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Revolução e história: das Teses ao Manifesto PDF

257 Pages·01.916 MB·Portuguese
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1 Edmundo Fernandes Dias Revolução e História: Das Teses ao Manifesto  Campinas, 2009 2 3 Se o problema de identificar teoria e prática se coloca, é neste sentido: de  construir  sobre  uma  determinada  prática uma  teoria  que, coincidindo e identificando­se com os elementos decisivos da própria prática, acelere o processo histórico em ato, tornando a prática mais homogênea, coerente, eficiente em todos os seus elementos, isto é‚ potenciando­a ao máximo; ou, dada certa posição teórica, de organizar o elemento prático indispensável para a sua colocação em ação. A identificação de teoria e prática é‚ um ato crítico, pelo qual a prática é demonstrada racional e necessária ou a teoria realística e racional. Eis porque o problema da identidade de teoria e prática se coloca   especialmente   em   certos   momentos   históricos   ditos   de transição, isto é‚ de mais rápido movimento transformador, quando realmente as forças políticas desencadeadas exigem ser justificadas para serem mais eficientes e expansivas, ou se multiplicam os programas teóricos que exigem serem eles também justificados realisticamente e enquanto demonstrem serem assimiláveis pelos movimentos práticos que só assim se tornam mais práticos e reais.1  O marxismo (...) não é de fato “uma doutrina a aplicar”, mas uma ciência a reconstruir.2 Chi si convien lacera ogni suspetto Ogni viltà convien che sai morta3 1   Gramsci, 1975, p. 1780. 2  Cerroni, 1978, p. 33. 3   Dante Alighieri, Divina Comédia, In Marx (1957). 4 5 Sem lágrimas no cenho duro, Junto ao tear, cerram os dentes: Alemanha tecemos teu sudário E, nele, a tríplice maldição. Tecemos, tecemos. Maldito o ídolo a quem rogamos No frio do inverno, na angústia da fome, Em vão cremos e o buscamos, Mas ele nos vende e engana.  Tecemos, tecemos. Maldito o rei, o rei dos ricos, Que não mitiga nossa miséria, Arranca­os o que suamos, E, como cães, nos manda matar. Tecemos, tecemos. Maldita seja a falsa pátria, Que nos é humilhação, Sega precoce de toda flor, Podre festim de vermes. Tecemos, tecemos. Range o tear, voa a lançadeira, Sempre tecemos. Velha Alemanha, Dia e noite, o teu sudário E, nele, a tríplice maldição. Tecemos, tecemos. Heinrich Heine, Canto aos tecelões1 1   In Buey, 2004, pp. 77­78. Homenagem à luta dos tecelões da Silésia. 6 7 Introdução: o sentido deste texto1 O que o texto de 1848 demonstra acima de tudo é que o pensamento e a atividade políticos não têm que inventar modelos, esquemas abstratos, mas expressar claramente o significado dos combates reais2. (...) conjuga, em uma única fórmula algébrica, a passagem da revolução democrática à revolução social, a passagem da revolução política à revolução econômica e cultural a passagem, enfim, da revolução nacional à revolução mundial3 a) As condições do texto Vivemos em um momento histórico em que o capitalismo e o pós­modernismo aparecem como vitoriosos, irresistíveis, únicos. Como pensar, nesta conjuntura, a validade   do  Manifesto?  Obra   execrada   pelos   dominantes   e   apaixonadamente proclamada pelas classes subalternas continua atual ou é uma peça arqueológica? Ela teria, afirmam muitos, apenas dois tipos de leitores: de um lado os historiadores da filosofia, da sociologia, da ciência política e, de outro, os eternos esquerdistas, sectários que não querem reconhecer a vitória do capitalismo. Bastou, contudo, a crise de outubro de 2008 para vermos o londrino Daily Telegraph escrever um dia após a constatação inarredável da crise que o famoso 13 de outubro “ficará na história como o dia em que o sistema capitalismo reconheceu ter fracassado”. Em New York manifestantes, diante de Wall Street, agitavam cartazes:  “Marx tinha razão!” e em Frankfurt, um editor anunciou que sua venda do Capital triplicara e em Paris o  Le Magazine littéraire, n° 479, anunciava um dossiê de trinta páginas examinando “as razões de um renascimento”. A Sueddeutsche Zeitung noticiou que já a quatro anos “O Capital”, publicado em três volumes pela editora Karl­Dietz, vem aumentando o número de vendas: 500 em 2005, 800 em 2006, 1300 em 2007 e em 2008, ainda em curso, já se venderam 1500 exemplares. O comentário é que não são números de best seller, mas demostram que é um “long seller”4. Outra vez? Claro, afinal Marx estava morto segundo anunciavam acadêmicos, políticos, jornalistas e outros intelectuais pós­modernos. Ironias da história? 1   As referências ao Manifesto serão feitas sempre a partir da edição organizada por Osvaldo Coggiola que fez também para essa edição uma competente apresentação historiográfica. 2   Châtelet, 1989, p. 247. 3   Bensäid, “A atualidade do Manifesto Comunista”. in Lowy e Bansäid, 2000, p. 137. 4   http://www.rassegna.it/articoli/2009/01/23/41860/in­memoria­di­guido ­ acesso 24­1­2009. 8 O Manifesto continua atual não apenas para os que querem construir uma nova sociabilidade para além da ordem do capital, mas, também, sem dúvida alguma, para os mais ferozes defensores da ordem atual. Só uma visão canhestra que confia cegamente em seus próprios mitos recusa como perversão, a análise estratégica do pensamento dos seus adversários, como se um general não tivesse a obrigação e a necessidade de conhecer a logística e a disposição do exército inimigo na frente de batalha. O Manifesto é “irrefutável nas suas verdades fundamentais” afirma Labica “e instrutivo mesmo nos seus erros”1.  É preciso afirmar que esta obra prima da política universal tem sido pouco lida e trabalhada no que tem de mais essencial: o convite radical ao deciframento da esfinge  capitalista  e,  a partir   daí,  de  sua  transformação.  Obra  que   ganhou materialidade plena ao encarnar a vontade coletiva de classes, de mulheres e homens concretamente existentes; quando uma subjetividade classista se torna objetividade. No início do século XXI assumimos a perspectiva de uma sociabilidade para além da ordem do capital. Devemos, para maior eficácia da teoria marxiana, responder ao desafio de compreender o sentido de suas afirmações e das tendências da história da luta de classe apontadas pelo Manifesto e que, mais do que nunca, guarda a atualidade de um laboratório classista e da formulação de movimentos de transformação do real; por outro lado, devemos também recusar a fácil tentação de ver nele “erros” que, veremos, expressam, na maioria das vezes, grosseiros anacronismos e também não repetir “verdades” memorizadas e repetidas, através das célebres citações sem que consigamos compreender o real2 como se a realidade objetiva da luta de classes pudesse ser reduzida a um discurso lógico bem articulado. E não foi, e recusou­se sempre ser uma nova “verdade” a ser reproduzida e cultuada. Aliados e adversários tentaram – com êxito variado ­ via um comportamento declamatório de cristalizar (vale dizer, esterilizar) sua elaboração apresentando­a como doutrina pronta e acabada, como um marxismo fossilizado. Texto seminal o  Manifesto do Partido Comunista  é, a um só tempo, a apresentação de uma visão global do processo histórico e de um projeto de transformação radical da sociedade, da constituição de uma nova sociabilidade, a “certidão de nascimento” do projeto de uma nova e radical historicidade que se expressa solidariamente em uma forma de pensar e praticar a política3. Radical consigo mesmo e impiedoso com os adversários, Marx afirmou suas teses sempre na 1   Labica, Les leçons du Manifeste, p. 4.  2   Negt, comentando o centenário da morte de Marx, critica o uso de “frases monumentais (seja pelos inimigos, como reflexão crítica, seja como pathos de legitimação vazia)”, “Karl Marx em 1991. Como ficam seus direitos de cidadania nesta cultura científica”, in Negt e Kluge, 1999, p. 247. 3   Liguori,   2007,   p.141:   “o  Manifesto  contém   uma   proposta   forte,   ainda   que sinteticamente expressa, de interpretação da realidade social e da história, que lança a própria luz muito além do seu tempo”. 9 busca do deciframento do real. Obra que requereu e necessitou sempre do aprofundamento da pesquisa e o colocar­se em questão e foi o momento inicial desse processo, nunca o ponto terminal. Texto de dupla natureza o  Manifesto  é uma apresentação do estado da arte (o conhecimento elaborado até aquele momento sobre as diversas historicidades européias) e, por outro, a apresentação de um projeto de criação de uma nova sociabilidade. O capitalismo ainda não tinha atingido o que Marx irá posteriormente chamar de modo de produção especificamente capitalista, mesmo na Inglaterra, onde o capitalismo tinha avançado mais os trabalhadores ainda não eram os modernos proletários industriais e a própria burguesia ainda não se configurara plenamente como tal. E, no continente, a luta era mais uma tentativa de revolução democrático­constitucional do que luta pelo socialismo. Nada disso diminui a importância dessa construção teórica. Marx afirmou, sabemos todos, não ter descoberto a existência das classes, embora seguramente, ele e Engels, foram muito mais além do que os autores burgueses tinham elaborado. Eles já tinham afirmado em A Ideologia Alemã que as classes só existiam como produto de relações   sociais   antagônicas   e   que   só   a   partir   destas   aquelas   podiam   ser compreendidas. Não cabe mais, após as Teses sobre Feuerbach, a consideração do homem abstrato, especificado nas teses da natureza humana, do homo œconomicus, das robinsonadas e na ideologia da mão invisível (do mercado) como regulador da sociedade1: abstrações formais caracterizadas pela deshistoricização radical do pensamento e que permitem à prática burguesa aparecer como teoria da sociedade. Contrariamente a isso Marx, no Manifesto começou, não obstante suas limitações, a construir um conjunto de abstrações reais que foram sendo desenvolvidas ao longo de sua prática teórico­militante. Não se trata de uma meta­narrativa, como afirmam os pós­modernos, mas a determinação de um processo. Não mais abstrações formais, mas abstrações reais. Início de um longo processo caracterizado pelo "pensamento científico efetivo” que “se desenvolve (...) na síntese sempre instável e desarmônica que reúne e separa o trabalho dos conceitos e a força das práticas"2. O Manifesto realiza uma ruptura teórica revolucionária com a historiografia, a política e a filosofia anteriormente praticadas.  As palavras de Mordenti (2007), militante que passou pela experiência de reconstrução de um partido comunista (Rifondazione) nos permitirá entender a profundidamente da obra marxiana e de seu impacto: Direi (...) que sou um comunista ocidental que falo do profundo de uma derrota, talvez do ponto mais baixo atingido pelo movimento operário italiano na sua história, um ponto marcado (...) pela derrota definitiva de 1   Châtelet, 1970, p. 111, sublinha que essa natureza humana não é senão “uma entidade abstrata fabricada para dar consistência à imagem da realidade humana que se tende a impor”. Trata­se de um discurso legitimatório que permite a um só tempo naturalizar a história e ganhar a subjetividade dos antagonistas. 2   Idem, p. 29. 10 qualquer referência à esquerda no partido que foi o herdeiro do PCI de Gramsci, e de outra parte, do correspondente engessamento institucional e / ou sectário do que restava à sua esquerda. Em suma, talvez pela primeira vez de modo explícito e proclamado a classe operária se encontra privada de qualquer projeto político que unifique setores significativos da classe e grupos intelectuais de quadros e dirigentes, isto é, de um Partido: nunca foi assim, quero sublinhá­lo, sequer sobre o fascismo. Exatamente esta situação, que configura um quadro político marcado, portanto, por uma total  subalternidade  ao capitalismo   realizado, torna absolutamente atual, e totalmente referente a nós, a questão de Spivak que até alguns anos nós, com um levantar de ombros condescendente, nos referíamos apenas aos lugares “atrasados” do movimento mundial: ”Pode o subalterno falar?” Aqui fica claro que a captura da subjetividade antagonista significa claramente a forma mais brutal da dominação, porque busca impedir nossa reflexão. Falamos, pois, do marxismo como uma atualidade insuprimível, uma condição de liberdade antes nunca sentido nesta proporção. Coloca­se assim a questão da revolução, matéria prima do Manifesto. b) A nossa leitura Embora o Manifesto seja apresentado como uma obra de Marx e Engels1 sua redação final, é da autoria de Marx. Este reconhecimento é consensual entre os pesquisadores. O documento­base,  Princípios do Comunismo,  foi elaborado por Engels. Sobre sua colaboração é elucidativa sua carta para Marx em 24 de novembro de 1847:  Pensa um pouco sobre a profissão de fé. Creio que seria melhor abandonar a forma de catecismo e chamar a coisa assim: Manifesto Comunista. Como é preciso fazer um relato histórico de certa extensão, a forma que [ele] teve até agora é bastante imprópria2.  O estilo dos dois documentos ajuda a perceber essa diferença:  Os Princípios chocam pelo rigor da argumentação: ele quer demonstrar, definir. Ele reage manifestamente contra o texto da profissão de fé que devia lhe parecer ainda muito sentimental. O Manifesto se distingue desde o início pela amplitude da exposição e pelo seu tom. Somos tomados por uma espécie de alento épico que dá à descrição de Marx um elam e uma força 1   Quando lançada a obra não apresentava autoria, nem de Marx, nem de Engels. Obviamente era um produto do movimento. Só quando traduzido para o inglês Georges Harney, do The Red Republican, em 1850, este atribuiu a autoria aos dois jovens filósofos alemães que reconheceram a paternidade da obra apenas no prefácio de 1872. Engels, em 1883 afirmou que a idéia principal fora de Marx o que não deve nos levar a ignorar a absoluta relevância dos Princípios do Comunismo.  2   Marx e Engels, 1947, p. 34. Engels refere­se aqui tanto à Profissão de fé, manifesto publicado em 1848.

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