L I V R O Revista do Núcleo de Estudos do Livro e da Edição n. 6 00 editorial.indd 3 08/11/16 11:29 universidade de são paulo Reitor: Marco Antonio Zago Vice-reitor: Vahan Agopyan pró-reitoria de cultura e extensão universitária Pró-reitor: Marcelo de Andrade Roméro livro – revista do núcleo de estudos do livro e da edição n. 6 issn 2179-801x Novembro de 2016 Editores Responsáveis Marisa Midori Deaecto núcleo de estudos do livro e da edição Plinio Martins Filho Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 433 Conselho Editorial Bloco A, sala 17 — Cidade Universitária Alice Mitika Koshiyama – eca-usp cep 05508-900 – São Paulo – sp Ana Luiza Martins – Condephaat-dph Fone: (11) 3091-4945 Aníbal Bragança – uff Antonio Castillo Gómez – Universidad de Alcalá (esp) Coordenadores Antonio Dimas – fflch-usp Plinio Martins Filho Cláudio Giordano – Editor Jerusa Pires Ferreira Diana Cooper-Richet – uvsq (fra) Edmir Perrotti – eca-usp Coordenadores Adjuntos Fernando Paixão – ieb-usp Marisa Midori Deaecto Frédéric Barbier – ephe/cnrs (fra) Sandra Reimão István Monok – Universidade de Eger; Szeged (hun) J. Guinsburg – Editor Conselho Deliberativo Jacques Hellemans – Université Libre de Bruxelles (bel) Ana Maria de Almeida Camargo – fflch-usp Jean-François Botrel – Université de Rennes 2 (fra) Ivan Teixeira (in memoriam) – eca-usp Jean-Yves Mollier – uvsq (fra) Jerusa Pires Ferreira – eca-usp – puc-sp João Adolfo Hansen – fflch-usp Márcia Abreu – iel-Unicamp José de Paula Ramos Jr. – eca-usp Marisa Midori Deaecto – eca-usp Laurence Hallewell – Universidade Essex (ing) Nelson Schapochnik – fe-usp Lincoln Secco – fflch-usp Pedro Puntoni – fflch-usp Manuel Cadafaz de Matos – Academia Portuguesa de História Plinio Martins Filho – eca-usp Marco Santoro – Universidade La Sapienza de Roma Sandra Reimão – each-usp Marcos Antônio de Moraes – ieb-usp Marisa Lajolo – iel-Unicamp / Mackenzie Michel Melot – cnrs, ehess (fra) Neil Safier – John Carter Brown Library (eua) Nelson Schapochnik – fe-usp Livro – a Revista – é o primeiro fruto do Núcleo de Paulo Franchetti – iel-Unicamp Sandra Vasconcelos – fflch-usp Estudos do Livro e da Edição (nele). Resulta, portanto, do Tânia Maria Bessone – ifch-uerj esforço coletivo de professores e pesquisadores de diversos Thiago Mio Salla – eca-usp campos do conhecimento no sentido de materializar um Ursula Rautenberg Friedrich-Alexander Universität (ale) fórum aberto à reflexão, ao debate e à difusão de pesquisas Wander Melo Miranda – cel-ufmg Yann Sordet – Bibliothèque Mazarine (fra) que têm na palavra impressa seu objeto principal. As opiniões expressas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores. Todo material incluído nesta revista tem a autorização dos autores ou de seus representantes legais. Qualquer parte dos artigos da revista pode ser reproduzida desde que citados autor e fonte. Estrada da Aldeia de Carapicuíba, 897 – 06709-300 – Granja Viana – Cotia – sp – Brasil www.atelie.com.br | e-mail: [email protected] | tel: 4612-9666 00 editorial.indd 4 08/11/16 11:29 debate ¶ OUTROS TEXTOS, OUTRAS LEITURAS Divagações Metodológicas em Torno de Efêmeros e Papéis Menores1 ••• Antonio Castillo Gómez (Universidad de Alcalá) Tradução Cláudio Giordano Uma das coisas dignas de conhecimento do público é a notícia das prag- máticas, documentos régios, editos, decretos etc. que se imprimem e de que mal se dá notícia ou se deixa registro. Na Gaceta poucas se divulgam que não façam parte das publicadas pelo Supremo Consejo de Castilla; mas quantas não são noticiadas nos demais tribunais? Por isso nos dedicamos com o maior empenho a indagar e buscar esses documentos públicos e dig- nos de atenção e memória, com os quais sai engrandecida esta Biblioteca2. I A citação acima provém da Biblioteca Periódica Anual para Uti- lidad de Libreros y Literatos, mais precisamente do número correspondente ao ano de 1786. Referida obra publicou-se anualmente entre 1784 e 1791, com o propósito de que livreiros e apreciadores de livros tivessem informação precisa de “livros e papéis que se imprimem e publicam em Madrid e nas províncias da Espanha”, classificados por ordem alfabética de autores ou tradutores (pelo sobre- nome), com indicação das livrarias onde se vendiam e das tipografias, cidades e anos onde tinham sido editados os diferentes títulos3. Constata- da a dificuldade que implicava conhecer tudo que se publicava naqueles 1. Este artigo inscreve-se no projeto de pesquisa “Scripta in itinere”. Discursos, Formas y Apropiaciones de la Cultura Escrita en Espacios Públicos Desde la Primera Edad Mo- derna a Nuestros Días (Ref. har2014-51883-p), financiado pelo Ministério de Economia e Competitividade do Governo da Espanha. 2. Biblioteca Periódica Anual para Utilidad de los Libreros y Literatos, Madrid, Imprenta Real, 1786, n. iii, pp. 1-2. 3. Idem, 1785, n. ii, p. 1. Livro ◆ 351 08 debate.indd 351 08/11/16 11:32 ¶ debate tempos, no prólogo do volume de 1785 pe- Não quer dizer, longe disso, que a história diu-se que os “autores ou seus interessados do livro perca sua identidade para dissolver- estabelecidos nas províncias” enviassem à -se na história da cultura escrita, pois isso se- livraria madrilenha de Antonio del Castillo ria o mesmo que negar o peso de uma rica e a informação correspondente, em especial se acreditada tradição secular. Trata-se antes de se tratasse de “alguns papéis ou livros de pe- apontar que com esta afloram algumas das queno porte, como são sermões, dissertações, limitações e contradições nas quais aquela poesias, discursos inaugurais etc.”, porque, pode ter ocorrido. Talvez para isso tenha “apesar de impressos não se vendem nesta contribuído seu perene enquadramento no Corte, nem são anunciados nas Gazetas nem setor representado pelos estudos filológicos através de cartazes públicos”4. e bibliográficos, de cuja necessidade e bom Os volumes da Biblioteca convidam a um uso tampouco acalento dúvidas. É possível olhar de amplo alcance, que vem bem a até que dita trajetória se justificasse face ao propósito do assunto que pretendo tratar abandono que diferentes gerações de histo- nestas páginas, sob minha perspectiva de riadores mostraram ao longo do século xx historiador da cultura escrita. Adiante-se que em relação a tudo o que dissesse respeito à entendo esta disciplina segundo a definição história cultural, e dentro desta, à história da que lhe fez Armando Petrucci, ou seja, como escrita, tachada às vezes, com pouca justiça, a “história da produção, das características de vaga e pouco rigorosa8. formais e dos usos sociais da escrita e dos Afora a severidade que comportam juízos testemunhos escritos em determinada so- dessa natureza, pode-se ter a literatura incon- ciedade, independentemente das técnicas sistente em qualquer ramo do conhecimento, e dos materiais utilizados em cada caso”5. onde sempre encontraremos trabalhos que Campo, a meu ver, mais amplo do que o exploraram novos territórios, abriram linhas balizado pela história do livro, exceto que de pesquisa ou formularam novos enfoques e entendemos esta como uma “história social metodologias; ao lado de outros que se limi- e cultural da comunicação através da im- tam a repetir e aplicar esses modelos, quando prensa”, conforme propôs oportunamente não a fazer ruim plágio dos mesmos. É inevi- Robert Darnton6. Formulação, não obstante, tável que seja assim particularmente quando, que para ser plenamente assumida caberia para todo efeito, nossa rentabilidade científica entendê-la mais além da identificação es- se mede em termos de quantidade, intiman- tabelecida então entre livros e impressos, do-se as gerações mais jovens a publicar logo e como a próprio historiador norte-americano muito. Não se trata, pois, de uma chamada de expressou em diversos estudos referentes às atenção que pudesse ser válida para o campo formas de comunicação (oral, manuscrita e de estudos da “cultura da escrita”; ao contrá- impressa) e à difusão de panfletos na França rio, é extensiva a qualquer âmbito do saber. do século xviii7. The American Historical Review, vol. 105, n. 1 (2000), 4. Idem, pp. 5-6. pp. 1-35; Poetry and the Police. Communication Net- 5. Armando Petrucci, Prima Lezione di Paleografía, works in Eighteenth-Century Paris, Cambridge (ma), Roma-Bari, Laterza, 2002, p. vi. Harvard University Press, 2010; e The Devil in the Holy 6. Robert Darnton, “¿Qué Es la Historia del Libro?” Water, or the Art of Slander from Louis xiv to Napo- (1982), em El Beso de Lamourette. Reflexiones sobre leon, Philadelphia (pa), University of Pennsylvania Historia Cultural, Buenos Aires, fce, 2010, p. 117. Press, 2011. 7. Robert Darnton, “An Early Information Society: 8. Josep Fontana, La Historia Después del Fin de la News and the Media in Eighteenth-Century Paris”, Historia, Barcelona, Crítica, 1992, pp. 111-112. 352 ◆ Livro 08 debate.indd 352 08/11/16 11:32 debate ¶ A história da cultura escrita desfruta já repertórios bibliográficos ou tipobibliográfi- de ampla e consolidada trajetória9. Coisa cos, cuja origem se encontra na erudição dos diferente é que em determinadas disciplinas, séculos xviii e xix, quando se praticou uma escoradas em procedimentos essencialmente veneração do objeto livro comparável à que positivistas e portanto descritivos, esse desa- os historiadores oitocentistas manifestaram fio não tenha sido corretamente entendido, pelo documento diplomático11. tendo-se inclusive produzido uso indevido de conceitos inerentes a tal linha de pes- II quisa, como é e tem sido o caso de grande número de trabalhos da disciplina que tem O fetichismo do livro repercutiu na confec- o empenho acadêmico do estudo da escrita, ção de catálogos de manuscritos e impressos isto é, a paleografia. aos quais ainda somos devedores, mas tam- Entendo que se poderia fazer crítica seme- bém introduziu alguns desvios de foco que lhante a respeito do monopólio que a filologia estão na base do que reivindico neste texto. e a bibliografia têm exercido na história do O olhar se voltou fundamentalmente à des- livro. Incorreria em erro crasso se omitisse a crição material do objeto livro, interessando- enorme contribuição de referidas disciplinas se menos pela interpretação do efeito que as ao nosso conhecimento das transformações formas materiais podem ter na apropriação e modalidades do livro ao longo do tempo, dos textos, na reconstrução de seus usos e com atenção particular à era representada significados sociais. Estes aspectos começa- pela imprensa. No entanto, o fato talvez de ram a despontar nos anos 1960 e 1970 com que durante décadas a história se tenha in- o desenvolvimento de uma história social do teressado apenas pelas transformações do livro, que teve um de seus primeiros artífices livro prendeu essas disciplinas à atividade na pessoa de Henri-Jean Martin12, e depois descritiva, marginalizando outras dimensões dele alguns expoentes da segunda geração da de índole mais interpretativa, que depois se École de Annales, antes que tais interesses se foram recuperando com a bibliografia ma- expandissem por toda parte e acabassem in- terial ou a textual bibliography10. Resultou serindo-se na história do livro, e em seguida de enfoques tão positivistas uma tradição de da leitura, no contexto da história cultural13. estudos alicerçada na nem sempre cômoda identificação e descrição de livros e impres- 11. Francisco M. Gimeno Blay, “Alcanzar la Verdad. sos, construindo-se com eles imprescindíveis La Erudición Decimonónica Española Estudia los Testimonios Escritos Medievales”, em “Scripta Ma- nent”. De las Ciencias Auxiliares a la Historia de la 9. Para uma aproximação da mesma, da situação atual Cultura Escrita, Granada, Universidad de Granada, e alguns apontamentos para o futuro, remeto às consi- 2008, pp. 41-73. derações que formulo em meu trabalho “Escritas, Tex- 12. Henri-Jean Martin, Livre, pouvoirs et société à Paris tos e Leituras. Maneiras de Fazer História da Cultura au xviie siècle, Genève, Droz, 1969, 2 vols. Escrita”, em Rosangela Patriota et alii (orgs.), História 13. Roger Chartier, “De l’histoire du livre à l’histoire Cultural: Escritas, Circulação, Leituras e Recepções, de la lecture”, Archives et bibliothèques de Belgique, São Paulo, Editora Hucitec, 2016, no prelo. 60, 1-2 (1989), pp. 161-189; Robert Darnton, “History 10. Sobre este aspecto são fundamentais as contribui- of Reading”, em Peter Burke (ed.),New Perspectives ções de Donald F. Mckenzie, Bibliography and the on Historical Writing, Cambridge, Polity Press, 1991, Sociology of Texts, Cambridge, Cambridge University pp. 140-167; Peter Burke, What is Cultural History?, Press, 1999; e Making Meaning: “Printers of the Mind” Cambridge, Polity Press, 2004; Philippe Poirrier and Other Essays, edição de Peter D. McDonald e (dir.), L’histoire culturelle : un “ tournant mondial “ Michael F. Suarez, Amherst, University of Massachu- dans l’historiographie ?, Dijon, Éditions Universitai- setts Press, 2002 res de Dijon, 2008; e Justo Serna e Anaclet Pons, La Livro ◆ 353 08 debate.indd 353 08/11/16 11:32 ¶ debate 354 ◆ Livro 08 debate.indd 354 08/11/16 11:32 debate ¶ Fig. 1. Edito manuscrito de Hugo de Velasco, centenas de exemplares que podem ter so- provisor general del obispo de Cuenca, ordenando brevivido dos impressos antigos. el cumplimiento de los acuerdos del Concilio Insisto no que ocorre sempre com nos- de Trento. Cuenca. 7 de septiembre de 1564. so enfoque na hora de valorizar cientifica- Valladolid, Archivo General de Simancas, mente uns e outros produtos. Observe-se Patronato Real, leg. 21, doc. 203. que no apontamento anterior se reproduz outra constante que perpassa grande par- Antes de atingir esse ponto, interessaram-se te dos estudos sobre o livro e, portanto, re- aquelas primeiras pesquisas especialmente percutiu na marginalização de boa parte em mapear o mundo do livro, segundo pro- dos efêmeros e papéis menores. Trata-se prietários, profissões e demarcações territo- da excessiva vinculação entre história do riais, publicando volumes imprescindíveis livro e do impresso, por mais que os estu- que nos possibilitaram conhecer quais livros dos sobre a difusão do manuscrito na era circularam em determinadas cidades em de Gutenberg sejam já clássica recorrência diferentes épocas, que temas se destacavam neste tipo de observações15. Devo confessar numas e noutras livrarias, quem foram seus que tenho acompanhado e lido avaliações donos, onde viviam e a que setores sociopro- historiográficas referentes inclusive à história fissionais pertenciam14. da cultura escrita, nas quais esta se liga à Doutra parte, os estudos estabelecidos cultura impressa como se além das oficinas na tradição bibliográfica concentraram-se tipográficas (ou de suas versões atuais) não principalmente na catalogação de manus- existisse escrita ou textos suscetíveis também critos medievais e impressos modernos. Sua de leitura. É aceitável que isso tenha a ver utilidade é tão evidente quanto a paciência com as consequências que a revolução téc- e perícia daqueles que os elaboraram. Nin- nica teve progressivamente nos modos de guém melhor que eles para conhecer os produção de textos e ainda mais na difusão meandros do mundo do livro na era tipo- destes, com especial incidência no campo gráfica, mas concordarão os leitores comigo dos impressos de poucas páginas: que a história do livro não para aí. Derivou disto uma identificação entre esta e histó- On s’est parfois demandé si Gutenberg et ses ria do impresso que entendo injustificada, semblables entendaient, quand ils mirent au porquanto os livros copiados a mão e outros point l’art typographique, publier des Donat, des manuscritos tiveram largo uso nos séculos da tipografia e até da imprensa industrial. 15. Harold Love, The Culture and Commerce of Texts: Obviamente seu rastreio é sempre mais Scribal Publications in xviith century, Oxford, Claren- complicado, pois muitas vezes se reduzem don Press, 1993; Henry R. Woudhuysen, Sir Philip a poucas cópias em comparação com as Sidney and the Circulation of Manuscripts, 1558- 1640, Cambridge, Cambridge University Press, 1997; Fernando Bouza, Corre Manuscrito. Una Historia Historia Cultural. Autores, Obras, Lugares, Madris, Cultural del Siglo de Oro, Madrid, Marcial Pons, Akal, 2013 [2. ed.]. 2001; David McKitterick, Print, Manuscript and the 14. François Furet, Livre et société dans la France du Search for Order, 1450-1830, Cambridge, Cambrid- xviii siècle, Paris, Mouton, 1965-1970, 2 vols. Sobre a ge University Press, 2004; Antonio Castillo Gómez, aplicação da metodologia quantitativa na história do Entre la Pluma y la Pared. Una Historia Social de la livro dentro da historiografia francesa dos anos 1960 e Escritura en los Siglos de Oro, Madrid, Akal, 2006; 1970, veja-se Roger Chartier e Daniel Roche, “L’his- e Márcia Almada, Das Artes da Pena e do Pincel. toire quantitative du livre”, Revue française du histoire Caligrafia e Pintura em Manuscritos no Século xviii, du livre, 16 (1977), pp. 477-501. Belo Horizonte, Fino Traço, 2012. Livro ◆ 355 08 debate.indd 355 08/11/16 11:32 ¶ debate Fig. 2. Cartel manuscrito correspondiente a las “famosas fiestas” que la compañía de Diego de Vallejo y Juan Acacio representaron en Sevilla, en el corral de doña Elvira, el miércoles 5 de junio de 1619, dentro de la festividad de la octava del Corpus Christi. Sevilla, Archivo Histórico Municipal, I, carp. 155, nº 290. Psautiers et des Bibles, ou multiplier les feuilles cê-los quando do surgimento do texto impres- volantes et les livrets de quelque pages destinées so, como se a partir da segunda metade do à faciliter le travail des administrateurs16. século xv, a única textualidade aceitável fosse a impressa. Nenhum dicionário mostra-se de Partindo também da problematização alcance tão curto como às vezes nós pesqui- introduzida hodiernamente pelos suportes sadores o fazemos. Mantendo-nos apenas na eletrônicos, julgo que erramos quando vin- época moderna, Covarrubias, em seu Tesoro culamos a história de determinada manifesta- de la Lengua Castellana o Española (1611), ção escrita à materialidade concreta que esta definiu o livro, derivado do latim liber, como possa ter tido em cada momento da história; “qualquer volume de folhas, ou de papel ou mesmo, porém, sob esta perspectiva faz pou- de pergaminho, ligado em cadernos e encapa- co sentido ocupar-se a história do livro com os do”17. Onde está dito que os cadernos deverão manuscritos quando só eles existiam, e esque- estar impressos? Mais recentemente, a última versão do Diccionario de la Lengua Española 16. “Tem-se por vezes perguntado se Gutenberg e seus registra que livro é o “conjunto de muitas pares visavam, quando desenvolveram a arte tipográfi- ca, publicar Donatos, Saltérios e Bíblias, ou multiplicar folhas de papel ou outro material semelhante os volantes e os livretos de poucas páginas destinados a facilitar o trabalho dos administradores” (Henri-Jean 17. Sebastián de Covarrubias, Tesoro de la Lengua Cas- Martin, Histoire et pouvoirs de l’écrit, Paris, Perrin, tellana o Española, ed. Martín de Riquer, Barcelona, 1988, p. 277). Altafulla, 2003, p. 765. 356 ◆ Livro 08 debate.indd 356 08/11/16 11:32 debate ¶ que, encadernadas, formam um volume”, menores” ou até “materiais diversos”, na além da “obra científica, literária ou de qual- medida em que se contrapõem “a uma cul- quer outra natureza com extensão suficiente tura que por definição tínhamos chamado para formar volume, que pode apresentar-se de ‘alta’”21. Silvia González-Sarasa, por sua impressa ou em outro suporte”18. vez, mostra-se mais propensa a chamá-los simplesmente “papéis”, ao menos em rela- III ção ao Século de Ouro espanhol, pois assim eram conhecidos na época; além de que O que acontece, no entanto, com os efême- qualquer outra das demais denominações ros e os papéis menores? Ou seja, com uma em geral usadas: “folhas soltas”, “folhas de série de produtos, impressos e mesmo ma- cordel”, “impressos menores” ou “minúcias” nuscritos, como os que ilustran este artigo, -- parecem-lhe controversas e imprecisas22. usados ocasionalmente em situações coti- Sob esse enfoque, note-se que o autor da dianas, sem uma vontade de preservação tão citada Biblioteca Periódica referiu-se a esta clara como a que se pode supor em relação variedade de textos com a expressão “alguns aos livros. Isto tem influído claramente tanto papéis ou livros de pouco volume”23. em sua eventual conservação como na exi- Uma vez que essa obra, conforme anotei guidade com que têm sido estudados. Apesar no início, tinha por meta servir de guia aos li- dos avanços alcançados nos últimos tempos vreiros e vendedores de livros, é compreensí- em matéria de catalogação e de análise, ain- vel que o autor considerasse expressamente a da é bastante comum olhá-los como meras produção impressa. No entanto, não parece curiosidades; ao passo que grande parte das justificável que essa mesma rotulação con- pesquisas sobre a história do livro e da leitura tinue presente entre os principais estudiosos continuam presas às transformações, usos e dos ephemera24, sendo esta uma das primei- apropriações do objeto códice, como se todo ras questões que a história do livro, e claro o resto fosse simples curiosidade. a da leitura, deveria corrigir nos tempos que Tanto é verdade que algumas das catego- correm. Em minha opinião, não faz sentido rias apresentadas para classificá-los definem- -nos precariamente, mencionando o que 21. Maria Gioia Tavoni, “I ‘Materiali Minori’: Uno Spazio per la Storia del Libro”, em Maria Gioia Tavoni não são, ora “non-book printed materials” e Françoise Waquet (eds.), Gli Spazi del Libro nell’Eu- (“materiais impressos não-livro”)19, ora “non ropa del xviii Secolo. Atti del Convegno di Ravenna livre” (“não livro”)20. Ambas as categorias (15-16 Dicembre 1995), Bologna, Pàtron, 1997, pp. 87-11; e “I Materiali Minori e le Carte del Paradiso in Piero sofrem, porém, do fetichismo que situa o Camporesi”, em Rudj Gorian (ed.), Dalla Bibliogra- livro numa posição não apenas superior mas fia alla Storia. Studi in Onore di Ugo Rozzo, Udine, também hegemônica, além de negligen- Forum, 2010, pp. 293-314. ciar os manuscritos de idêntica função e 22. Silvia González-Sarasa Hernáez, “Delimitación Conceptual y Problemas Terminológicos en Torno a conteúdo. Diante dessas propostas, Maria una Tipología Editorial del Impreso Antiguo”, Anales GioiaTavoni propôs chamá-los “materiais de Documentación, 14/2 (2011), pp. 1-14, http://revistas. um.es/analesdoc/article/view/124511 (Acesso 13 feve- reiro 2016). 18. http://dle.rae.es/ http://dle.rae.es/?id=NG3ktc6 23. Veja-se a nota 4. (Acesso 13 fevereiro 2016). 24 A propósito destes, sua patrimonialização e estudo 19. Alan Clinton, Printed Ephemera. Collection, Orga- sob uma perspectiva interdisciplinar, veja-se Olivier nisation and Access, London, Clive Bingley, 1981, p. 66. Belin e Florence Ferran (dirs.), Les éphémères, um 20. Nicolas Petit, L’éphemère, l’occasionnel et le non livre patrimoine à construire, http://www.fabula.org/collo- (xve-xviiie siècles), Abbeville, Klincksieck, 1997, p. 16. ques/document2886.php (Acesso 14 fevereiro 2016). Livro ◆ 357 08 debate.indd 357 08/11/16 11:32 ¶ debate Fig. 3. Caricatura de José Bonaparte, rey de España entre 1808 y 1813. La venta de esta estampa se anunció el 28 de enero de 1814 en el periódico El Conciso. Madrid, Museo de Historia. incluírem-se nessa categoria produtos como: dos sobre o livro e a leitura. Desnecessário listas de acontecimentos, cartazes, avisos, lembrar, portanto, o muito que este campo editais, anúncios, almanaques, alegações e de pesquisa pode ganhar com os documen- memoriais jurídicos ou bulas e súmulas de tos guardados nos arquivos. Não já com os indulgências quando impressos, ao passo que manuseados protocolos notariais, senão tam- se desprezam outros exemplares coetâneos bém com muitos outros expedientes admi- de teor semelhante por serem manuscritos. nistrativos ou jurídicos em que, por razões Segundo mencionei antes, ao invés de diversas, é possível achar-se os manuscritos quebrar a unidade da tipologia textual, ca- parentes das minúcias tipográficas. beria analisá-los em conjunto, destacando Não pretendo dizer que tais disciplinas as características de cada item, bem como as devam ocupar-se com toda espécie de tes- semelhanças e diferenças, dando primazia à temunhos escritos, porquanto entendo que função comunicativa que desempenharam. isto cabe antes à história da cultura escrita; Do contrário, talvez tenha pesado a rarida- mas não me parece aceitável que a distinção de dos manuscritos face à multiplicidade manuscrito/impresso seja, por exemplo, cri- dos impressos, assim como uma localização tério válido quando se trata de volumes com em geral mais complicada; mas também a estrutura material similar, e menos ainda supremacia do tipográfico em muitos estu- se serve para produzir discriminação entre 358 ◆ Livro 08 debate.indd 358 08/11/16 11:32
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