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Saúde dos Antigos: Reflexões Gregas e Romanas PDF

229 Pages·2013·0.79 MB·Portuguese
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A S A Aúde doS ntigoS ReflexõeS gRegAS e RomAnAS Sumário 7 Apresentação 11 Os conceitos de saúde mental na medicina e na filosofia gregas dos séculos V e IV a.C. (com um breve panorama da Antiguidade tardia) Philip van der Eijk 33 Calcular a saúde: a saúde como equilíbrio de forças na tradição pitagórica Gabriele Cornelli 43 Ordem do corpo, ordem do mundo: aitia, tekmêrion, sêmeion, historion nos tratados hipocráticos do fim do século V antes de nossa era Catherine Darbo-Peschanski 55 Kairos e metron: a saúde da alma na therapeia do corpo Miriam Campolina Diniz Peixoto 67 As afecções do corpo e da alma: a analogia gorgiana entre pharmakon e logos Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho 87 A linguagem como pharmakon no Fedro de Platão Maria Aparecida Montenegro 95 Sócrates, o corpo, a morte e a tarefa do pensamento: um estudo do Fédon de Platão Anastácio Borges de Araújo Jr. 107 A relação entre a teoria da tripartição da alma e a teoria ético-política platônica Maria Dulce Reis 123 A relação corpo–alma no Timeu de Platão Karina Lucia Fabrini de Morais 135 A medicina e a filosofia prática em Aristóteles Fernando Rey Puente 153 Sabedoria e saúde do corpo em Epicuro Markus Figueira da Silva 163 Tradição e atualidade da parrêsia (“fala franca”) como terapia Edrisi Fernandes 181 O riso como sintoma: pontos de vista antigos (medicina, fisiognomonia, filosofia) Marie Humeau 203 Mistura das qualidades e determinação da saúde em Galeno: aspectos químicos e cósmicos Anne-France Morand 217 Cidade e saúde: Vitrúvio e a medicina filosófica Júlio César Vitorino Apresentação O tema da saúde do homem (corpo e alma) e da cidade ocupou uma parte significativa das reflexões dos antigos. Nas civilizações grega e roma- na encontramos uma multifacetada reflexão sobre a noção de saúde: da cosmologia à antropologia, da física à ética, da medicina à política, e ainda nas artes retórica e poética. Numa homologia estrutural, a saúde do ho- mem e da cidade apresenta-se como um reflexo da ordem e do equilíbrio do cosmo. Este tema mostra-se, assim, como um dos topoi da literatura clássica e expressão da preocupação dos antigos em compreender os dife- rentes domínios da vida sob o signo do equilíbrio, da boa ordem e da pro- porção. Em que medida a reflexão sobre esses temas, aliada à busca de um princípio que articula a existência do universo e a de tudo que nele vive, da natureza em geral e da natureza humana, e à explicação de seus proces- sos, de sua permanência no tempo e de suas transformações no espaço, pode ser expressa pela noção de saúde? Os campos semântico e lexical da noção de saúde remetem sempre às ideias de equilíbrio, de harmonia e de ordem, àquelas mesmas que os filósofos reconheceram no universo e em todas as coisas nele compreendi- das e que os oradores pretendiam estabelecer no microcosmo humano da cidade. Reconhece-se sua natureza dinâmica, a tensão que lhes é subja- 7 cente e a instabilidade do equilíbrio de suas partes. No dinamismo que lhes é próprio, passa-se de um momento ao outro da harmonia à desarmo- nia, da ordem à desordem, e vice-versa. Encontrar um princípio equivalia a encontrar o ponto de ancoragem a partir do qual o universo, a cidade e o homem se autoengendravam e tinham asseguradas sua permanência na mudança, sua unidade na multiplicidade, sua identidade na diferença, mantendo assim, de modo dinâmico e tenso, seu próprio equilíbrio. Quan- do os antigos, poetas, filósofos e médicos, precisaram definir em que con- sistia o estado de saúde para o homem e para a cidade, não hesitaram em reconhecer como noção-chave a de equilíbrio. Foi assim que a definiu Alcmeon de Crotona, filósofo e médico pita- górico, no célebre fragmento que inspirou sucessivas gerações da tradição médica e filosófica: Segundo Alcmeon, é o equilíbrio das potências, como o úmido e o seco, o frio e o quente, o amargo e o doce etc., que produz e conserva a boa saúde; é, ao contrário, a predominância de uma delas que pro- voca a doença e, quando duas dessas potências predominam, a morte se segue. A doença sobrevém de uma parte, no que concerne ao agen- te, em razão de um excesso de calor ou de frio, de outra parte, no que concerne à causa material, em razão de uma abundância ou de uma falta de alimento, e de outra parte, enfim, no que concerne aos luga- res, pelo fato <de afetar> seja o sangue, seja a medula, seja o cérebro. Essas partes podem também ser afetadas por causas externas, como certas qualidades das águas, certos climas, a fadiga ou uma violência sofrida, ou tudo o que disso se aproxima. Mas, para voltar à boa saúde, ela é a mistura harmoniosa das qualidades (Aécio, Opiniões, V, XXX, 1 = 24 B 4 DK). Ao definir a saúde como “equilíbrio das potências”, Alcmeon inaugu- ra, no âmbito da investigação cosmológica que caracteriza a filosofia ante- rior a Platão, uma investigação sobre o microcosmo humano. A saúde seria para o homem o equivalente da ordem e da harmonia do cosmo preconiza- da pela escola pitagórica, e seria vista como um dos fins que movem o ho- mem em sua existência no âmbito das reflexões éticas e antropológicas que viriam a constituir o horizonte último da reflexão filosófica nos séculos seguintes. A própria noção de felicidade (eudaimonia) seria, de um ponto de vista etimológico ou filosófico, expressão de um estado bem equilibra- do, conveniente. O vocabulário da felicidade ou da beata vita exprime a 8 A saúde dos antigos – Reflexões gregas e romanas ideia de ordem e justa proporção, de equilíbrio, as mesmas que, acredita- va-se, reinavam no cosmo, na natureza em sua diversidade de formas e sua permanente mudança. Os textos reunidos neste volume apresentam as mais variadas e insti- gantes abordagens do tema. No primeiro deles, Philip Van der Eijk percor- re as diferentes tradições da Antiguidade grega tomando como fio condu- tor as diversas acepções do termo “saúde” e, particularmente, de “saúde mental”. Ele mostra que o conceito de “saúde” não é monolítico, mas an- tes um termo plástico que admite diferentes compreensões e definições, indo da ausência de doença até a felicidade e o bem-estar mental. Seu texto serve como uma introdução geral ao tema que será, nos textos se- guintes, objeto de uma ampla e rica discussão. Nos textos seguintes, temos as contribuições de pesquisadores de di- ferentes áreas dos estudos clássicos: filósofos, historiadores, linguistas, li- teratos, médicos, arqueólogos, helenistas e latinistas. Esses textos versam tanto sobre a saúde do corpo como sobre a da alma, e, como não poderia deixar de ser no horizonte das culturas grega e romana antigas, sobre a saúde do cosmo político. Neles são abordados diversos aspectos relativos à investigação e à reflexão acerca da noção de saúde, aspectos ligados à doença e à saúde, sua etiologia, seu diagnóstico, sua sintomatologia, e con- sideradas suas manifestações físicas, psíquicas e psicofísicas. Da filosofia pré-socrática são examinadas as fontes do pitagorismo e do atomismo. Da sofística grega, as reflexões de Górgias de Leontino. As reflexões de Platão e de Aristóteles permitem-nos conhecer um pouco da rica reflexão levada a termo na antiga Academia e no Liceu. Na tradição do epicurismo grego e romano, temos os desdobramentos ulteriores da saúde do corpo e da alma, no quadro da qual vemos emergir uma therapeia da palavra. E, finalmente, as reflexões sobre a saúde no mundo romano, em que contamos com a contribuição de autores como Sêneca, Galeno e Vitrúvio. Do período ar- caico ao período imperial, da medicina hipocrática à de Galeno, diferentes tradições foram objeto da atenção dos autores aqui reunidos, com o intuito de iluminar nossa reflexão presente num diálogo extemporâneo com as tra- dições e os autores das civilizações gregas e romanas. Miriam Campolina Diniz Peixoto 9 Apresentação Os conceitos de saúde mental na medicina e na filosofia gregas dos séculos V e IV a.C. (com um breve panorama da Antiguidade tardia)1 pnpnpn Philip van der Eijk2 Introdução: mudando de perspectiva no estudo da medicina antiga A história da medicina como disciplina acadêmica tem se voltado há muito tempo para o estudo da enfermidade e do sofrimento humanos no passado e dos modos pelos quais indivíduos e grupos sociais reagem à doença. Tais “reações” geralmente refletem as crenças e teorias sobre a doença, o corpo e as práticas de cura correspondentes. Entretanto, como mostram a antropologia médica e a sociologia do cuidado de saúde e da ciência, tais crenças e práticas podem assumir um grande número de for- mas diferentes, com ramificações sociais, culturais e institucionais dife- rentes; e é importante tomar consciência de que o que passamos a com- preender por “medicina” ou mesmo “ciência” médica é apenas uma entre uma série de reações desse tipo. Essa variedade já começa no plano da experiência pessoal: aquilo que indivíduos ou grupos, em uma sociedade determinada, experimentam 1 Tradução de Marcelo P. Marques. 2 University of Newcastle, Inglaterra. 11 como dor, enfermidade, deficiência ou desconforto pode variar de um caso para outro. Todos sabemos o quanto os limiares de dor e o condicionamen- to social daquilo que é considerado tolerável quando se trata de desconfor- to ou aflição física ou mental são relativos: padrões “objetivos” não são fa- cilmente aplicáveis, certamente não no estudo do passado médico. Se consideramos todos os avanços no estudo da paleopatologia, apenas uma pequena porcentagem das doenças deixa vestígios nos registros arqueoló- gicos — e, enquanto esses vestígios podem nos permitir reconstruir, até certo ponto, as condições corpóreas de um certo povo, eles ainda nos di- zem relativamente pouco sobre o modo como os indivíduos experimenta- vam essas condições. Uma variação ainda maior ocorre no modo como os indivíduos com- preendem, conceituam, nomeiam, classificam, categorizam e sistematizam as experiências de doença. Até mesmo chamar algo de “doença” ou “enfer- midade”, de síndrome ou “deficiência” já é um ato de interpretação de fe- nômenos, observações ou sentimentos, e às vezes uma decisão cognitiva com consequências sociais, políticas ou financeiras de grande alcance, como sabemos perfeitamente em nosso mundo contemporâneo de políti- cas públicas de saúde e companhias de seguro-saúde — sem falar nas dife- rentes formas de determinar, definir e classificar as experiências de doen- ça, com graus sensivelmente diferentes de seriedade, curabilidade etc. Uma variação posterior surge quando se trata de agir com base em tais experiências, o que pode ir de tratar, curar, combater, esconjurar e ri- tualizar fenômenos patológicos até acolher, aceitar, racionalizar, resignar- se a eles ou mesmo considerá-los bem-vindos segundo uma determinada “visão de mundo” — além disso, todas essas reações diferentes podem as- sumir formas sociais e culturais variadas, o cuidado médico institucionali- zado sendo apenas um entre muitos fenômenos, como a medicina dos templos, os cultos de cura, as práticas de clãs ou de famílias, as associa- ções religiosas e outras coisas semelhantes. Essa tomada de consciência acadêmica renovada da pluralidade de atitudes com relação à doença, incluindo as ações associadas a ela, reflete- se na linguagem dos historiadores contemporâneos da medicina, que se tornaram cada vez mais cautelosos e agora preferem falar em “curadores” e “intervenção terapêutica” em vez de em “médicos” ou “medicina”, por cau- sa do viés biomédico ocidental implícito neste último termo. Isso também teve implicações importantes no estudo da saúde e da doença no mundo 12 Philip van der Eijk clássico e obrigou os classicistas e historiadores da medicina antiga a re- pensar tanto as razões como a metodologia para se estudar as medicinas grega e romana. Como indiquei na introdução de meu livro Medicina e fi- losofia na Antiguidade clássica, a medicina grega não é mais estudada prin- cipalmente por ter feito parte do miracle grec, ou mesmo exclusivamente por causa de sua influência formadora na “tradição médica Ocidental” — embora esses pontos continuem a ser importantes —, mas acima de tudo porque as reações dos gregos à saúde e à doença são fontes esclarecedoras de informação sobre o pensamento grego, seus valores morais e sua histó- ria social e cultural3. Tal precaução metodológica não é uma defesa do relativismo total: pode-se ainda sustentar teorias “racionalistas”, “ocidentais” ou “biomédi- cas” com relação aos fenômenos da doença, do corpo humano e da eficá- cia de certos modos de tratamento, tal como são compreendidos pela ciên- cia médica contemporânea; e pode-se adotar padrões correspondentes quando se trata de estimar e tentar avaliar ou medir o estado “objetivo” da saúde ou da enfermidade em uma época histórica particular4. Entretanto, resta ainda saber se se deve utilizar essa consciência no estudo do pensa- mento médico e da prática médica do passado e, se for o caso, como se deve fazê-lo. Os dias do positivismo, do progressivismo teleológico e do helenocentrismo certamente já se acabaram5, e a tendência que tinham as gerações anteriores de classicistas e historiadores da medicina a privilegiar certas “reações” mais que outras — tal como a “atitude” grega racional, por oposição às atitudes dos babilônicos e dos egípcios, que eram dispensadas como “irracionais” ou “pré-racionais” — ou a descrever reações a doenças no passado tomando como referência o quanto elas se aproximavam dos padrões atuais já foi amplamente abandonada. Pois, mesmo que algumas dessas reações pudessem ser consideradas mais bem-sucedidas do que ou- tras quanto à sua eficácia médica ou terapêutica, ou mais influentes em seu impacto sobre épocas posteriores, o historiador atual da medicina deve adotar uma posição neutra, descritiva e tratar essas reações diferentes em 3 Philip J. van der Eijk, Medicine and Philosophy in Classical Antiquity, Cambridge, CUP, 2005, 4-8. 4 Um exemplo clássico é Mirko D. GrmEk, Diseases in the Ancient Greek World, Baltimo- re/London, The Johns Hopkins Press, 1989. 5 Exceto, talvez, por D. Wootton, Doctors Doing Harm since Hippocrates, Oxford, OUP, 2006, que ainda está preso ao velho paradigma “progressivista”. 13 Os conceitos de saúde mental na medicina e na filosofia gregas dos séculos V e IV a.C.

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