Marie-Louise Von Franz PUER AETERNUS A Luta do Adulto Contra o Paraíso da Infância Edições Paulinas Tradução Jane Maria Corrêa Na busca de sua alma e do sentido de sua vida, o homem descobriu novos caminhos que o levam para a sua interioridade: o seu próprio espaço interior torna-se um lugar novo de experiência. Os viajantes desses caminhos nos revelam que somente o amor é capaz de gerar a alma, mas também o amor precisa da alma. Assim, em lugar de buscar causas, explicações psicopatológicas às nossas feridas e aos nossos sofrimentos, precisamos, em primeiro lugar, amar a nossa alma, assim como ela é. Deste modo é que poderemos reconhecer que estas feridas e estes sofrimentos nasceram de uma falta de amor. Por outro lado, revelam-nos que a alma se orienta para um centro pessoal e transpessoal, para a nossa unidade e a realização de nossa totalidade. Assim, a nossa própria vida carregará em si um sentido, o de restaurar a nossa unidade primeira. Finalmente, não é o espiritual que aparece primeiro, mas o psíquico, e depois o espiritual. É a partir do olhar do espiritual interior que a alma toma seu sentido, o que significa que a psicologia pode de novo estender a mão à teologia. Esta perspectiva psicológica nova é fruto do esforço para libertar a alma da dominação da psicopatologia, do espírito analítico e do psicologismo, para que volte a si mesma, à sua própria originalidade. Ela nasceu de reflexões durante a prática psicoterápica, e está começando a renovar o modelo e a finalidade da psicoterapia. É uma nova visão do homem na sua existência cotidiana, do seu tempo, e dentro de seu contexto cultural, abrindo dimensões diferentes de nossa existência para podermos reencontrar a nossa alma. Ela poderá alimentar todos aqueles que são sensíveis à necessidade de colocar mais alma em todas as atividades humanas. A finalidade da presente coleção é precisamente restituir a alma a si mesma e "ver aparecer uma geração de sacerdotes capazes de entender novamente a linguagem da alma", como C. G. Jung o desejava. Léon Bonaventure AGRADECIMENTOS A substância destes capítulos foi apresentada como doze palestras no C. G. Jung Institute de Zurique, durante o inverno de 1959-1960. Desejo agradecer a Una Thomas pela fiel transcrição sobre a qual o texto revisado se baseou. Desejo também agradecer a Patrícia Berry e Valery Donleavy pela forma final em que este seminário aparece. Marie-Louise von Franz Zurique Janeiro de 1970 Capítulo 1 Puer aeternus é o nome de um deus da antigüidade. As palavras vêm de Metarmophoses de Ovídio1 e são aplicadas ao deus-criança nos mistérios eleusinianos. Ovídio fala do deus- criança Iaco, dirigindo-se a ele como puer aeternus e cultuando- o em seu papel nesses mistérios. Posteriormente, o deus-criança foi identificado com Dionísio e com o deus Eros. Ele é o jovem divino que, de acordo com esse típico mistério eleusiniano de culto à mãe, veio ao mundo em uma noite para ser o redentor. E o deus da vida, da morte e da ressurreição — o deus da juventude divina, correspondente aos deuses orientais Tamuz, Átis e Adônis. O título puer aeternus, portanto, significa "juventude eterna", mas também o usamos para indicar certo tipo de jovem que tem um complexo materno fora do comum e que, portanto, comporta-se de certas maneiras típicas, que eu gostaria de caracterizar do seguinte modo: Em geral, o homem que se identifica com o arquétipo do puer aeternus permanece durante muito tempo como adolescente, isto é, todas aquelas características que são normais em um jovem de dezessete ou dezoito anos continuam na 1 Ovídio, Metamorphoses, IV, 18-20. vida adulta, juntamente com uma grande dependência da mãe, na maioria dos casos. Os dois distúrbios típicos do homem que não se separou da mãe, são, de acordo com Jung2, o homossexualismo e o complexo de Don Juan. No último caso, a imagem da mãe — a imagem da mulher perfeita que tudo dá ao homem, e que não tem nenhum defeito — é procurada em todas as mulheres. Ele procura uma mãe-deusa, portanto, cada vez que se apaixona por uma mulher, mas logo descobre que ela é um ser humano comum. Por ter sido atraído por ela sexualmente, toda a paixão de repente desaparece e ele decepciona-se e a deixa, apenas para projetar a imagem novamente em outra mulher, sempre repetindo a mesma história. Eternamente sonha com a mulher maternal que o tomará nos braços e realizará todos os seus desejos. Isto é freqüentemente acompanhado pela atitude romântica da adolescência. Geralmente, grandes dificuldades de adaptação a situações sociais são encontradas. Em alguns casos, há um tipo de individualismo associai: sendo alguém especial, ele não tem necessidade de adaptar-se, pois as pessoas é que têm que adaptar-se a um gênio como ele, e assim por diante. Além disso, assume uma atitude arrogante em relação aos outros, devido tanto ao complexo de inferioridade como a falsos sentimentos de superioridade. Tais pessoas geralmente têm grande dificuldade em encontrar o tipo certo de 2 Carl Gustave Jung, Symbols of Transformation, vol. 5, Collected Works. Princeton University Press, 1956, 2a ed., 1967, § 527. trabalho, pois tudo que aparece nunca é exatamente o que queriam ou procuravam. Há sempre um "cabelo na sopa". A mulher nunca é a ideal; ela é legal como namorada, mas... Há sempre um "mas" que não o deixa casar-se ou comprometer-se. Isso tudo leva a uma forma de neurose que H. G. Baynes descreveu como "vida provisória"; isto é, a estranha atitude é a sensação que a mulher não é ainda a que ele realmente quer, e há sempre a fantasia que em algum momento no futuro a "coisa certa" aparecerá. Se essa atitude se prolonga, significa uma constante recusa interior de viver o presente. Seguindo esta neurose, encontramos freqüentemente, em nível maior ou menor, um redentor ou um portador do complexo de Messias, que tem o pensamento secreto de algum dia salvar o mundo. Crê que a última palavra em filosofia, ou religião, ou política, ou arte, ou alguma outra coisa, será descoberta por ele. Isso pode progredir para uma megalomania patológica típica, ou então pode haver alguns indícios da idéia que o tempo dele "ainda não chegou". A única situação que esse tipo de homem teme é a de se ligar a qualquer coisa. Há um medo terrível de se prender, de entrar no tempo e no espaço totalmente, e de ser o ser humano específico que ele é. Há sempre o medo de ser pego em uma situação da qual seja impossível sair. Toda definição é para ele um inferno. Ao mesmo tempo, há sempre algo altamente simbólico — principalmente uma atração por esportes perigosos, particularmente aviação e alpinismo — de modo que nesses esportes ele se encontra o mais alto possível, simbolizando a separação da mãe, isto é, da terra, da vida comum. Se esse tipo de complexo for muito pronunciado, muitos homens que o possuem encontrarão a morte prematura em acidentes de avião e de alpinismo. É um desejo exteriorizado que se expressa dessa forma. Uma representação dramática do que a aviação realmente significa para opuer é apresentada no poeira de John Magee. Logo após escrever o poema, Magee morreu em um acidente aéreo. Vôo Alto Oh! Ultrapassei as imperiosas fronteiras da terra, E dancei nos céus com alegres asas de prata; Em direção ao sol subi, e com o coração leve fui parte das alturas, das nuvens entre as quais passa o sol, e fiz muitas coisas Que você nunca sonharia — girei e subi direto e balancei-me no ar, Bem alto no silêncio iluminado pelo sol. Planando lá, Persegui o vento que assobiava, e bruscamente virei e levei Meu ansioso aparelho através de corredores no ar suspensos. Para cima ao longo do imenso, delirante e ardente azul Encontrei-me nas alturas varridas pelo vento, com o coração cheio de graça, Onde nunca voaram os pássaros, nem mesmo a águia, E, com minha mente elevada aos céus, e com o silêncio, caminhei. Pelo nunca antes ultrapassado espaço sagrado, Estendi a mão e toquei a face de Deus.3 Pueri geralmente não gostam de esportes que requerem paciência e treinamento longo, pois o puer aeternus — no sentido negativo da palavra — é geralmente muito impaciente por temperamento. Conheço um jovem, um exemplo clássico de puer aeternus, que praticou por muito tempo o alpinismo, mas que detestava tanto carregar mochila, que preferia treinar-se a dormir na chuva ou na neve. Ele fazia para si um buraco na neve e enrolava-se em uma capa de chuva, e com um tipo de respiração de yoga, era capaz de dormir ao ar livre. Também se treinava a passar praticamente sem comida, simplesmente para evitar carregar peso. Ele vagou durante anos por todas as montanhas da Europa e de outros continentes, dormindo sob as árvores ou na neve. De certo modo, levou uma existência bastante heróica, apenas para não ser obrigado a pernoitar em uma cabana ou carregar mochila. Pode-se dizer que isto foi simbólico, pois um homem assim, na realidade, não quer ser sobrecarregado com nenhum tipo de peso; a única coisa que ele recusa totalmente é ter responsabilidade para com qualquer coisa, ou a carregar o peso de alguma situação. 3 John Gillespie Magee, Jr., "High Flight", in P. Edward Ernest org., The Family Álbum of Favorite Poems, Grosset & Dunlap, New York, 1959. Em geral, a qualidade positiva de tais jovens é um certo tipo de espiritualidade que vem de um contato relativamente próximo com o inconsciente coletivo. Muitos têm o charme da juventude e a estimulante característica da champanha. Os pueri aeterni são geralmente muito agradáveis para conversar; eles usualmente têm assuntos interessantes e tem um efeito estimulante sobre o ouvinte; não gostam de situações convencionais; fazem perguntas profundas e vão direto à verdade; geralmente estão à procura da religião autêntica, uma procura típica do final da adolescência. Geralmente o charme juvenil do puer aeternus se prolonga até os últimos estágios da vida. Contudo, há outro tipo de puer que não exibe o charme da juventude eterna e nem o arquétipo da juventude divina brilha nele. Pelo contrário, vive em estado de alheamento, o que é também uma característica típica da adolescência: o jovem sonolento, indisciplinado, de pernas longas que simplesmente fica à toa, com a mente vagando, de modo que às vezes sente-se vontade de jogar um balde d'água nele para fazê-lo acordar. O ar desligado é apenas um aspecto exterior, contudo, e se você consegue penetrar em seu íntimo encontrará uma vida fantasiosa intensa. O que expus acima é um resumo das principais características de certos jovens que sofrem de complexo materno e que, por causa dele, identificam-se com as características do puer. Dei um quadro negativo dessas pessoas porque é assim que eles se mostram quando vistos de maneira superficial, mas, como se vê, não explicamos a causa do problema. A questão que queremos esclarecer nesta palestra é a causa pela qual este tipo de problema, do homem que não se separou da mãe, tornou-se comum em nossos dias. Como se sabe, o homossexualismo — eu não acho que o Don Juanismo seja tão comum em nossos dias — está aumentando cada vez mais; até os adolescentes mostram essa tendência, e me parece que o problema do puer aeternus está se tornando cada vez mais premente. Sem dúvida, as mães sempre tentaram manter os filhos no ninho, e os filhos sempre tiveram dificuldades de se libertar e muitas vezes continuam a aproveitar as benesses do lar; ainda assim não se explica por que esse problema natural tenha se tornado um problema tão sério em nossos dias. Creio que esta é uma questão profunda e importante que devemos nos colocar porque o resto é mais ou menos óbvio. O homem que possui o complexo materno sempre terá de lutar com suas tendências de se tornar um puer aeternus. Qual é a cura? Pode-se perguntar. Se um homem descobre que tem um complexo materno, que é algo que aconteceu a ele—não é algo que ele mesmo provocou — o que ele pode fazer? Em Symbols of Transformation, Jung falou sobre a cura — pelo trabalho — e tendo dito isso, hesitou e pensou: "Será que realmente é assim tão simples? É esta a única cura? Posso colocá-lo deste modo?" Mas trabalho é uma palavra tão desagradável para o puer que ele não suporta ouvi-la, e o Dr. Jung chegou a conclusão de que o que disse estava
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