REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO DE ARTE MUSICAL EM ADORNO. Paulo Thiago Schmitt Orientador: Prof. Dr. José Fernandes Weber RESUMO Segundo Theodor W. Adorno, os fenômenos musicais inseridos no modo de produção e difusão da indústria cultural se tomaram degenerativos, afetando os gostos dos ouvintes e os próprios objetos musicais. Essa percepção da degradação da arte musical, em efeito da nova manipulação dessa expressão, é constituída com a contraposição de uma arte na música que fora corrompida pelos processos inerentes ao sistema capitalista de produção: a transformação do objeto musical em mercadoria resulta na subtração da autonomia contemplativa do ouvinte. Diante de tais afirmações e da possível constatação de que a arte se tornou uma relíquia em tempos contemporâneos, é pertinente elucidar os conceitos que definem a arte, para o autor, e assim verificar se ela realmente se esvaiu sob as seguintes intuições: ou (1) a arte interpretada sob os parâmetros da Estética de Adorno não dão conta dos fenômenos musicais contemporâneos; ou (2) a musica superior, se tornou uma peça presa no contexto do passado, dificilmente reconciliável com a contemporaneidade, o que implicaria em atestar a suspensão da forma elevada daquela expressão humana, denunciando a falência da dimensão autônoma na esfera musical responsável pela autenticidade que legitimou outrora sua superioridade, corroborando com a teoria de Adorno. Palavras chave: arte, música, indústria cultural 1154 O tema do fim da arte nos pensamentos relativos à estética em Theodor W. Adorno, onde se intenciona esclarecer quais as possibilidades do fenômeno artístico autêntico no contexto de sua degeneração pelo cenário da indústria cultural, pode vislumbrar desfecho a partir da apresentação do caráter ambíguo da arte: o período contemporâneo da produção dos artefatos ditos artísticos está sob o domínio da dimensão heterônoma, em detrimento de sua dimensão autônoma. Essa indicação geral do caráter da arte, que a remonta sob a dinâmica inerente entre esta e a sociedade, sinaliza as condições do processo da arte, proferidas pelo esforço de uma teoria estética que o autor recomenda como necessária para a abertura do aspecto universal no artístico. A reconstituição abreviada da perspectiva anunciada, que deve restituir os momentos teóricos em relação à ambivalência da arte, bem como disponibilizar a concepção processual da formação do conceito de arte, servirão para situar o problema da degeneração da música contemporânea no quadro dos fundamentos filosóficos do autor, para assim decifrar o que pode estar vivo na estética de Adorno. A investigação fora motivada pela inquietação originada diante de uma possível implicação que o pensamento desse autor sugere quando se direciona aos objetos musicais inseridos no sistema produtivo do capitalismo, qual seja: que a arte ou bela-arte na música se tornou uma relíquia em efeito do contemporâneo processo de manipulação dos fenômenos musicais. A proposta é verificar os limites dessa implicação, procurando tornar claro o fundamento teórico do autor que justifica a conclusão de um cenário de degeneração da legítima arte, simultaneamente a um aprofundamento a respeito dos elementos que compõe aquela arte que se perde no horizonte do século XX. Como efeito da investigação, as considerações levantadas ainda remetem, conforme o programa da pesquisa, às hipóteses que outrora impulsionaram estes estudos, a saber: ou (1) a arte interpretada sob os parâmetros da Estética de Adorno não dão conta dos fenômenos musicais contemporâneos, quando afirma que a música passa a se constituir numa 1155 depravada forma de existência, relegando à cultura de massa como o retorno da barbárie; ou (2) a arte musical, a musica superior, se tornou uma peça presa no contexto do passado, dificilmente reconciliável com a contemporaneidade, o que implicaria em atestar a suspensão da forma elevada daquela expressão humana, denunciando a falência da dimensão autônoma na esfera musical responsável pela autenticidade que legitimou outrora sua superioridade, corroborando com a teoria de Adorno. Voltemos, pois, inicialmente a atenção para o que seja a ambiguidade da arte. Adorno afirmou na Teoria Estética que “o caráter ambíguo da arte como elemento distinto da realidade empírica e, assim, do contexto da eficácia social, que, no entanto recai ao mesmo tempo na realidade empírica e nos contextos do efeito social” (ADORNO, p 379, 2008) aparecem nos fenômenos estéticos. Nesse sentido, tais fenômenos podem suportar duas dimensões antagônicas que carregam, mesmo assim, relações intrínsecas e mútuas. Numa dimensão é concedido à arte um espaço em si que se manifesta no interior dos homens, que se destaca do mundo empírico suscitando outro com essência própria, e que se afirma como uma realidade oposta ao mundo concreto. Em outra dimensão, o artefato ou a obra de arte se veicula no mundo concreto se subsumindo as finalidades atreladas nas diversas funções sociais, o que confere o caráter de sua eficiência no conjunto dos interesses socialmente erigidos. A dialética entre as duas dimensões emerge, desse modo, da iniciativa de recusa e de negação direcionadas à realidade exterior concreta que, com efeito, insinua-se na possibilidade afirmativa de um espaço alternativo, de outro mundo, em detrimento do mundo factual. A ambição de vivenciar essa atmosfera distinta do mundo empírico, que em momentos históricos precisos reivindicou a completa exterioridade de sua esfera fechada em si mesma, aparece como o clamor da autonomia na arte, no jubilo do sentimento de liberdade atrelado nesse movimento. No entanto, a suposta libertação das exigências empíricas, veiculadas pelas manchetes entusiasmadas dos autores da autonomia da arte 1156 são- como comentou Adorno- mentiras de suas próprias razões: justamente na sobreposição daquela esfera da arte, essência afirmativa e inelutável de si mesma, com o mundo concreto na qual são originadas, surge a consciência do Outro na consideração de sua composição. A alteridade é necessária para a apreensão dos elementos componentes da esfera da autonomia. Tais elementos carregam os traços da negação à realidade concreta, ou seja, a autonomia da esfera da arte tem natureza hibrida, pois a formação de seu conteúdo é contaminada pelo processo citado de oposição e influenciada, portanto pelo elemento heterônomo. Diz Adorno a esse respeito: O caráter ambíguo da arte enquanto autônoma e como fait social faz-se sentir sem cessar na esfera de sua autonomia. (...) Os antagonismos não resolvidos da realidade retornam às obras de arte como problemas imanentes da sua forma. É isto que define a relação da arte com a sociedade. (...) A liberdade das obras de arte, cuja consciência é celebrada e sem a qual elas não existiriam, é a mentira de sua própria razão. Todos os seus elementos as acorrentam ao que elas têm a dita de sobrevoar e em que ameaçam a todo o momento mergulhar de novo. (ADORNO, p 18, 19. 2008) Cabe agora um apontamento relativo à diferença do tratamento ontológico dado ao espaço da arte enquanto realidade alternativa, e sua manifestação histórica marcada pela insuficiência dos conceitos diante da tentativa de definição absoluta do conteúdo da arte. Mesmo tendo caráter ambíguo, a esfera da arte reserva, de modo geral, uma instância que se destaca das funções empíricas e que, enquanto meio interior aos homens, constitui o espaço de sua representação. Nesse sentido, indiferente ao conteúdo artístico das obras, subsiste ainda não a identidade da arte invariável às suas manifestações históricas, mas antes a parte prévia da sublimação, na dinâmica psicológica, presente na esfera da arte como a representação do homem para si, e deste em relação aos antagonismos da realidade. 1157 O traço ontológico nessa concepção é acentuado, na presente interpretação, pela planificação do elemento não-estético como participante, necessariamente, do momento estético: a esfera da arte não pode ser concebida sem levar em consideração a experiência representativa da sublimação, ou seja, da manifestação do instinto humano na instância de seu próprio apaziguamento. Não obstante o aspecto psicológico na esfera da arte resta ainda o outro componente subjetivo que, no entanto, varia seu conteúdo historicamente: a plasmação formal. A modelação racional dos materiais convertidos em obras de arte são expressões das pulsões subjetivas do artista que refletem tanto os antagonismos da realidade concreta e social (na medida em que a plasmação formal se opõe ao Outro na negação de sua origem), bem como as demandas singulares do artista, que convergem numa pretensão de instaurar um espaço alternativo à realidade concreta. Portanto, as dimensões da autonomia e da heteronomia estão intricadas numa expressão formal que se relaciona ontologicamente com o elemento instintivo do homem, as pulsões que se sublimam, constituindo-se na relação entre a arte e a sociedade. Diz Adorno: “no processo de produção artístico, as moções inconscientes são impulso material entre muitos outros. Inserem-se na obra através da mediação da lei formal” (ADORNO, p23, 2008). Contudo, não é possível uma delimitação fixa do domínio pertinente ao conteúdo da arte que perpasse todas as obras ao longo da história. A acepção de “conceito” que Adorno faz uso é resgatada da concepção hegeliana, e se constitui “quando a totalidade do objetivo houver de coincidir com o espírito”. Nesse sentido, o surgimento da lei formal que modela a matéria e disponibiliza um conteúdo especifico de arte é resultado da tensão entre a demanda subjetiva do artista em contraste com os antagonismos da realidade social. A adequação entre o contexto da realidade concreta com o seu negativo formal- ou seja, o momento de formação do conceito da arte- é variável, e se transforma na medida em que a tensão entre a sociedade e a arte se altera. 1158 A história da arte não fornece, portanto um modelo conceitual absoluto do conteúdo artístico. Ao contrário, é no decorrer da tensão entre as dimensões da heteronomia e da autonomia engendradas no movimento da história, que se faz possível a emergência dos conceitos que, momentaneamente, traduzem o perfil da produção de arte. Em outras palavras, o conceito que provisoriamente estipula o horizonte da arte se realiza enquanto processo. Diz Adorno a esse respeito: A tentativa de subsumir ontologicamente a gênese histórica da arte num motivo supremo extraviar-se-ia necessariamente em algo tão discordante que à teoria apenas restaria o ponto de vista, sem dúvida importante, segundo o qual as artes não podem classificar- se em nenhuma identidade ininterrupta da arte. (...) A arte só é interpretável pela lei de seu movimento, não por invariantes. Determina-se na relação com o que ela não é. O caráter artístico específico que nela existe deve deduzir-se, quanto ao conteúdo, de seu Outro. Ela especifica-se ao separar-se daquilo por que tomou forma; a sua lei de movimento constitui a sua própria lei formal. Ela unicamente existe na relação com o seu Outro e é o processo que a acompanha. (ADORNO, p13, 14. 2008) Desse modo, o período da origem da história da produção artística não oferece, necessariamente, um modelo ou um conceito de arte a ser perseguido. Não há superioridade ou pureza no momento de nascimento das primeiras formas de expressões, e delas não se supõe uma derivação cronológica retilínea que se estenderia em movimentos de aproximação ou distanciamento em relação à sua gênese ideal. De forma diversa, a superioridade ou leviandade na arte pode ser captada, em cada trecho da história, segundo o domínio da esfera da autonomia ou da heteronomia, respectivamente, no processo de formação de seu conceito. A dominância da dimensão heterônoma relaciona-se com a “eficácia social”, ou seja, é o momento no qual os interesses sociais determinam a produção artística segundo finalidades empíricas. Nessas 1159 condições, as obras são compostas sobre o horizonte da satisfação imediata ou da fruição momentânea, regidas por funções socialmente estipuladas. Exemplos de obras voltadas à distração do entretenimento, à função religiosa, ou da obra enquanto mercadoria exprime aquela dominância da esfera heterônoma, interpretada por Adorno como momentos reacionários na história da arte. No entanto, tais momentos oscilam entre a dominação das funções sociais e a reação de libertação das finalidades empíricas. Na antiguidade a oscilação variou entre a dominância da função religiosa nas obras e a respectiva reação de secularização na arte. Entre a idade média e o período do Renascimento observa-se semelhante movimento de secularização, radicalizado no período moderno, no qual sob a idéia de humanidade e no pressuposto da emancipação da arte, erigiram-se os movimentos que abriram o espaço de sua autonomia. Pretendeu-se na modernidade, a partir do processo de construção de seu conceito, a libertação plena da experiência artística, na tentativa de destacar a esfera da arte de toda finalidade empírica. E nesse sentido, para Adorno, floresceu o momento de pureza e de superioridade na manifestação cultural humana, mesmo que esta tenha sido efêmera. A experiência autônoma da arte afasta da obra o caráter imediato da fruição atrelada ao elemento empírico, reservando outro nível de satisfação estética. Tal satisfação exige, do produtor ou do contemplador desse modelo de arte, uma inserção concentrada na totalidade da composição formal que, despertando a consciência da contrariedade do Outro na obra, do elemento de negação aos antagonismos da realidade, pode sublimar os anseios de toda uma coletividade na instância subjetiva apaziguadora dos instintos. Consagra, além do mais, a possibilidade da afirmação do indivíduo autônomo, na medida em que a arte legítima carrega um teor de verdade, um tipo de conhecimento que libera o horizonte da cultura da dominação ideológica. Todavia, a esfera autônoma da arte no movimento da modernidade, personificada no emblema da arte pela arte pretendeu fechar-se 1160 em si mesma num reino de liberdade, num esforço de extirpar todo o interesse ou todo o envolvimento da faculdade de apetição no conjunto da obra. Essa direção tomada na modernidade fora influenciada, em grande medida, pela concepção kantiana da complacência desinteressada no juízo gosto, fundador do contato filosófico do belo na arte. A crítica de Adorno à satisfação desinteressada articula-se na consideração do elemento não artístico envolvido com a arte, justamente o aspecto psicológico que traslada da pulsão à sublimação, que concede- diferente da posição de Kant- um nível de satisfação no momento estético que, contudo, não se vincula às amarras dos prazerem em relação aos sentidos imediatos. No cume histórico do movimento moderno da arte, surge a incerteza do “para que” estético, diante da proliferação nascente da indústria cultural. A cultura burguesa que outrora ratificou as pretensões da emancipação da arte, agora trama uma reconciliação ilusória e forçada entre a obra de arte e a dimensão da eficácia social. O próprio conceito da autonomia moderna da arte fora abalado pela incerteza de seus pressupostos, por perder de vista o elemento de negação ao Outro, responsável pelas aspirações de sua liberdade. Adorno observa que esse movimento inaugura a época contemporânea, marcada pela decadência da arte superior e legítima, pela falência dos valores verdadeiros da cultura. A crítica da cultura de massa situa-se como análise do retorno do domínio da heteronomia, das funções sociais que determinam o cenário da produção de artefatos que não podem mais aspirar pelo título de legítima arte. A indústria dos bens de consumo na cultura de massa alia-se com a ideologia dominante e favorece a perpetuação da alienação dos sujeitos na sociedade capitalista. Se outrora o modelo de arte autônoma revelou a proposta de independência, de emancipação em relação às amarras da eficácia social, na contemporaneidade o que se observa, segundo Adorno, é a liquidação do indivíduo e a domesticação sistemática da consciência do mesmo. A transformação da obra de arte em mercadoria teve como implicação o processo de “desartificação” (Entkunstung), ou seja, o processo 1161 pelo qual a arte deixa de ser o que é e perde a sua especificidade. A constatação da decadência da arte e de seu possível aniquilamento, a partir de todas as considerações até aqui resumidamente expostas, entram em relevo diante do diagnóstico pessimista do autor. Para além da situação contemporânea, além da hegemonia da indústria cultural, há ainda o resquício da possibilidade de uma autêntica arte, vinculada, no entanto a movimentos desprovidos da adesão coletiva, confinados em grupos marginais, ofuscados pela massificação padrão da cultura. Voltemos agora a atenção para a inserção da música dentro do contexto contemporâneo da arte. No texto O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição, Adorno observa o fenômeno musical situado na indústria cultural e estabelece a dicotomia entre a música séria e a música ligeira, ambas, porém, já inseridas nos novos meios de produção e reprodução de obras musicais sujeitas, portanto, aos mecanismos de manipulação regidos pela dinâmica de mercado. Adorno inicia o texto em questão com uma definição geral do fenômeno musical, qual seja: (...) esta experiência ambivalente que o gênero humano fez no limiar da época histórica, a saber: a música constitui, ao mesmo tempo, a manifestação imediata do instinto humano e a instância própria para o seu apaziguamento (ADORNO, 1996, p. 65) Acrescentando a esta primeira caracterização geral dos fenômenos musicais, Adorno refere-se -condizente ao tema- ao pensamento platônico e a constituição da música séria no ocidente. Todavia Platão chama a atenção para o aspecto do encantamento dos sentidos como efeito das manifestações musicais que, entretanto, deveriam ser devidamente controlados, demonstrando uma face disciplinar que esse tipo de expressão deveria originar. Parece que a música séria no ocidente se forma assimilando tal aspecto censurado na visão platônica, qual seja, o prazer dos sentidos no qual se conectam a variedade de 1162 construções melódicas e harmônicas capazes de seduzir as sensações do ouvinte. Mas esse aspecto do encantamento sensitivo floresce na “grande música” do ocidente conjugado com a disposição expressiva que conduz -na produção e na contemplação- ao momento da síntese das partes aparentes e atrativas da música. Tal momento corresponde, portanto, a uma atividade de abstração que tem por finalidade encontrar uma unidade consumada como totalidade, transcendente aos estímulos que se encerram nas sensações e no prazer do corpo. Essa profundidade alcançada por mediação de uma síntese da partes atrativas do fenômeno musical é reflexo da apreciação subjetiva do ouvinte que, livremente, pode traçar os critérios e exigências necessárias que legitimam um tipo sonoro convencionalmente estipulado e justificado: a música séria. A esfera da música séria se caracteriza por ser uma determinada forma de produção e contemplação musical ligada uma liberdade de ajuizamento do fenômeno. A convenção dos valores que denotam legitimidade ao objeto musical, possibilitando classificá-lo como obra artística e música séria, só se realiza pela livre condição de ajuizamento subjetivo dos ouvintes, ou seja, pela predominância da autonomia no processo artístico. A profundidade e a abstração do aspecto formal no fenômeno musical têm um peso determinante na percepção do fenômeno legítimo da música, visto que as partes ligadas ao atrativo sensível são avaliadas segundo sua possibilidade de condução a um momento posterior de apreciação abstrata do objeto, na percepção do todo, na unidade supra-sensível da música. Os critérios e as exigências que servem de instrumentos avaliatórios das obras artísticas são estipulados fora do alcance da coesão social. Com efeito, as justificativas do gosto partem da livre posição daqueles indivíduos que se esquivam do momento reacionário na história da arte, sendo que suas convenções são o reflexo do debate de consciências artísticas pertencentes à esfera da música superior. 1163
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