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Sexo e Caráter PDF

251 Pages·2023·1.533 MB·Portuguese
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Sexo e Caráter - Otto Weininger A presente tradução fora realizada com base na versão de Ladislau Löb — do Alemão —, editada/revisada por Daniel Steuer e Laura Marcus. O objetivo desta tradução não é um emprego profissional, e fica eximido o tradutor, apesar de seu esforço, de exigências deste teor. É também necessário deixar claro que, no decorrer da leitura, poderá o leitor encontrar erros gramáticos, de sintaxe ou digitação, embora se deva considerar que o tradutor serviu-se de devida atenção — esta é uma iniciativa totalmente voluntária e de interesse puramente intelectual. “Sexo e Caráter” será apresentado a partir de seu Prefácio, seguindo-se para o Preparatório (parte primeira) e finalmente Parte Principal (parte segunda). Seus comentários iniciais — incluindo a nota do tradutor — e o Apêndix (adições e referências) não foram traduzidos. PREFÁCIO Este livro tenta alcançar uma nova e decisiva visão sobre a relação entre os sexos. Não pretendo listar o maior número possível de características discretas ou compilar os resultados das medições científicas e experimentos realizados até hoje, mas intento traçar todos os contrastes entre o Homem e a Mulher sob um mesmo princípio. É por isto que este livro se difere dos demais que abordam o tema. Ele não se limita a este ou aquele ideal, mas avança para um objetivo final; não acumula observações sobre observações, mas situa as diferenças intelectuais de ambos os sexos dentro de um sistema; não é sobre as mulheres, mas sobre a mulher. Aborda as coisas mais superficiais e comuns em seu ponto inicial, mas somente no sentido de interpretar todas as experiências concretas e únicas. Não se trata de uma “metafísica indutiva”, mas de uma progressão gradual para camadas psicológicas cada vez mais profundas. Minha investigação não se preocupa com especificidades, mas com princípios. Ela não despreza o laboratório, embora, ao lidar com problemas mais profundos, considere seus recursos limitados em comparação com o trabalho de auto-observação analítica. Um artista retratando uma mulher também pode transmitir características típicas sem demonstrar sua legitimidade apresentando figuras e números seriais a uma guilda de juízes experimentais. O artista não despreza a experiência, mas, pelo contrário, considera adquirir experiência como seu dever. No entanto, a experiência, para ele, é apenas o ponto de partida para o mergulho em si mesmo, o que na arte parece mergulhar no mundo. A psicologia usada em meu relato é completamente filosófica, embora seu método particular, que é justificado apenas por seu tópico pessoal, seja começar fora das experiências mais triviais. No entanto, a diferença entre a tarefa do filósofo e a do artista é apenas formal. O que é um símbolo para o último torna-se um conceito para o primeiro. A relação entre a expressão e o conteúdo é a mesma que existe entre arte e filosofia. O artista inalou o mundo para exalá- lo: para o filósofo ele exalou e ele deve inalar novamente. No entanto, há necessariamente algo de pretensioso em toda teoria, e assim, o mesmo conteúdo que aparece como natureza em uma obra de arte pode parecer muito mais duro e até ofensivo quando apresentado dentro de um sistema filosófico tal qual uma generalização condensada, como uma tese que está sujeita ao princípio da razão suficiente e que se propõe a fornecer provas. Nas partes em que meu relato é antifeminista — o que acontece em muitos lugares — relutarão os homens em concordar prontamente e de todo o coração: seu egoísmo sexual sempre os faz preferir ver a Mulher como eles querem que ela seja e como eles querem amá-la. Como não adivinhar a resposta que as mulheres darão ao julgamento que formei sobre o vosso sexo? De pouco servirá ao autor ilibar-se aos olhos do sexo feminino, em cujo estudo acaba por ir contra os homens: quem assume a maior e mais essencial responsabilidade, pois o significado profundo do trabalho excede o que pensam as próprias feministas. Minha análise chega ao problema da culpa, porque surge dos mais simples e óbvios fenômenos para aqueles pontos que não apenas oferecem uma visão sobre a natureza da Mulher e seu significado no mundo como um todo, mas que também abrem uma visão de sua relação com a humanidade e com as mais elevadas tarefas desta. É a partir desses pontos que se pode tomar uma posição sobre o problema da cultura e a contribuição da feminilidade para a totalidade dos objetivos mais elevados. E então onde os problemas da cultura e da humanidade coincidem, tentarei, portanto, não apenas para explicar, mas também avaliar: de fato, aqui explicação e avaliação coincidem por vontade própria. A investigação chega necessariamente a essa altura sem que a propusemos desde o início. Gradualmente reconhece a inadequação de toda a filosofia psicológica empírica nos próprios fundamentos da psicologia empírica. Isso não diminui seu respeito pela experiência, que, ao invés de ser destruída, é sempre mais apreciada se reconhecermos nos fenômenos — de fato as únicas coisas que podemos experimentar — quaisquer componentes que nos asseguram que eles não são as únicas coisas que existem e quando percebemos esses sinais que apontam para algo superior, situado acima dos fenômenos. A existência dessa fonte primária é confirmada mesmo quando nenhum ser vivo consegue alcançá-la. E este livro não descansará até que tenha levado seu leitor para a proximidade dessa fonte. Eu não ousaria aspirar tal meta num espaço tão estreito a partir do qual as diferentes opiniões sobre a Mulher e a Questão da Mulher têm colidido até recentemente. No entanto, o problema envolve todos os mais profundos mistérios da existência. Pode-se resolvê-lo, prática e teoricamente, moral ou metafisicamente, somente com a orientação firme de um(a) weltanschauung [visão de mundo]. Uma Weltanschauung — isto é, uma digna desse nome — não é algo que poderia vir a ser um obstáculo para descobertas particulares. Ao contrário, é a força motriz de cada descoberta particular que transmite uma verdade mais profunda. A Weltanschauung é produtiva em si mesma e nunca pode ser gerada sinteticamente, como todas as épocas que subscrevem a ciência meramente empírica acreditam, a partir de uma soma de conhecimento específico, por maior que seja. Somente os germes de uma visão tão abrangente tornam-se visíveis neste livro. Essa perspectiva está mais intimamente relacionada às visões de Platão, Kant e do cristianismo, embora eu tenha sido obrigado em grande parte a criar os fundamentos científicos, psicológicos e filosóficos, lógicos e éticos para mim mesmo. Há muitas coisas que não pude discutir detalhadamente e que pretendo explicar completamente em um futuro próximo. Ao referir-me precisamente a essas partes específicas do meu livro, faço porque coloco mais importância em reconhecer e aceitar o que eu tentei dizer sobre os problemas mais profundos e mais gerais do que aqueles que podem surgir de sua aplicação particular a questões de sexo feminino. Para a tranquilidade do leitor filósofo que se sente incomodado observando que os problemas mais decisivos e de longo alcance parecem colocados aqui ao serviço de uma questão especial, de uma dignidade inferior, devo especificar que participo de sua opinião. Acrescento, porém, que a questão específica do contraste dos sexos é mais que um fim, é um ponto de partida. De sua consideração, são obtidos dados importantes para os problemas cardeais da lógica, seus julgamentos e conceitos, bem como suas relações com os axiomas do pensamento, para a teoria do cômico, do amor, da beleza e do valor, para os problemas individualidade e ética, e as relações entre elas, enfim, para os conceitos de gênio, desejo de imortalidade e judaísmo. Naturalmente, discussões tão amplas ao final também beneficiam o problema específico, que entra em relações cada vez mais variadas à medida que aumenta o campo de investigação. Se essas considerações nos levam a mostrar quão pouca esperança a cultura pode ter para a intervenção das mulheres, se as deduções obtidas significam a completa desvalorização e até a negação da feminilidade, isso não significa que tenhamos aniquilado tudo o que existe, nem desprezado tudo o que tem valor em si mesmo. Eu teria que ficar horrorizado comigo mesmo se realmente fosse apenas um destruidor que não deixou nada intocado. As afirmações deste livro talvez sejam menos poderosas, mas quem for capaz de ouvir, poderá ouvi-las em outros lugares. O livro está dividido em duas partes: a primeira biológica e psicológica, a segunda psicológica e filosófica. Alguns podem pensar que teria sido melhor se eu tivesse dividido o todo em dois livros separados, um puramente científico e outro puramente introspectivo. No entanto, tive que me libertar da biologia para me tornar um psicólogo por completo. Meu tratamento de certos problemas psicológicos na segunda parte é bem diferente da abordagem de um cientista atual, e percebo que isso também coloca em risco a recepção da primeira parte por muitos leitores. No entanto, toda a primeira parte exige ser notada e julgada pela ciência, o que a segunda parte, com sua maior concentração na experiência interna, pode exigir apenas em alguns lugares. Como a segunda parte emana de uma perspectiva não positivista, muitos considerarão ambas as partes como não científicas (por mais firmemente que o positivismo seja refutado nessa parte). Por enquanto devo aprender a viver com isso na convicção de ter dado à biologia o que lhe é devido e reivindicado os direitos de uma psicologia não biológica, não fisiológica para todos os tempos. Talvez eu seja acusado de não fornecer provas suficientes em certos pontos. No entanto, isto me parece ser a menor fraqueza de minha investigação. O que “provar” poderia significar neste contexto? O que se discute aqui não é nem matemática nem epistemologia (esta última apenas em dois lugares), mas questões de ciência empírica, onde o máximo que se pode fazer é colocar o dedo no que é. Nessas áreas, o que normalmente é chamado de prova é meramente um acordo entre as novas experiências e as antigas, e não importa se os novos fenômenos são produzidos experimentalmente por um ser humano ou dados em estado acabado pela mão criadora da natureza. Deste último tipo de prova este livro fornece bastante. Finalmente, até onde posso julgar, a parte principal do livro não é aquela que pode ser compreendida e absorvida após uma única leitura superficial. Desejo declarar isso para informação do leitor e para minha própria proteção. Quanto menos eu repetia coisas velhas e conhecidas em ambas as partes (particularmente na segunda), mais eu queria apontar todas as coincidências quando me encontrava de acordo com o que havia sido dito antes e o que era geralmente reconhecido. Esse é o objetivo das referências no apêndice. Tentei reproduzir as citações com precisão e de uma forma que fosse útil tanto para leitores leigos quanto para especialistas. Por serem exaustivas, e para evitar que o leitor tropece a cada passo, essas referências foram relegadas ao final do livro. Meus agradecimentos ao professor Laurenz Müllner por seu apoio efetivo, e ao professor Friedrich Jodl pelo gentil interesse que demonstrou em meu trabalho desde o início. Sinto-me especialmente grato aos amigos que me ajudaram a corrigir o livro. Primeira Parte (Preparatória): Diversidade sexual — Introdução Todo pensamento começa com generalizações intermediárias e depois se desenvolve em duas direções diferentes: uma em direção a conceitos de abstração cada vez maior, que abrangem áreas cada vez maiores da realidade, registrando propriedades compartilhadas entre cada vez mais coisas, a outra em direção à interseção de todas as linhas conceituais, a unidade complexa concreta, o indivíduo, que só podemos abordar em nosso pensamento com a ajuda de um número infinito de qualificações e que definimos acrescentando à mais alta generalização, uma “coisa” ou “algo”, um número infinito de características distintivas específicas. Assim, os peixes eram conhecidos como uma classe de animais separada dos mamíferos, aves e vermes, por um lado, muito antes de serem feitas distinções entre peixes ósseos e cartilaginosos e, também, muito antes de se considerar necessário incluir peixes com aves e mamíferos dentro de um complexo maior através do conceito de vertebrado, e distinguir esse complexo maior de vermes. Essa autoafirmação da mente sobre as inúmeras semelhanças e diferenças que tornam a realidade tão confusa tem sido comparada à luta pela vida entre todos os seres. Nós nos afastamos do mundo através de nossos conceitos. Ao se deparar com um louco raivoso, a primeira coisa que se faz é segurá-lo de qualquer maneira para diminuir o perigo, e uma vez que isso é alcançado, restringimos seus membros até nos sentirmos relativamente seguros. Existem dois conceitos cuja origem se remonta às épocas mais antigas da humanidade, e dos quais esta começa a formar sua existência intelectual. Estabeleceram-se relações tênues entre eles, julgou-se necessário repetidamente separá-los com algumas variantes, acrescentou-se, removeu-se, estabeleceu-se limitações, excluídas mais tarde, como acontece da necessidade que surge de quebrar os grilhões de alguma velha lei coercitiva. Mas, em geral, acho que, como nos tempos antigos, prevalecem os dois conceitos a que me refiro: os conceitos de homem e mulher. Falamos de “mulheres” magras, definhadas, achatadas, musculosas, enérgicas, “mulheres” de gênio, “mulheres” de cabelo curto e voz grave, e de “homens” imberbes e tagarelas. Aceitamos até que existam “mulheres não-femininas”, “mulheres masculinas” e “homens” “não-masculinos”, “femininos”. Concentrando-se apenas em uma característica que é usada para atribuir uma pessoa a uma categoria sexual no nascimento, ousamos até combinar alguns conceitos com atributos que realmente os negam. Tal estado de coisas é logicamente insustentável. Quem não ouviu e opinou sobre discussões acaloradas sobre “homens e mulheres” ou sobre “a libertação das mulheres” em um círculo de amigos ou em um salão, em uma reunião científica ou pública? Nessas conversas e debates, “homens” e “mulheres”, numa ordem monótona, eram colocados em total oposição um ao outro tais como bolas brancas e vermelhas, como se não houvesse a menor diferença entre bolas da mesma cor. Nunca houve qualquer tentativa de discutir questões individuais como tal; e como cada um tinha apenas suas próprias experiências individuais, naturalmente não havia possibilidade de acordo, como sempre acontece quando coisas diferentes são descritas pela mesma palavra, quando linguagem e conceitos não coincidem. Será realmente verdade que todos os “homens” e todas as “mulheres” são totalmente diferentes uns dos outros, e que todos os que estão de ambos os lados da divisão, homens de um lado, mulheres do outro, são completamente iguais em número de estima? Isso é assumido, é claro, na maioria das vezes inconscientemente, em todas as discussões sobre diferenças sexuais. Em nenhum outro lugar da natureza existem descontinuidades tão gritantes. Encontramos transições contínuas entre metais e não-metais, compostos químicos e misturas, e formas intermediárias entre animais e plantas, fanerógamas e criptógamas, mamíferos e aves. Inicialmente, é apenas por uma necessidade prática muito geral, de uma visão genérica, que criamos divisões, estabelecemos limites à força e distinguimos árias separadas dentro da melodia infinita de todas as coisas naturais. Mas “o sentido torna-se absurdo, boas ações um incômodo” é tão verdadeiro para os antigos conceitos intelectuais quanto para as regras herdadas de comportamento social. Em vista das analogias citadas, podemos considerar improvável que na natureza tenha sido feito um corte limpo entre o masculinis de um lado e o femininis de outro, e que um ser vivo possa ser descrito simplesmente como residindo deste lado ou daquele lado de tal abismo. Mesmo a gramática não é tão rígida. Na controvérsia sobre a Questão da Mulher, o anatomista foi muitas vezes chamado para atuar como árbitro e realizar a controversa demarcação entre aquelas qualidades da mente masculina e feminina que são inalteráveis porque são inatas e aquelas qualidades que são adquiridas. (De qualquer forma, era uma ideia estranha fazer a resposta à questão da capacidade natural do homem e da mulher depender das descobertas do anatomista: como se, se todos os outros tipos de experiência fossem realmente incapazes de estabelecer qualquer diferença entre eles, um excesso de cento e vinte gramas de cérebro de um lado poderia ter refutado tal resultado). No entanto, anatomistas sóbrios, quando questionados sobre critérios que se apliquem sem exceção, seja em relação ao cérebro ou a qualquer outro órgão do corpo, sempre responderão que não é possível demonstrar diferenças sexuais constantemente recorrentes entre todos os homens por um lado e todas as mulheres do outro. Embora, dirão, o esqueleto da mão na maioria dos homens seja diferente do da maioria das mulheres, não é possível determinar o sexo de uma pessoa a partir de partes (isoladas), seja na forma esquelética ou preservadas juntas. com músculos, ligamentos, tendões, pele, sangue e nervos. O mesmo vale para o tórax, o sacrum e o crânio. E aquela parte do esqueleto que, na verdade, deveria mostrar fortes diferenças sexuais: a pélvis? Afinal, acredita-se geralmente que a pelve esteja adaptada para o ato do nascimento em um caso e não no outro. Mas mesmo a pélvis não pode servir como um determinado critério. Como todos sabem — e os anatomistas sabem um pouco mais a esse respeito — existem “mulheres” suficientes com uma pelve masculina estreita e “homens” suficientes com uma pelve feminina larga. Não há diferenças sexuais então? Talvez seja mais sábio no final não distinguir entre homens e mulheres? Como resolvemos esta questão? As velhas respostas são insuficientes, mas não podemos prescindir delas. No entanto, diante de tais insuficiências, é necessário buscar um novo caminho que nos permita uma orientação mais segura. I — “Homem” e “Mulher” Ao classificar a maioria dos seres vivos nos termos mais gerais e simplesmente chamá-los de macho ou fêmea, homem ou mulher, não podemos mais fazer justiça aos fatos. A inadequação desses termos é sentida mais ou menos claramente por muitos. O primeiro objetivo deste estudo é esclarecer as coisas a esse respeito. Juntando-me a outros autores que escreveram recentemente sobre fenômenos relacionados a esse tópico, tomo como ponto de partida a ausência de diferenciação sexual no estágio embrionário mais precoce de humanos, plantas e animais, conforme estabelecido pela história do desenvolvimento (embriologia). Em um embrião humano com menos de cinco semanas, por exemplo, é impossível reconhecer o sexo em que se desenvolverá mais tarde. Somente na quinta semana fetal começam os processos que irão, no final do terceiro mês de gravidez, desenvolver a genitália primitiva, originalmente compartilhada por ambos os sexos, em uma direção particular e, no devido tempo, produzirá um indivíduo que pode ser sexualmente definido em termos precisos[1]. Não descreverei esses processos em detalhes aqui. É fácil ver uma conexão entre a predisposição bissexual de todos os organismos, incluindo os mais elevados, e o fato de que mesmo na planta, animal ou humano mais monossexualmente desenvolvido, as características do outro sexo persistem sem exceção e nunca desaparecem completamente. Em outras palavras, a diferenciação sexual nunca é completa. Todas as características do sexo masculino, ainda que fracamente desenvolvidas, podem de alguma forma ser detectadas também no sexo feminino; e igualmente todas as características sexuais de uma mulher, por mais retardadas que sejam, estão de alguma forma presentes em um homem. Eles estão presentes no que é comumente chamado de forma “rudimentar”. Por exemplo, entre os humanos, nos quais nos concentraremos quase exclusivamente, mesmo a mulher mais feminina tem um delicado crescimento de penugem não pigmentada chamada “lanugo” no local onde os homens têm barba, e mesmo o homem mais masculino tem um complexo de glândulas incompletamente desenvolvidas sob seus mamilos. Essas coisas foram investigadas em particular na área dos órgãos sexuais e suas saídas, o “trato urogenital” propriamente dito, onde foi possível demonstrar em ambos os sexos todas as características do outro, de forma rudimentar, mas em completo paralelo. Essas observações dos embriologistas, colocadas lado a lado com outras, podem ser inter- relacionadas dentro de um sistema. Se seguirmos Häckel ao chamar a separação dos sexos de “gonocorismo”, primeiro teremos que distinguir entre diferentes graus de gonocorismo entre as diferentes classes e espécies. As diferentes espécies, não apenas de plantas, mas também de animais, contrastarão entre si de acordo com a quantidade de características latentes de um sexo no outro. Nesse sentido mais amplo, o caso mais extremo de diferenciação sexual, ou seja, o grau mais alto de gonocorismo, é o dimorfismo sexual. Esta é uma peculiaridade, por exemplo, de algumas espécies de isópodes em que a diferença na aparência externa entre machos e fêmeas é tão grande, e às vezes até maior do que entre membros de duas famílias ou gêneros diferentes. Assim, o gonocorismo entre vertebrados nunca é tão desenvolvido como, por exemplo, entre crustáceos ou insetos. No caso deles não há uma separação tão completa entre machos e fêmeas como no dimorfismo sexual, mas sim inúmeras misturas sexuais, incluindo o chamado “hermafroditismo anormal”; e entre os peixes há até famílias com hermafroditismo exclusivo ou normal. No caso dos humanos, o seguinte é indubitavelmente verdadeiro: Entre o Homem e a Mulher existem inúmeras gradações, ou “formas sexuais intermediárias”. Assim como a física fala de gases ideais — isto é, aqueles que seguem precisamente a lei de Boyle-Gay-Lussac (na realidade nenhum a obedece) — antes de passar a notar divergências desta lei em casos concretos, podemos também postular um homem ideal M e uma Mulher ideal W, nenhum existindo como tipos sexuais. Esses tipos não só podem como devem ser construídos. O tipo, a ideia platônica, não é apenas o “objeto da arte”, mas também o da ciência. A ciência da física explora o comportamento de corpos completamente rígidos e completamente elásticos, com plena consciência de que a realidade nunca lhe fornecerá um ou outro para confirmação. Os estágios intermediários que se estabelecem empiricamente como existentes entre os dois servem apenas como ponto de partida nessa busca por formas típicas de comportamento e, ao retornar da teoria à prática, são tratados e exaustivamente descritos como formas mistas. E, igualmente, há uma série de estágios intermediários entre o Homem completo e a Mulher completa, que podem ser aproximados, mas nunca são experimentados como tais na realidade. Deve-se notar que não estou falando apenas de uma predisposição bissexual, mas de bissexualidade permanente, nem apenas daqueles estágios intermediários entre os sexos, os hermafroditas (físicos ou psíquicos), aos quais todos os estudos desse tipo foram restritos até agora por razões óbvias. Nesta forma, então, minha ideia é inteiramente nova. Pois até hoje o termo “estágios sexuais intermediários” foi aplicado apenas aos estágios intermediários entre os sexos, como se, matematicamente falando, estes constituíssem um ponto de concentração particular e fossem algo mais do que apenas um pequeno trecho ao longo de uma linha de conexão entre dois extremos que são igualmente densamente ocupados em todos os pontos. Homem e Mulher, então, são como duas substâncias divididas entre os indivíduos vivos em diferentes proporções, sem que o coeficiente de uma substância chegue a zero. Pode-se dizer que na experiência empírica não há nem Homem nem Mulher, mas apenas macho e fêmea. Assim, não se deve mais chamar um indivíduo A ou um indivíduo B simplesmente de “homem” ou “mulher”, mas cada um deve ser descrito em termos das frações que possui de ambos, por exemplo: Onde sempre: Essa visão — como sugerida na introdução em termos mais gerais — pode ser apoiada por inúmeras evidências precisas. Pode-se lembrar de todos aqueles “homens” com pélvis feminina e seios femininos, barba faltante ou escassa, cintura marcada, cabelos compridos demais, todas aquelas “mulheres” com quadris estreitos[2] e seios pequenos, nádegas cadavéricas e gordura subcutânea nos fêmures, vozes roucas e bigode (para o qual há uma predisposição muito mais abundante do que geralmente se percebe, porque é claro que sempre é removido: não estou falando de barbas, que tantas mulheres desenvolvem após a menopausa), etc., etc., coisas que normalmente são encontradas quase sempre juntas na mesma pessoa, são conhecidas por todo clínico e todo anatomista prático por sua própria experiência, embora até agora não tenham sido coletadas em nenhum lugar. A prova mais abrangente do ponto de vista aqui defendido é fornecida pela ampla gama de variações nos números referentes às diferenças sexuais que são encontradas invariavelmente tanto em estudos individuais quanto entre vários levantamentos antropológicos e anatômicos dedicados à medição das mesmas. Em todos estes casos, os números dados para o sexo feminino nunca começam onde terminam os do sexo masculino, mas há sempre uma área central em que tanto homens como mulheres estão representados. Por mais que essa incerteza beneficie a teoria das formas sexuais intermediárias, ela deve ser sinceramente lamentada no interesse da verdadeira ciência. Até agora os anatomistas e antropólogos profissionais não tentaram nenhuma

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