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Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1. TECNOLOGIA E DEBATE SOBRE ALQUIMIA NA BAIXA ... PDF

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Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1. TECNOLOGIA E DEBATE SOBRE ALQUIMIA NA BAIXA IDADE MÉDIA TECHNOLOGY AND ALCHEMICAL DEBATE IN THE LATE MIDDLE AGES William Newman Departamento de História da Ciência, Harvard University Tradução Bruno Sousa Silva Godinho ______________________________________________________________________ Resumo: Trata-se de tradução para a Abstract: This is a translation into língua portuguesa do artigo “Technology Portuguese of the article: “Technology and and Alchemical Debate in the Late Middle Alchemical Debate in the late Middle Ages”, de William Newman, publicado Ages”, by William Newman, originally originalmente em 1989, pela Revista Isis, published in 1989 by the magazine Isis, A A journal of the History of Science Society. journal of the History of Science Society. Esta tradução visa oferecer ao público de This translation aims to provide the língua portuguesa referência bibliográfica Portuguese speaking public a critical crítica sobre a alquimia no período bibliographic reference on Alchemy in the medieval; o estudo de Newman propõe a mediaeval period; Newman’s study prática da alquimia, na Idade Média, proposes that the practice of alchemy, in conectada com os desenvolvimentos the Middle Ages, is connected to técnológicos, isto é, com a atividade technological developments, that is, with artesanal compreendida como processo de artisanal activity, understood as the process ação humana sobre o mundo e, por esta of human action over the world, and, razão, profundamente relacionada com a therefore, deeply related to scientific área do conhecimento ciêntífico. Como knowledge. As the author explains, explica o autor, os alquimistas medievais mediaeval alchemists understood their compreendiam o seu ofício não como office not as imitation of natural processes, imitação dos processos naturais, mas como but as technological activity in which the atividade tecnológica em que a arte human art would be able to rise above humana seria capaz de elevar-se acima da nature; for this reason, the alchemists have própria natureza; por essa razão, os become great innovators in the mediaeval alquimistas tornaram-se grandes scientific field.. inovadores do campo ciêntífico medieval. Palavras-chave: Ciência na Idade Média, Keywords: Science in the Middle Ages, Alquimia, Tecnologia. Alchemia, Technology. ______________________________________________________________________ Recebido em: 13/03/2016 Aprovado em: 13/03/2016 332 Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1. A atitude medieval em relação à tecnologia é um dos mais interessantes tópicos disponíveis para historiadores preocupados com a transição da antiguidade para a modernidade. Um debate considerável se concentrou nas reivindicações arrebatadoras feitas por Lynn White sobre o impacto social e cultural de mudanças tecnológicas feitas na Idade Média.1 Outros, como Guy Beaujouan e James Weisheipl, olharam para as classificações escolásticas das artes e ciência e encontraram uma apreciação maior pelo papel do artesão na sociedade do que fontes mais antigas revelam.2 A despeito do crescente consenso que a Idade Média forneceu fértil terreno para desenvolvimento tecnológico, um significativo debate contemporâneo tem sido ignorado, a saber, a disputa tardo-medieval sobre a importância da alquimia – se ela se encaixava em áreas legítimas do conhecimento e se suas alegações eram possíveis e mesmo legais.3 Por que deveríamos considerar este tópico dentro do contexto da tecnologia medieval? Como demonstrarei neste artigo, a alquimia forneceu um foco natural para a questão do poder artesanal do homem no mundo natural. A visão de mundo medieval era marcada por uma profunda divisão entre arte e natureza. Originando em parte de Aristóteles, e em parte de outras fontes gregas, latinas e árabes, essa visão colocou limites estritos nos limites conceituais da inovação técnica. O escritor monástico do século XII, Hugo de São Vitor, famoso por sua influente inclusão da tecnologia no campo das ciências, escreveu que “os produtos de artífices, embora não naturais, imitam a natureza, e no esboço através do qual imitam, eles expressam a forma de seu 1 WHITE JR., Lynn Medieval Technology and Social Change. Oxford: Oxford Univ. Press, 1962. Uma avaliação em geral positiva do trabalho de White pode ser encontrada em STOCK, Brian. Science, Technology, and Economic Progress in the Early Middle Ages. In: David C. Lindberg (org.). Science in the Middle Ages. Chicago: Univ. Chicago Press, 1978, p. 1-51. Para uma abordagem geral da tecnologia medieval, cf. GILLE, Bertrand, DAUMAS, Maurice (org.). Histoire générale des techniques. 5 vols. Paris: Presses Universitaires de France, 1962-1979, v. 1, p. 427-598, e v. 2, p. 2-139; e GIMPEL, Jean. The Medieval Machine. Nova Iorque: Holt, Rinehart & Winston, 1976. Sobre a aura mágica envolvendo a tecnologia na Idade Média ver EAMON, William. Technology as Magic in the Late Middle Ages and the Renaissance, Janus 70, 1983, n. 3-4, p. 171-212. Ver também HANSON, Bert. Science and Magic. In: LINDBERG, David C. (ed.). The book Science in the Middle Ages. Chicago: University of Chicago Press, 1976, p. 483-506. 2 BEAUJOUAN, Guy. L’interdépendence entre la science scolastique et les techniques utilitaires (XIIe, XIIIe, et XIVe siécles) (Conférence faite au Palais de la Découverte, ser. D, 46). Paris: Université de Paris, 1957; WEISHEIPL, James. The Nature, Scope, and Classification of the Sciences In: LINDBERG, David C. (ed.). The book Science in the Middle Ages. Chicago: University of Chicago Press, 1976, p. 473-474, 480; e WEISHEIPL, James. Classification of the Sciences in Medieval Thought. Mediaeval Studies, v. 27, 1965, p. 54-90. Ver também LEGOWIZC, Jan Le problème de la theorie dans les artes illiberales et la conception de la science au moyen âge. In: UNIVERSITÉ DE MONTRÉAL. Arts libéraux et philosophie ay moyen âge: Actes du quatrième congrès international de philosophie médiévale. Montreal: Institut d’Etudes Médiévales, 1969, p. 1057-1061. 3 Sobre a questão da legalidade neste contexto, ver JOHANNES CHRISIPPUS FANIANUS. De iure artis alchemiae... In: MANGET, J.J.. Bibliotheca chemica curiosa, v. 1. Genebra: s. e., 1702, p. 210-216. 315 Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1. exemplar, que é a natureza”. Aqui, Hugo está apenas ecoando a convicção da antiga filosofia grega que os vários ramos das “artes mecânicas”, o que nós chamaríamos de tecnologia, foram originalmente aprendidas copiando processos naturais. Como ele também escreve, “o trabalho humano, por não ser a natureza, mas apenas imitação dela, é adequadamente chamado mecânico, isto é, adulterado”.4 A visão pejorativa de que as artes mecânicas derivavam seu nome da palavra grega para adultério (moicheia) foi, por sua farsa, evidentemente difundida no ocidente latino5 Embora o homem pudesse copiar a natureza através da arte, seus produtos . – apesar de atrativos – jamais poderiam ser idênticos aos seus modelos naturais. Hugo de são Vitor foi um dos escritores apreciativos a considerar as “artes adúlteras”, entre as quais agrupou “confecção de tecidos, armamento, comércio, agricultura, caça, medicina, e teatro”6, mas ele também considerava que elas nasciam de – e estavam limitadas a – imitações da natureza. Alquimistas latinos geralmente nem sempre se preocupavam em invalidar o princípio enunciado por Hugo de São Vitor; pelo contrário, poucos trabalhos alquímicos medievais falham em fazer deferência à noção de que “a arte imita a natureza”. Mas autores alquímicos, 4 HUGO. The Didascalicon of Hugh of Saint Victor, org. e trad. Jerome Taylor. Nova Iorque: Columbia Univ. Press, 1961, p. 51, 55-56 (todas as citações do Didascalicon de Hugo são da tradução inglesa de Taylor). Taylor sugere que a representação de Hugo da relação entre arte e natureza é retirada do comentário de Calcídio sobre o Timeu. Ver também, e.g., Aristóteles, Meteorologica, 381b6-7; Phisycs, 199a15-17. Demais fontes são exploradas em FLASCH, Kurt. “Ars imitatur naturam”. In: HIRSCHBERGER, Johannes (ed.). Parusia: Studien zur Philosophie Platons und zur Problemgeschichte des Platonismus. Frankfurt: Minerva, 1965, p. 265-306. Stock encontrou a inclusão de Hugo de São Vitor das sete artes mecânicas entre as tradicionais liberais “em um primitivo Ysagoge in theologiam, em uma explicação de Marciano Capella, e num comentário da Eneida atribuído a Bernardo Silvestre”: STOCK, Brian. Science, Technology, and Economic Progress in the Early Middle Ages. In: David C. Lindberg (org.). Science in the Middle Ages. Chicago: Univ. Chicago Press, 1978, p. 45-48. Ver também OVITT JR., George. The Status of the Mechanical Artes in Medieval Classifications of Learning, Viator, v. 14, 1983, p. 89-105, e WHITE JR., Lynn. Cultural Climates and Technological Advance in the Middle Ages, Viator, v. 2, 1971, p. 171-201, esp. p. 196-197, onde a influência positiva do Didascalion de Hugo é discutida. 5 A crença de Lynn White que essa etimologia espúria “deveria ter tão pequena influência no ocidente” (“Cultural Climates”, cit. n. 4, pp. 192-193) é contrariada pelos vários exemplos coletados por STERNAGEL, Peter. Die artes mechanicae im Mittelalter, vol. II de Münchener Historische Studien, Abteilung Mittelaterliche Geschichte. Kallmünz über Regensburg: Michael Lassleben, 1966. Dentre estes encontramos o escritor monástico do século IX, Martim de Laon, que provavelmente originou essa derivação de mechanica, a figura dos séculos IX e X, Remígio de Auxerre; a classificação anônima de Bamberger das ciências datando do início do século XII; os escritores do século XII, Ricardo de São Vitor, Bernardo Silvestre, e o canonista Hugúcio; um comentário anônimo de Perihermeneias, de Aristóteles; e autores do século XIII como Rodolfo de Longo Campo (c. 1216), Vicente de Beauvais, Alberto Magno, Johannes Balbi (c. 1286), Engelbert de Admont (fl. 1250-1331); ver pp. 45-46, 89-91. Sternagel mantém que a sociedade erudita gradualmente desvalorizou as artes mecânicas entre o começo do século XII e meados do século XIII; os próprios artesãos estavam, é claro, fazendo progressos tecnológicos reais. 6 HUGO. The Didascalicon of Hugh of Saint Victor, org. e trad. Jerome Taylor. Nova Iorque: Columbia Univ. Press, 1961, p. 74. 316 Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1. diferentemente daqueles da tradição escolástica, estavam dispostos a argumentar que a arte humana, mesmo que aprendida pela imitação de processos naturais, podia reproduzir com sucesso produtos naturais ou até mesmo superá-los. Desta forma, os alquimistas da Idade Média desenvolveram uma articulada filosofia da tecnologia, na qual a arte humana é elevada a um nível de apreciação difícil de ser identificado em outros escritos até o Renascimento. O grau até o qual os alquimistas medievais e seus adeptos foram forçados a desenvolver suas visões positivas sobre o poder da tecnologia em função de salvaguardar sua arte do cada vez mais hostil público da Baixa Idade Média é realmente impressionante. Esse artigo tentará traçar o debate sobre alquimia desde sua concepção na segunda metade do século XII até uma crise definitiva no primeiro quartel do século XIV.7 Debate sobre Alquimia no século XIII A alquimia apareceu pela primeira vez no ocidente latino por volta de meados do século XII, quando Roberto de Ketton traduziu De compositione alchemiae de Morienus do árabe para o latim. Entre o tempo da tradução de Roberto e o fim do século XIV, uma enorme quantidade de literatura alquímica apareceu em latim, muito dela de caráter original. Apesar disso, o currículo universitário da Idade Média escolheu não incorporar a alquimia, assim como ela não foi ensinada em nenhuma instituição de ensino até o início do século XVII.8 Embora muitos trabalhos alquímicos medievais tenham sido escritos por autores escolásticos, usando seu estilo caracteristicamente seco e ordenado de exposição, os escolásticos efetivamente relegaram a alquimia à categoria de marginalidade ao negarem status universitário. 7 Esse tópico foi abordado de forma breve e um tanto a-histórica por HOOYKAAS, Reijer. Religion and the Rise of Modern Science. Edimburgo: Scottish Academic Press, 1972, p. 55-58. Uma sinopse mais útil ignora a influência de Avicena: CRISCIANI, Chiara. La ‘quaestio de alchimia’ fra duecento e trecento, Medioevo: Rivista di Storia della Filosofia Medievale, v. 2, 1976, p. 119-168. O útil estudo de Crisciani sobre um sistemata alquímico dos anos 1330 encontra-se fora do recorte temporal deste artigo: CRISCIANI, Chiara. The Conception of Alchemy as Expressed in the Pretiosa Margarita Novella of Petrus Bonus of Ferrara, Ambix, v. 20, 1973, p. 147-162. 8 Para Roberto de Ketton, ver HALLEUX, Robert. Les textes alchimiques: Typologie des sources du moyen âge occidental. Turnhout, Bélgica: Brepols, 1979, fasc. 39, p. 49, 70; este trabalho contém, de longe, o melhor tratamento disponível sobre a historiografia da alquimia medieval como um todo. Alguma controvérsia ainda existe sobre a genuinidade do texto de Morienus e sua atribuição a Roberto; ver RUSKA, Julius. Zwei Bücher de compositione alchemiae und ihre Vorreden, Archiv für die Geschichte der Mathematik, der Naturwissenschaften, und der Technik, v. 11:, 1928, p. 28-37; e STAVENHAGEN, Lee. The Original Text of the Latin Morienus, Ambix, v. 17, 1970, p. 1-12. Sobre a integração da alquimia nas universidades alemãs durante a Revolução Científica, ver HANNAWAY, Owen. The Chemists and the Word: The Didatic Origins of Chemistry. Baltimore, Md.: Johns Hopkins Press, 1975. 317 Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1. As razões para isso são complexas. Não é suficiente dizer que as universidades medievais eram bastiões do aristotelismo e que Aristóteles nada tinha a dizer sobre alquimia. A despeito de ambas estas afirmações serem verdadeiras de uma perspectiva moderna, elas são enganosas. Primeiro, escritores escolásticos mergulhados em Aristóteles, como Alberto Magno e Roger Bacon, definitivamente acreditavam na possibilidade de transmutação alquímica, como irei elaborar. De fato, a alquimia da Baixa Idade Média era uma razoável e sóbria ramificação da teoria da matéria de Aristóteles. Nisto devemos cuidadosamente distinguir alquimia medieval da eclética, neoplatônica alquimia do Renascimento, impregnada de teosofia e cabala. Em segundo lugar, era crença comum da Baixa Idade Média que Aristóteles teria escrito sobre alquimia. Pelo menos dezoito diferentes trabalhos pseudônimos sobre alquimia atribuídos a Aristóteles durante a Baixa Idade Média sobrevivem em bibliotecas modernas. Um escrito alquímico do fim do século XII ou começo do XIII atribuído a Aristóteles existe hoje em mais de trinta e cinco manuscritos, muitos deles medievais.9 Similarmente, uma longa seção do Book of the Remedy de Avicena que atacava alquimia foi normalmente atribuído a Aristóteles por autores medievais. Alguns, confrontados com o aparente apoio de Aristóteles sobre alquimia em um texto enquanto a atacava em outro, chegaram ao ponto de criar uma hipótese em que o jovem estagirita era altamente crítico, mas mudou seu ponto de vista com a sabedoria da velhice.10 Tampouco é suficiente argumentar que a alquimia teve negado o status universitário por sua caracterização como tecnologia (arte mecânica). Na verdade, a alquimia ocupava uma posição intermediária entre as artes e as ciências, posição também ocupada pela medicina. Como a medicina, a alquimia consistia de um corpo teórico sobre certos aspectos do mundo natural; essa teoria foi, então, utilizada para suportar uma miríade de práticas manuais. Tomás de Aquino, para citar um exemplo, se refere a alquimia variadamente como uma “ciência operativa”, uma “arte mecânica”, e uma “arte operativa”. No primeiro caso, ele elenca “medicina, alquimia e [filosofia] moral” juntas, posto que elas possuem um 9 Schmitt, Charles B., Knox, Dilwyn. Pseudo-Aristoteles Latinus: A Guide do Latin Words Falsely Attributed to Aristotle before 1500 (Warburg Institute Surveys and Texts, 12). Londres: Warburg Institute, 1985, entrada 58; para textos de conteúdo primeiramente ou exclusivamente alquímico, ver as entradas 1-5, 10, 21-22, 25-26, 54-56, 58, 73-74, 85, e 93. Outros textos, como o Secretum secretorum, contêm seções substanciais sobre alquimia. 10 BONUS, Petrus. Margarita Pretiosa. In: MANGET, J.J.. Bibliotheca chemica curiosa, v. 2. Genebra: s. e., 1702, p. 76, 80. 318 Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1. uso prático e são mais pertinentes a assuntos específicos do que campos como a metafísica, física e matemática. No segundo e terceiro casos, Tomás agrupa a alquimia com a agricultura e medicina como atividades tecnológicas subordinadas à física.11 Mas o currículo universitário medieval frequentemente incluía disciplinas como medicina e filosofia moral, apesar delas dada por Tomás como, respectivamente, “mecânica” e “operativa”. Não podemos, portanto, ver o desdém dos eruditos pelo prático e tecnológico como causa suficiente para a exclusão da alquimia da universidade medieval, embora isto possa ter sido um fator contribuinte. Explicações muito mais convincentes da falta de sucesso institucional da alquimia do que as mais gerais, como as do silêncio do verdadeiro Aristóteles ou o desdém dos eruditos pela tecnologia, podem ser encontradas examinando documentos medievais específicos. Torna-se claro que entre o começo da alquimia em meados do século XII e o fim do século XIII gradualmente se desenvolveu um rechaço generalizado contra esta disciplina, com as principais autoridades científicas e religiosas concordando em denunciá-la. Em tal contexto, teria sido academicamente desvantajoso, para dizer o mínimo, para um mestre universitário ensinar alquimia publicamente. O resultado é que os autores alquímicos se tornaram “marginais”. Qualquer um que consultar seriamente a bibliografia alquímica da Idade Média latina não deixará de ficar impressionando com o grande número de pseudepigrafia.12 A seguinte discussão não se limitará a uma recapitulação dos pontos de vista escolásticos acerca da alquimia, mas também examinará algumas destas literaturas pseudônimas. Veremos que, no processo de justificar esta disciplina frente a seus oponentes, os alquimistas e seus adeptos elaboraram uma consciente e articulada defesa da tecnologia, deveras, uma das mais antigas e minuciosas na cristandade latina. Os textos a serem discutidos compõem uma literatura de disputa que pode ser chamada, com justiça, o “debate sobre alquimia” da Baixa Idade Média, 11 Ver Tomás de Aquino, em seu comentário sobre De trinitate de Boethius: “Et ideo etiam quanto alia scientia magis appropinquat ad singularia, sicut scientiae operativae, ut medicina, alchimia, et moralis, minus possunt habere de certidudine”. TOMÁS DE AQUINO. S. Thomas Aquinatis opera omnia, curante Roberto Busa S.I. Stuttgart: Frommann-Holzboog, 1980, v. IV, p. 536, col. 3. Na página 532, col. 1, Tomás classifica agricultura, alquimia, e “aliae artes quae dicuntur mechanicae” juntas, novamente como “artes operativas”, e na página 533, col. 1, ele explicitamente subordina medicina, alquimia e agricultura à física. 12 Mais de 30 trabalhos alquímicos medievais são atribuídos a Alberto Magno: KIBRE, Pearl Alchemical Writings Ascribed to Albertus Magnus, Speculum: A Journal of Medieval Studies, v. 17, 1942, p. 499-518. Recentemente provei que o Semita recta, por muito tempo considerado como o mais autêntico escrito alquímico albertino, é uma falsificação: NEWMAN, William. The Genesis of the Summa perfectionis. Archives Internationales d’Histoire des Sciences, v. 35:, 1985, p. 240-302, esp. p. 246-260. 319 Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1. embora este debate não tenha sido realmente resolvido até que a universidade da Revolução Científica incorporou a química em seu currículo. O princípio do século XIII Nossa história começa com o tradutor inglês Alfredo de Sarashel, que por volta de 1200 traduziu uma seção meteorológica de Kitab al-Shifa (O livro da cura) e a inseriu no quarto livro da Meteorologica de Aristóteles, que já havia sido traduzido por Henricus Aristippus.13 Esse pequeno texto, que veio a ser conhecido em latim como De congelatione et conglutinatione lapidum, imediatamente adquiriu a autoridade de uma legítima produção de Aristóteles, já que parecia ser a conclusão do quarto livro da Meteorologica.14 O texto se tornou o locus clássico para todos os ataques subsequentes à alquimia, e virtualmente todo autor alquímico – fosse filosoficamente sofisticado ou não – sentiu-se na obrigação de responder aos argumentos de “Aristóteles” (i.e., Avicena). No processo, o De congelatione de Avicena tornou-se um ponto fundamental para a discussão do poder artesanal humano em geral. O De congelatione contém uma descrição de processos geológicos, incluindo a formação dos metais conhecidos – ouro, prata, cobre, estanho, chumbo e ferro. Seguindo as doutrinas da alquimia árabe, Avicena afirma que estes seis são compostos de mercúrio (o mercúrio é considerado não como um metal específico, mas sim como componente dos metais em geral) e enxofre em variadas quantidades e graus de pureza. Logo, ocorre um baque quando ele prossegue a uma denúncia da doutrina da transmutação metálica, na qual a prática alquímica é baseada. Os principais pontos de Avicena podem ser resumidos em dois: 1. Produtos artificiais e naturais são intrinsicamente diferentes, pois a arte é inerentemente inferior à natureza e não pode almejar igualá-la. Assim, artífices não podem transformar um metal inferior em um melhor, embora possam produzir imitações aceitáveis dos metais preciosos induzindo características superficiais. 13 OTTE, James .The Life and Writings of Alfredus Anglicus, Viator, v. 3, 1972, p. 275-291. 14 AVICENNAE. De congelatione et conglutinatione lapidum. ed. e trad. E.J. Holmyard e D.C. Mandeville Paris: Geuthner, 1927, p. 1-11. Infelizmente, estes editores não forneceram uma edição crítica do texto latino. Preparei uma edição temporária da seção conhecida como Sciant artifices (discutida abaixo) em NEWMAN, William. The Summa Perfectionis and Late Medieval Alchemy, 4 vols. Tese de Ph.D., Harvard Univ., 1986, v. 1, p. 59-62. 320 Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1. 2. As verdadeiras características determinantes da espécie dos metais não podem ser conhecidas, visto que elas subsistem abaixo do nível sensível. Uma vez que estas diferenças específicas são desconhecidas, será impossível realizar a transmutação de um metal em outro, pois o alquimista não pode manipular aquilo que desconhece. O argumento de Avicena pode parecer, à primeira impressão, óbvio ao leitor moderno, mas os termos “espécie” e “diferenças específicas” são algo nuançados. A terminologia de Avicena tem uma base lógica. Quando ele usou o termo nau, traduzido por Alfredo de Sareshel como species, ele quis principalmente se referir ao grupo de características que definem um tipo de coisa em particular. Para Avicena, existem seis de tais espécies entre os metais: ouro, prata, cobre, ferro, estanho e chumbo. Todas as seis pertencem ao mais geral genus dos metais, que ele informalmente define como corpos “maleáveis”, “fundíveis”, “minerais” (ou seja, “minerados”).15 Logo, cada tipo de metal compartilha um conjunto de propriedades que define o gênero16: qualquer corpo que seja maleável, fundível e encontrado em minas será um metal. Mas os metais não todos idênticos: ouro, prata, cobre, ferro, estranho e chumbo, ainda que metais, possuem suas próprias características específicas que fazem com que cada um cada um deles pertença a uma espécie particular. A força da conclusão de Avicena é que as diferenças específicas que fazem os metais serem de diferentes espécies não são propriedades facilmente percebidas como ponto de fusão, maleabilidade, densidade e cor. Em vez disso, as diferenças específicas são subjacentes e imperceptíveis: nós não podemos conhecê-las e, portanto, não podemos mudá-las. Pode ser tentador ao leitor moderno ver a rejeição da alquimia por Avicena como um evento pioneiro que pressagiou a separação da química das doutrinas “irracionais” ou “pseudocientíficas” da alquimia. Um olhar mais atento revelará, no entanto, que era Avicena, e não os alquimistas, que possuía uma visão reacionária. Avicena começa seu 15 AVICENA. De congelatione, p. 32-33. Nau é uma versão árabe do grego eidos, usado por Aristóteles para denotar “espécie” ou “forma”. Em De congelatione Avicena utiliza o latim species primariamente para distinguir os tipos individuais de metal (como chumbo e estanho) do genus dos metais em geral. Ver MADKUR, Ibrahim. L’organon d’Aristote dans le monde Arabe: Ses traducions, ses études, et ses applcations (Etudes Musulmanes, 10). Paris: Vrin, 1969, p. 70, 299. Para o termo em si, ver AVICENA, De congelatione, p. 24. Minha discussão deste tópico é devida a conversas com John Murdoch e A.I. Sabra. 16 N.T.: no original, foi utilizado o termo latino genus. No entanto, neste caso ele diferencia-se do contexto da utilização anterior em que o autor quis contrapor a utilização de species por Alfredo de Sareshel com a categorização feita por Avicena. 321 Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1. ataque com a afirmação “óbvia” de que produtos naturais são intrinsecamente superiores às suas contrapartes artificiais e que estes últimos não podem igualar-se aos exemplares naturalmente decorrentes dos quais eles são cópias. Como dois comentadores modernos do De congelatione apontaram, Avicena concordaria com “o público geral [hoje], que normalmente imaginam que o anil sintético, por exemplo, não é um anil autêntico, mas apenas uma imitação muito boa”.17 Avicena, embora se baseando num antigo preconceito, de fato adquire uma posição consideravelmente mais forte sobre a separação entre produtos naturais e artificiais do que a de Aristóteles. Na Física (2.2, 199a), este último permite à arte ou imitar a natureza ou levar alguns de seus trabalhos a um nível mais alto de perfeição do que eles normalmente teriam: “Um tipo de arte aperfeiçoa aquilo que a natureza não pode completar, enquanto outro tipo imita a natureza”.18 Pode-se chegar a impressão de que uma experiência pessoal com falsificadores alquímicos levou Avicena ao seu desdém pela arte humana como expressado em De congelatione. Quaisquer que sejam suas fontes, a proposição universal de que a arte é inferior à natureza, junto com a crença de que as espécies naturais são intransmutáveis, constituiu um ataque não apenas à alquimia, mas à totalidade da tecnologia e ciências aplicadas. O argumento de Avicena não era apenas de que a tecnologia humana não poderia superar a natureza, mas que o que o homem sequer pode esperar imitar a natureza de forma bem-sucedida. Avicena, então, traveste o antigo desdém filosófico pela tecnologia na forma de uma enunciação “oficial”, e depois explana as razões específicas para o fracasso da alquimia em termos da filosofia natural aristotélica. Mais tarde encontraremos alegações variadas como a impotência de demônios de realizar milagres e a inabilidade de horticultores de produzir novas espécies de plantas suportadas com referência à resolução de Avicena que os alquimistas não podem transmutar espécies. Os efeitos do De congelatione não foram, de forma alguma, restritos à alquimia, mas serviram para cristalizar uma tendência antitecnológica em várias áreas. Em resposta à resolução de Avicena que espécies são intransmutáveis – que veio a ser referida de forma abreviada pelo incipit Sciant artifices – os alquimistas desenvolveram contra-argumentos adotando uma visão radical da tecnologia na qual o 17 Holmyard e Mandeville, in AVICENNA, De congelatione, p. 41, n. 5. 18 ARISTOTELES. De physico auditu, in Aristotelis opera cum Averrois commentariis, vol. IV, Veneza, 1562, fol. 78r, col. 2: “Et omnino ars alia quidem perficit que natura non potest efficere, alia vero imitatur”. 322 Revista Signum, 2016, vol. 17, n. 1. homem assumia poder extraordinário sobre a natureza. Séculos antes da filosofia da natureza de Francis Bacon com sua decisão draconiana de “colocar à natureza abaixo”, nós encontramos protagonistas da alquimia afirmando que a habilidade do homem de transformar o mundo natural é virtualmente ilimitada. Sua justificação da arte humana não era baseada em um vago otimismo, todavia; era suportada por observação prática, raciocínio analógico, e um aristotelismo neoplatonizante. Um dos primeiros conjuntos de contra-argumentos ao De congelatione pode ser encontrado em um pseudônimo Book of Hermes escrito na primeira metade do século XIII ou antes. Esse livro contém uma série de ataques elípticos à alquimia, cada um com uma refutação a altura. O primeiro argumento, que metais são produtos naturais e, logo, não podem ser replicados por meios artificias, contém implicitamente o axioma de Avicena que produtos naturais são sempre melhores que os artificiais. O autor de Hermes refuta isto dizendo que a tecnologia humana frequentemente sucede em melhorar a própria natureza, uma vez que verdete, vitriol, óxido de zinco, e sal amoníaco artificiais são todos melhores que suas formas naturais, “fato que ninguém que entende de metais contradiz”.19 Similarmente, o horticultor melhora a natureza fazendo enxertos bem-sucedidos. Nós temos aqui uma espécie de manifesto proclamando o poder da tecnologia em geral e da tecnologia química em particular. Curiosamente, “Hermes” não nega que a arte aprende imitando a natureza: para enfraquecer a proposição de Avicena que a arte é mais fraca que a natureza, é suficiente para ele apontar para o fato empírico de que certos produtos são mais eficientes quando preparados artificialmente. Quando o autor do Hermes chega à afirmação de Avicena que espécies não podem ser transmutadas, ele adota uma abordagem lógica: ele responde que os metais pertencem a uma definição única, qualquer metal sendo um “corpo composto, fundível, incombustível e maleável”.20 Logicamente, não há razão convincente para que isso seja chamado um gênero em vez de uma espécie, uma vez que tal diferenciação é apenas questão de grau (um gênero é 19 Liber Hermetis, citação da edição parcial de trabalho in NEWMAN, William. The Summa Perfectionis and Late Medieval Alchemy, 4 vols. Tese de Ph.D., Harvard Univ., 1986, v. 1, p. 63-67, na p. 65, II, 36-40: “Sal vero viride et dragantum et thutia et sal armoniacus et naturalia et artificialia sunt. Immo et artificialia naturalibus potiora sun, quod qui de mineriis sciunt non contradicunt”. O Liber Hermetis nunca foi impresso, ou sequer analisado. Eu o encontrei nos seguintes manuscritos dos séculos XIII-XIV: Cambridge, Trinity College 1400, fols. 131r-133r; Oxford, Bodleian Library (BL), Bodley 679, fols. 20r-21r; Londres, British Museum (BM), Add. 41486, fols. 218r- 222r; Paris, Bibliothèque Nationale (BN), Latin (Lat.) 6514, fols. 135r-v; e nos seguintes manuscritos do século XIV: Londres, BM, Sloane 1754, fols. 60r-62r; Palermo, Biblioteca Communale, 4QqA10, fol. 37v (incompleto). 20 Ibid., p. 66, II, 57-61: “De speciali vero differentia cui dubium est metalla specialiter non difere, cum in uma diffinitione conveniant. Verbi gratia, corpus compositum, in igne fusibile, non combustibile, sub malle extendibile”. 323

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ser dito do “arquimago” do século XVI, Cornelius Agrippa von Nettesheim, . (potencia naturalis) pertence uma divisão quadripartite de qualidades.
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