno, 2003, p. 3407-3408; 2009, ao homem. Trata-se da natureza como p. 297-298) mito, o que “[…] está aí desde sempre” (idem, ibidem) e cujo destino será eterna- Não é apenas a relação entre os mente igual, sem que jamais se possa conceitos de natureza e história que dele escapar. A eterna remissão de é compreendida como dialética em A todo ser e acontecer à origem mágica e ideia de história natural, mas também a ancestral, a qual já contém em si a ex- própria constituição “interna” de cada plicação de tudo aquilo que virá – repe- uma dessas categorias, uma vez que, tição infinita de si próprio –, constitui a ao conterem em seu interior dois níveis característica fundamental do discurso antagônicos de significados, tanto natu- mitológico, e que será posteriormente reza quanto história se mostram como equiparado ao conceito de natureza,ou, conceitos dialéticos em si mesmos. pelo menos, a uma dimensão dele: Segundo Buck-Morss (1981, p. 122), cada qual possui um duplo caráter, um As representações míticas tam- aspecto ou significado “positivo” e outro bém podem se reduzir integralmen- “negativo”. Em relação ao conceito de te a relações naturais. Assim como natureza – embora Adorno advirta não a constelação de Gêmeos remete, ser possível determinar precisamente como todos os outros símbolos da seu significado por meio de definições dualidade, ao ciclo inescapável da prévias, mas somente por mediação na natureza; assim como este mesmo análise –, tem-se, por um lado, como polo “positivo”, a sua dimensão mate- 2004, p. 53). Nas palavras de Adorno (2003, rialista, concreta, substrato sobre o qual p. 2843-2844; 2009, p. 18): “Em verdade, todos os conceitos,, mesmo os filosóficos, se desenrola a história da humanidade;2 apontam para um elemento não conceitual porque eles são, por sua parte, momentos da 2 Esse polo “positivo” do conceito de natureza realidade que impele à sua formação – pri- também está presente no conceito adornia- mariamente com o propósito de dominação no de não idêntico, como “algo” irredutível da natureza. […] A reflexão filosófica asse- que, apesar da força do princípio de identi- gura-se do não conceitual no conceito”. dade da razão formalizada, subsiste na con- 3 Com o objetivo de manter a fluidez da es- ceituação da realidade concreta, dos entes crita, pequenas citações diretas das obras de particulares; como “[…] lembrança do não Adorno cujas traduções em espanhol foram conceitual enquanto pressuposição de todos consultadas serão vertidas, como neste caso, os conceitos, ou enquanto solo alimentício para o português, mantendo-se a referência e alvo de qualquer pensamento” (Türcke, à obra da qual o fragmento foi extraído. 14 Revista Brasileira de Educação v. 16 n. 46 jan.|abr. 2011 Sobre o domínio da natureza… ciclo tem, no símbolo do ovo, do razão calculadora, sob cujos raios qual provêm os demais, seu símbolo gelados amadurece a sementeira remoto; assim também a balança da nova barbárie. Forçado pela do- nas mãos de Zeus, que simboliza a minação, o trabalho humano ten- justiça de todo o mundo patriarcal, deu sempre a se afastar do mito, remete à mera natureza. […] Os voltando a cair sob o seu influxo, mitos, assim como os ritos mágicos, levado pela mesma dominação. têm em vista a natureza que se re- (Horkheimer; Adorno, 1985, p. 43; pete. Ela é o âmago do simbólico: 2003, p. 1153) um ser ou um processo representa- Modelar no que diz respeito à do pelo eterno porque deve voltar ambiguidade do conceito de natureza é sempre a ocorrer na efetuação do também a particular interpretação que símbolo. Inexorabilidade, renova- Adorno e Horkheimer fazem da obra de ção infinita, permanência do signifi- Homero, a Odisseia, a qual é tomada, no cado não são apenas atributos de to- contexto do livro, como um documento dos os símbolos, mas seu verdadeiro filosófico, que representa “um dos mais conteúdo. (Horkheimer; Adorno, precoces e representativos testemunhos 1985, p. 30-31; 2003, p. 1127-1128). da civilização burguesa ocidental” (idem, Aliás, não seria exagero dizer que p. 15-16 e p.1101-1102). O herói Ulisses essa forma de compreender a natureza, é mostrado em seu percurso de retorno como conceito que contém dois níveis de a Ítaca, sua terra natal, como o protótipo significados opostos, é levada ao paro- do indivíduo burguês (idem, p. 53 e 1177), xismo pelos autores da Dialética do escla- na medida em que as forças míticas e recimento, especialmente na abordagem os perigos que precisou enfrentar para do domínio sobre o ambiente natural retornar à sua pátria representariam as por parte do humano – mas também forças naturais que o humano precisou em relação ao domínio de si, daquilo vencer e dominar para se constituir que há de natureza em nós. Quando a como sujeito esclarecido. Ulisses vence natureza se contrapõe ao homem como as divindades que encontra em sua via- força mítica, é de advogar o controle e gem, as quais constituem uma ameaça o conhecimento sobre ela por parte da física e mortal para ele – tal como as razão e da Aufklärung; porém, quando o forças reais da natureza em relação ao controle da natureza adquire a forma ser humano –, não por ser fisicamente de dominação violenta e desmedida, mais forte, mas porque é astuto. Ele só Adorno e Horkheimer mostram que sobrevive à viagem justamente porque essa mesma razão, convertida em ins- se sabe fraco, exercendo o cálculo, o senhorio e a previsibilidade sobre si, trumento, se torna mítica: sobre seu próprio corpo, sua natureza Os homens sempre tiveram de interna – também fonte de perigos e escolher entre submeter-se à natu- ameaças para o eu em constituição –, reza ou submeter a natureza ao eu. como testemunha o episódio do canto Com a difusão da economia mer- das Sereias. À medida que seu navio se cantil burguesa, o horizonte som- aproxima das ilhas rochosas habitadas brio do mito é aclarado pelo sol da por esses seres meio peixe/ave, meio Revista Brasileira de Educação v. 16 n. 46 jan.|abr. 2011 15 Jaison José Bassani e Alexandre Fernandez Vaz mulher, cujo canto mágico é capaz de qual Ulisses se coloca, é perigo efetivo enfeitiçar os sentidos humanos, levando e mortal para o herói homérico. Para aquele que o ouve a se atirar no mar que Ulisses possa sobreviver e se cons- atrás dos seus encantos, Ulisses orde- tituir no oposto rígido da natureza, das na que seus remadores o amarrem ao divindades que enfrenta, é preciso que mastro do navio, de tal modo que possa se exponha bravamente à morte. Para ouvir o canto sedutor sem que se jogue que possa dominá-la impiedosamente, ao mar e pereça. Ao mesmo tempo, é preciso, primeiro, que se perca e se exige que seus comandados, que devem abandone à natureza: continuar remando, tapem os ouvidos com cera para que não ouçam nem o As aventuras de que Ulis ses sai canto daquelas fadas, nem os suplícios vitorioso são todas elas perigosas de seu senhor ordenando que o soltem. seduções que desviam o eu da traje- Na interpretação de Adorno e tória de sua lógica. Ele cede sempre Horkheimer, a passagem de Ulisses e a cada nova sedução, experimenta- seus comandados pela ilha das Sereias -a como um aprendiz incorrigível e representa uma espécie de condensação até mesmo, às vezes, impelido por de todo o percurso de desenvolvimento uma tola curiosidade, assim como do esclarecimento: “as medidas tomadas um ator experimenta incansavel- por Ulisses quando seu navio se aproxi- mente os seus papéis. “Mas onde ma das Sereias pressagiam alegorica- há o perigo, cresce também o que mente a dialética do esclarecimento” salva”: o saber em que consiste sua (idem, p. 45 e 1157-1158). Isto porque, identidade e que lhe possibilita conforme interpreta Gag ne bin (2003a, sobreviver tira sua substância da p. 51-55), a análise desse episódio permi- experiência de tudo aquilo que é te apreender alguns dos processos nucle- múltiplo, que desvia, que dissolve, ares que levam Horkheimer e Adorno a e o sobrevivente sábio é ao mesmo interpretar o esclarecimento como um tempo aquele que se expõe mais grande sistema de dominação: dominação audaciosamente à ameaça da mor- não apenas da razão sobre o mito, ou te, na qual se torna duro e forte seja, do medo ancestral do homem frágil para a vida. (Horkheimer; Ador no, diante da natureza e da morte pela ex- 1985, p. 56; 2003, p. 1182) plicação racional, mas também domínio da natureza externa pelo conhecimento Entretanto, podemos encon- científico e pela técnica e, do mesmo trar também nessa interpretação que modo, domínio da natureza interna pela Ador no e Horkheimer fazem do périplo repressão e pela educação. Finalmente, de Ulisses um momento “positivo” do ao considerarmos a condição subjugada conceito de natureza, no sentido expres- dos remadores diante de seu senhor – so anteriormente. Embora os autores Ulisses, o proprietário –, chegamos ao não “definam” de forma inequívoca essa domínio político-econômico: dominação dimensão, é possível entrevê-la na qua- do homem sobre o homem, de uns pou- lidade de instância que se contrapõe, cos sobre uma maioria. como momento de alteridade, como O mundo inextrincável e sem “outro” a ser suprassumido (aufgeho ben) – saída da natureza mítica, contra o superado e conservado ao mesmo 16 Revista Brasileira de Educação v. 16 n. 46 jan.|abr. 2011 Sobre o domínio da natureza… tempo – no percurso de constituição da ameaça é o esquecimento e a destrui- subjetividade. Contudo, mesmo nesse ção da vontade”. O lótus, espécie de caso a natureza não deixa de represen- narcótico, condena aqueles que provam tar perigo, prazeroso e ameaçador ao da sua doçura, como os marinheiros mesmo tempo, qual seja: o de retorno de Ulisses, a um “[…] estado primi- a um mítico passado pré-subjetivo, a tivo sem trabalho e sem luta na ‘fértil dissolução do sujeito em uma mera na- campina’” (idem, ibidem), sem vontade turalidade primária. Perigo que permanece alguma de partir desse lugar. Condena, à espreita a todo o instante, e que não consequentemente, à regressão a uma deixa esquecer que a constituição do fase anterior a todo e qualquer tipo ego (inclusive em sua forma danificada, de produção (trabalho), a um estado o eu petrificado e identificado somente supostamente idílico de reconciliação consigo mesmo) resulta, como lembra com a natureza e, portanto, de suposta Habermas (1990), do solapamento da- felicidade e ausência de qualquer carên- quele vínculo simpático – mas, ao mesmo cia e sofrimento, a uma protossexuali- tempo, homicida – com a natureza: “o dade. No entanto, advertem Adorno e medo de perder o eu e o de suprimir com Horkheimer, “esse idílio é na verdade a o eu o limite entre si mesmo e a outra mera aparência da felicidade, um esta- vida, o temor da morte e a da destruição, do apático e vegetativo, pobre como a está irmanado a uma promessa de feli- vida dos animais e no melhor dos casos a cidade, que ameaçava a cada instante a ausência da consciência da infelicidade” civilização” (Horkheimer; Adorno, 1985, (idem, ibidem). p. 44-45; 2003, p. 1155-1156). Antes de seguirmos com a exposi- Particularmente importante nes- ção dessa passagem sobre os comedores se contexto de apreensão da polifonia de lótus, talvez fosse interessante re- que tenta ser captada no conceito de tornar a A ideia de história natural, a fim natureza em Dialética do esclarecimento, identificar como Adorno estabelece o especialmente de seu aspecto “positi- duplo caráter do conceito de história, vo” que acabamos de mencionar, é a que, segundo nossa interpretação, tem interpretação que Adorno e Horkheimer íntima relação com a análise do mencio- fazem da passagem em que Ulisses e nado episódio da Odisseia. Para Adorno, seus remadores encontram os lotófagos. tal como podemos ler logo nas primeiras Aqueles que provam do seu alimento, o páginas do texto-conferência, o aspecto lótus, sucumbem tal como os que ouvem “positivo” do conceito de história reside o canto das Sereias ou aqueles que, se justamente na capacidade humana de tocados pela vara mágica da semideusa transformação, de transcendência das Circe, se transformam em porcos ames- imposições do ciclo mítico da natureza: trados. No entanto, ao contrário do que acontece no caso do embate com estas […] “historia” designa una forma e outras entidades mitológicas da nar- de conducta del ser humano, esa rativa homérica, os que comem o lótus forma de conducta transmitida não se encontram sob uma ameaça de unos a otros que se caracteriza mortífera: “[…] nenhum mal é feito a ante todo porque en ella aparece lo suas vítimas”, destacam Horkheimer cualitativamente nuevo, por ser un e Adorno (idem, p. 67 e 1203). “A única movimiento que no se desarrolla en Revista Brasileira de Educação v. 16 n. 46 jan.|abr. 2011 17 Jaison José Bassani e Alexandre Fernandez Vaz la pura identidad, en la pura repro- Horkheimer fazem desse episódio, an- ducción de lo que siempre estuvo ya teriormente interrompida: allí, sino uno en el verdadero carác- ter gracias a lo que en él aparece Mas a felicidade encerra a verda- como novedad. (Adorno, 1991, 104- de. Ela é essencialmente um resul- 105; 2003, p. 590) tado e se desenvolve na superação do sofrimento. É essa a justificação Essa promessa de transforma- do herói sofredor, que não sofre ção contida na práxis humana não é permanecer entre os lotófagos. Ele outra senão aquela feita pela própria defende contra a própria causa deles, a Aufklärung: a de desencantamento do realização da utopia, através do trabalho mundo, de dissolução dos mitos, da histórico, pois o simples fato de se destruição do animismo e de sua subs- demorar na imagem da beatitude é tituição pelo conhecimento racional, tal suficiente para roubar-lhes o vigor. como lemos em Dialética do esclarecimento. Mas ao perceber essa justificação, a Somente a razão seria capaz de guiar racionalidade, Ulisses entra forço- com nitidez e segurança a ação humana samente no contexto da injustiça. em direção ao “qualitativamente novo” Enquanto imediata, sua própria a que se refere Adorno. Tal promessa ação resulta em favor da domina- também é reafirmada por Ulisses ao re- ção. Essa felicidade “nos limites do nunciar à gratificação imediata de suas mundo” é tão inadmissível para a pulsões, ao não ceder à tentação – ao razão autoconservadora quanto a contrário dos seus remadores, “meno- felicidade mais perigosa de fases res” e “mais fracos” do ponto de vista posteriores. (Horkheimer; Ador no, da racionalidade – de comer a planta 1985, p. 67; 2003, p. 1204, grifos dos lotófagos e de permanecer preso a nossos) um mundo idílico sem carências, sem preocupações, angústia ou trabalho, Observa-se, na conferência de mas, simultaneamente, sem desejos, 1932, como assinala Buck-Morss (1981, subjetividade e memória. Somente p. 123), que o caráter “negativo” do con- renegando esse estado de aparente ceito de história não se deixa entrever, felicidade e de ausência de consciência em todas as suas nuanças, no texto em relação ao sofrimento é que Ulisses em questão. Trata-se da concepção pôde vencer mais esse desafio e avançar adorniana da história como repetição em direção à constituição de sua subje- do sempre-igual, do Immergleichen – tema tividade e da própria razão. Foi assim que é de forte inspiração benjaminia- que ele conseguiu despertar seus ma- na –, cujos contornos se tornam mais rinheiros que haviam comido o lótus e nítidos nas obras escritas em momentos transportá-los à força, “debulhados em posteriores, especialmente depois das lágrimas, para as naus”; foi como ele e experiências históricas do totalitaris- sua tripulação puderam, mesmo com o mo político e da barbárie racionalizada “coração amargurado” (Horkheimer; que assolaram o mundo nas décadas de Adorno, 1985, p. 67; 2003, p. 1205-1206), 1930 e 1940 e que tornaram pratica- prosseguir viagem. É o que podemos ler mente impossíveis, inclusive do ponto na sequência da análise que Adorno e de vista filosófico, as distinções entre 18 Revista Brasileira de Educação v. 16 n. 46 jan.|abr. 2011

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temas mais diretamente relacionados à problemática do domínio da natureza na filosofia da história. Nesse texto, como indica Duarte (1993, p.
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