SOBRE A LIBERDADE E A SUJEIÇÃO DAS MULHERES JOHN STUART MILL nasceu em Londres em maio de 1806. Seu pai, James Mill, era, naquela época, jornalista, mas depois tornou-se assessor e propagandista de Jeremy Bentham, e posteriormente funcionário civil de primeiro escalão na Companhia das Índias Orientais; sua mãe, Harriet Burrow, era filha de um zelador de asilo modestamente bem de vida. Mill era inteligentíssimo e recebeu de seu pai uma educação extraordinária; estudou grego quando tinha três anos de idade, e na pré-adolescência já era bom em lógica e fluente em economia, além de muito bem informado sobre literatura clássica e história antiga e moderna. O propósito de sua educação foi treiná-lo para ser o líder intelectual do Radicalismo Filosófico, o movimento por reformas políticas e administrativas organizado em torno de Jeremy Bentham e James Mill. Aos vinte anos de idade ele era tudo que seus mestres esperavam. Mas em 1826 sofreu um colapso nervoso e descobriu que não era mais um adepto das crenças dentro das quais fora criado. Dispôs-se então a reeducar a si mesmo, lendo os que se opunham à doutrina na qual fora educado, como Coleridge, Carlyle, os saint-simonianos, Comte e Tocqueville. Em 1830 apaixonou-se por Harriet Taylor, uma mulher casada e com filhos pequenos; a relação casta porém angustiosa entre eles foi mais um elemento em sua reeducação. Durante todo esse tempo, no entanto, ele escrevia para o jornal The London and Westminster Review, defendendo o programa político dos Radicais. Na década de 1840, Mill estabeleceu a base do pensamento avançado na Grã-Bretanha com Um sistema de lógica (1843) e Princípios de economia política (1848); entre 1859 e 1865 escreveu, mas não em todos os casos publicou, as obras pelas quais continua famoso. Entre elas Sobre a liberdade (1859), Utilitarismo (1861), Considerações sobre o governo representativo (1861) e A sujeição das mulheres (publicado em 1869), além de Três ensaios sobre religião, Capítulos sobre o socialismo e muito de sua Autobiografia, todos estes publicados postumamente. Mill trabalhou para a Companhia das Índias Orientais de 1823 a 1858 e se aposentou quando a companhia foi dissolvida, na esteira da Rebelião Indiana. Serviu como membro do Parlamento pelo distrito de Westminster, onde defendeu os direitos das mulheres, os direitos dos irlandeses e os direitos dos sindicalistas. Casou-se com Harriet Taylor em 1851, e após a morte dela, em 1858, passava seis meses por ano em Avignon, para estar perto de seu túmulo. Lá ele morreu, em 1873, e foi enterrado na mesma sepultura. ALAN RYAN é o diretor do New College, Oxford, e antes disso foi professor de Política na Universidade Princeton. É autor de The Philosophy of John Stuart Mill e de J.S.Mill, e o editor da edição da Penguin Classics de Utilitarismo e outros ensaios. Tem escrito amplamente sobre teoria política liberal, tanto no contexto histórico como no contemporâneo. PAULO GEIGER nasceu no Rio de Janeiro, em 1935. Formou-se em design pela Escola Superior de Desenho Industrial, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É editor de obras de referência e trabalhou como editor executivo, entre outras, das enciclopédias Delta-Larousse, Delta universal, Barsa, Mirador internacional e, entre outros, dos dicionários Koogan-Larousse, Caldas Aulete, Aurélio, Aulete digital. É ainda tradutor do inglês e do hebraico, do qual verteu para o português obras de Amós Oz e David Grossman. JOEL PINHEIRO DA FONSECA é economista e mestre em filosofia. Foi criador e editor da revista cultural Dicta&Contradicta. Escreve regularmente para diversas publicações, como as revistas Exame, Veja e Época e o jornal Folha de S.Paulo. Tem interesse pela intersecção entre o debate econômico e político e a discussão dos valores que devem nortear a sociedade. Sumário Cronologia Introdução — Alan Ryan Leitura adicional Uma nota sobre os textos SOBRE A LIBERDADE A SUJEIÇÃO DAS MULHERES Posfácio — Joel Pinheiro da Fonseca Notas Cronologia 1748 Jeremy Bentham nasce em Londres, em 23 de fevereiro. 1773 James Mill nasce em Logie Pert, Escócia, em 6 de abril. 1776 Declaração da Independência dos Estados Unidos da América vem a público em 4 de julho; publicação de A riqueza das nações, de Adam Smith. 1789 Bentham publica Introduction to the Principles of Morals and Legislation [Introdução aos princípios da moral e da legislação]; Queda da Bastilha, em 14 de julho. 1805 James Mill casa-se com Harriet Burrow, em 5 de junho; nascimento de Alexis de Tocqueville, em 29 de julho. 1806 John Stuart Mill nasce em Londres, em 20 de maio; em 14 de outubro, a batalha de Jena dá a Napoleão o domínio da Europa. 1807 Harriet Hardy nasce em Londres, em 8 de outubro. 1808 Começa a amizade entre James Mill e Bentham. 1809 J. S. Mill começa a estudar grego. 1815 A batalha de Waterloo põe fim à era napoleônica. 1817 James Mill publica History of British India [História da Índia britânica]. 1819 James Mill é nomeado para a Companhia das Índias Orientais; massacre de Peterloo. 1820 James Mill publica o ensaio sobre “Governo” na Encyclopaedia Britannica. 1823 J. S. Mill ingressa na Companhia das Índias Orientais. 1826 Harriet Hardy casa-se com John Taylor. 1832 Bentham morre, em 6 de junho; aprovado o primeiro projeto de lei da Reforma. 1835 Publicado o primeiro volume de A democracia na América, de Alexis de Tocqueville, resenhado por J. S. Mill. 1836 Publicado ensaio sobre “Civilização”; James Mill morre de tuberculose, em 23 de junho. 1838 Publicado ensaio sobre “Bentham”. 1840 Publicado ensaio sobre “Coleridge”; publicado o segundo volume de A democracia na América, resenhado por Mill. 1843 Publicação de Um sistema de lógica. 1848 Publicação de Princípios de economia política; são abortadas revoluções na França, na Alemanha e em grande parte da Europa Oriental; é publicado o Manifesto comunista por Karl Marx e Friedrich Engels. 1850 Um golpe de Estado põe no poder Luís Bonaparte (Napoleão III). 1851 Mill e Harriet Taylor se casam; publicação de Emancipação das mulheres. 1852 Ensaio a respeito de “Whewell sobre Filosofia Moral”. 1856 Mill nomeado examinador-chefe da correspondência com a Índia, na Companhia das Índias Orientais. 1857 Rebelião Indiana (março 1857-junho 1858). 1858 Extinção da Companhia das Índias Orientais; Mill se aposenta; morte de Harriet Taylor Mill em Avignon, em 3 de novembro. 1859 Publicação de Sobre a liberdade. 1861 Publicação de Utilitarismo e Considerações sobre o governo representativo. 1865 Publicação de Um exame da filosofia de Sir William Hamilton e de Auguste Comte e o positivismo; Mill é eleito membro do Parlamento pelo distrito de Westminster. 1867 Aprovado o segundo projeto de lei da Reforma; tentativa de Mill de aprovar o voto para as mulheres derrotada em segunda leitura. 1868 Mill perde sua cadeira na Eleição Geral. 1869 Publicação de A sujeição das mulheres. 1873 Mill morre em Avignon, em 6 de maio; Autobiografia publicada postumamente. 1874 Publicação de Três ensaios sobre religião. 1879 Publicação de Capítulos sobre o socialismo. Introdução ALAN RYAN Sobre a liberdade é um dos textos sagrados do liberalismo. A posição de A sujeição das mulheres na tradição feminista é mais questionada, porém a obra é universalmente aceita como uma das mais importantes declarações da abordagem liberal de questões de igualdade entre os sexos. Como outros textos similares, têm sido atacados, sem inibições, por ambos os lados do espectro político — a esquerda reclamando de que não são suficientemente radicais, e a direita de que o são radicais e imprudentes demais. Sejam justas ou não essas reclamações, o fato de que ainda são feitas demonstram o quanto esses ensaios continuam controvertidos, um século e meio depois de terem sido escritos. Poucos debates sobre tópicos como a descriminalização da prostituição, o controle de narcóticos, uma legislação preventiva contra o ódio racial ou religioso, ou o papel do Estado para nos proteger de nossa própria insensatez podem ir muito longe sem que o nome de Mill seja invocado. Mas esses ensaios são também obras importantes em sua própria época e seu próprio lugar, testemunhos das esperanças e ansiedades da Inglaterra em pleno período vitoriano, e das esperanças e ansiedades de John Stuart Mill e de sua esposa, Harriet Taylor, a mulher que Mill cita, para todos os fins e propósitos, como sua coautora. É com as vidas de John Stuart e de Harriet Taylor Mill que deve começar esta Introdução. O(S) AUTOR(ES) John Stuart Mill foi o filósofo em língua inglesa mais influente do século XIX.i Nasceu em Londres em 1806 e morreu em Avignon em 1873. Seu pai, James Mill (1773-1836), era um escocês de origem humilde ajudado em seu ingresso na universidade pelo proprietário de terras local, Sir John Stuart; ele estudou para o sacerdócio, mas, percebendo que não tinha inclinação para isso, aceitou o lugar que Sir John lhe ofereceu em sua carruagem para Londres e se tornou jornalista. Dois anos após o nascimento de seu filho, James Mill conheceu Jeremy Benthamii e David Ricardo (1771-1823), cujas ideias promoveu com vigor; em troca, Bentham sustentou James Mill financeiramente e assumiu um benevolente interesse por John Stuart. A carreira literária de James Mill floresceu, mas em 1819 ele foi designado para um posto na Companhia das Índias Orientais, a corporação comercial estabelecida no reinado de Elizabeth I que em fins do século XVIII governava a maior parte da Índia. Nos doze anos seguintes, ele subiu na hierarquia até se tornar o principal administrador do escritório da Companhia em Londres, além de líder dos chamados “Radicais Filosóficos”.iii O jovem Mill recebeu do pai uma educação excepcional. Começou a estudar grego com três anos de idade, e nos anos que se seguiram aprendeu história antiga, latim e literatura europeia, tornando-se um mestre em lógica e em economia antes de completar catorze anos. Essa educação é descrita vividamente em sua Autobiografia (1873), que conquistou um lugar — a par da República, de Platão, e de Émile, de Jean-Jacques Rousseau — como um dos mais conhecidos tratados filosóficos sobre educação.iv Quando ainda era adolescente, o jovem Mill estava sendo preparado para promover o programa de reforma política, social e administrativa defendido por James Mill e Jeremy Bentham. O que não está claro é como eles pretendiam que isso acontecesse. Certamente esperavam que se tornasse o líder do pensamento radical, mas não há evidência de que isso significava que ele deveria seguir uma carreira ativa na política ou no Parlamento. Mill seguiu os passos do pai ingressando na Companhia das Índias Orientais em 1823. Até 1858, quando o governo britânico tomou da Companhia para si a administração da Índia, na esteira da Rebelião Indiana de 1857, Mill passou sua vida profissional gerenciando os arranjos políticos de uma grande parte do vasto e distante subcontinente que nunca conheceu pessoalmente. Não se tratava de um trabalho intelectual ou emocionalmente árduo, e lhe ocupava apenas poucas horas, o que lhe deixava muito tempo para escrever. Conforme esperado, ele tornou-se um líder do pensamento radical e algo próximo a um sistema de educação superior de um homem só, com suas obras Um sistema de lógica (1843), Princípios de economia política (1848) e Considerações sobre o governo representativo (1861), oferecendo uma série de pensamentos avançados sobre temas filosóficos, econômicos e políticos. Mas, embora tenha correspondido às esperanças de seu pai e de Bentham, não foi exatamente da maneira que eles tinham pretendido. Por volta de seus vinte anos, Mill sofreu um colapso nervoso. Explicando as causas desse seu infortúnio muitos anos depois em sua Autobiografia, ele alegou que sua educação tinha falhado em dois aspectos: privara-o de emoções e tolhera sua vontade; ele temia ser como um dispositivo mecânico, construído segundo o projeto de seu pai, sem nenhuma força humana e independente de pensamento ou de ação. Felizmente, encontrou caminhos para corrigir essas deficiências. Procurou leituras contrárias às da doutrinação que recebia do pai: adotando como seu próprio o lema de Goethe de “multilateralidade”, lendo muitos poetas românticos, particularmente William Wordsworth; leu autores conservadores — com “c” minúsculo —, com atenção especial para Samuel Taylor Coleridge, que seu pai considerava um místico inescrutável; discutiu os méritos do socialismo com os seguidores de Robert Owen;v manteve relações amigáveis com os discípulos do socialista francês Henri de Saint-Simon;vi e, mais importante que tudo, apaixonou-se por Harriet Taylor. Harriet nasceu em 1807, filha de Thomas Hardy, um cirurgião, e sua mulher Harriet (nascida Hurst). Com dezoito anos de idade, casou-se com John Taylor, próspero farmacêutico que frequentava círculos unitaristas radicais; quando Mill a conheceu ela tinha dois filhos pequenos e estava prestes a ter seu terceiro e último filho. Embora estivesse tão profundamente apaixonada por Mill quanto ele por ela, o futuro dos dois não seria fácil. Fossem quais fossem as possibilidades, uma fuga romântica e uma vida em segredo não estava entre elas. Mill chegou a propor a ideia, mas a amedrontada Harriet respondeu que ele não devia jogar fora tudo que o tornava valioso para o mundo e, na verdade, para ela mesma. Após alguns anos de pungente infelicidade e incerteza, eles estabeleceram uma relação que desconcertou a maioria dos observadores na época e desde então, mas que os dois consideraram modelar. Para quem e de que exatamente seria modelo, não está tão claro. Na certa eles viam em sua relação um modelo de união de mentalidades sinceras, um relacionamento construído sobre uma atração que pode ter tido no início um forte elemento sexual, mas que foi na prática construída numa mútua identificação de cunho intelectual e moral. O marido de Harriet foi o herói não decantado dessa união; ele pediu apenas que os dois não fizessem nada que o levasse a parecer ridículo e aceitou com espantosa benevolência que sua mulher tivesse encontrado em outro homem uma satisfação intelectual e emocional que ele não lhe poderia oferecer. Os que comentavam o caso e que antipatizavam com Harriet Taylor acharam, é claro, que o marido estava muito bem sem ela, mas não há evidência de que ele mesmo pensasse assim. Essa relação não ortodoxa durou até a morte de John Taylor, em 1849; mesmo então, a preocupação em não propiciar fundamento para um escândalo os levou a não se casarem até 1851. Apesar de não haver a preocupação de transmitir uma imagem de respeitabilidade, seria quase impossível para eles viverem juntos sem se casarem. Sua vida de casados foi breve; ambos
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