Perspectiva geral I URANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX, o foco central da biologia foi o gene. Agora, na primeira metade do século XXI, o foco deslocou-se para as neuro- Dciências e especificamente para a biologia da mente. É necessário entender os processos pelos quais os seres humanos percebem, agem, aprendem e lembram. Como o encéfalo – um órgão pesando pouco mais de 1 kg – concebe o infinito, descobre no- vos conhecimentos e produz a notável individualidade dos pensamentos, sentimentos e ações humanos? Como essas extraordinárias capacidades mentais estão distribuídas nesse órgão? Como os diferentes processos mentais estão localizados em combinações específicas de regiões no encéfalo? Quais regras relacionam a organização anatômica e a fisiologia celular de uma região com seu papel específico na atividade mental? Em que grau os processos mentais estão inseridos em circuitos na arquitetura neural do encéfa- lo? Em que os genes contribuem para o comportamento e como a expressão gênica nas células nervosas é regulada por processos do aprendizado e do desenvolvimento? Como a experiência altera a forma pela qual o encéfalo processa eventos subsequentes, e em que grau esse processo é inconsciente? Finalmente, quais as bases neurais subjacentes ao desenvolvimento de doenças neurológicas e psiquiátricas? Nesta seção introdutória dos Princípios de Neurociências, tais questões serão discutidas. Com essa discussão, será descrito como as Neurociências estão tentando ligar a lógica dos circuitos neurais à men- te – como as atividades das células nervosas dentro de circuitos neurais definidos estão relacionadas à complexidade dos processos mentais. Nas últimas décadas, avanços tecnológicos abriram os horizontes para o estudo científico do encéfalo. Hoje, é possível unir a dinâmica molecular de circuitos de células interconectadas às representações internas de atos motores e de percepção no encéfalo e relacionar esses mecanismos internos ao comportamento observado. Novas técnicas de imagem permitem a visualização do encéfalo humano em ação – para identificar regiões específicas do encéfalo associadas a determinados modos de pensamento e de sentimen- to e seus padrões de interconexões. Na primeira parte deste livro, será considerado o grau em que funções mentais po- dem ser localizadas em regiões específicas do encéfalo. Também será examinado em que extensão o comportamento assim localizado pode ser compreendido em termos de pro- priedades de células nervosas individuais e suas interconexões em regiões específicas do encéfalo. Nas últimas partes do livro, serão examinadas em detalhe as funções cognitivas e de afeto do encéfalo: percepção, ação, motivação, emoção, desenvolvimento, aprendi- zado e memória. O encéfalo humano é uma rede de mais de 100 bilhões de células nervosas indi- viduais interconectadas em sistemas – circuitos neurais – que constroem a percepção do mundo externo, fixam a atenção e controlam a maquinaria das ações humanas. Um primeiro passo em direção à compreensão da mente, portanto, é aprender como os neu- rônios estão organizados em vias sinalizadoras e como eles se comunicam por meio da transmissão sináptica. Uma das principais ideias desenvolvidas neste livro é que a espe- cificidade das conexões sinápticas estabelecidas durante o desenvolvimento representa a base da percepção, da ação, da emoção e do aprendizado. Também é necessário com- preender os determinantes inatos (genéticos) e ambientais do comportamento. Especi- ficamente, o que se quer saber é como os genes contribuem para o comportamento. O comportamento em si, naturalmente, não é herdado – o que é herdado é o DNA. Genes codificam proteínas, que são importantes para o desenvolvimento e a regulação de cir- Kandel_01.indd 3 06/06/14 09:54 cuitos neurais que representam a base do comportamento. O ambiente, que começa a exercer sua influência no útero, torna-se de importância fundamental após o nascimento, e contingências ambientais podem, por sua vez, influenciar o comportamento alterando a expressão gênica. Por meio da união da biologia molecular, da neurofisiologia, da anatomia, da biolo- gia do desenvolvimento e da biologia celular com o estudo da cognição, da emoção e do comportamento em animais e seres humanos, as neurociências modernas deram origem a uma nova ciência da mente. Junto com observações clínicas inteligentes, as neuroci- ências modernas reforçaram a ideia, inicialmente proposta por Hipócrates mais de dois milênios atrás, de que o estudo adequado da mente inicia com o estudo do encéfalo. A psicologia cognitiva e a teoria psicanalítica, por sua vez, têm enfatizado a diversidade e a complexidade da experiência mental humana. Ao enfatizar a estrutura mental funcional e a representação interna, a psicologia cognitiva tem ressaltado a lógica das operações mentais e das representações internas. A psicologia cognitiva experimental e a psico- terapia clínica podem ser agora reforçadas por informações acerca da neurociência do comportamento e pelas imagens de processos mentais atuando em tempo real. A tarefa para os próximos anos é produzir um estudo dos processos mentais com base nas neuro- ciências empíricas, e ainda assim totalmente preocupado com os problemas de como são gerados as representações internas e os estados da mente. Parte I Capítulo 1 O encéfalo e o comportamento Capítulo 2 As células nervosas, os circuitos neurais e o comportamento Capítulo 3 Os genes e o comportamento Kandel_01.indd 4 06/06/14 09:54 1 O encéfalo e o comportamento Duas visões opostas acerca das relações entre o encéfalo e o didos como a quintessência do comportamento humano comportamento têm sido consideradas – o pensamento, a linguagem e a criação de obras de arte. O encéfalo tem duas regiões funcionalmente distintas Como corolário, todos os transtornos do comportamento A primeira forte evidência da localização das capacidades que caracterizam as doenças psiquiátricas – transtornos cognitivas originou-se de estudos de distúrbios da afetivos (sentimento) e cognitivos (pensamento) – resultam linguagem de distúrbios da função encefálica. Os estados afetivos também são mediados por sistemas Como os bilhões de células nervosas individuais pro- locais especializados no encéfalo duzem comportamentos e estados cognitivos, e como es- sas células são influenciadas pelo ambiente, que inclui Os processos mentais são o produto final de interações entre a experiência social? É tarefa das neurociências explicar unidades elementares de processamento no encéfalo o comportamento em termos de atividade encefálica, e o progresso das neurociências na tentativa de explicar o com- portamento humano é um dos principais temas deste livro. ÚLTIMA FRONTEIRA DAS CIÊNCIAS BIOLÓGICAS – o desa- As neurociências devem confrontar continuamente fio final – é compreender a base biológica da cons- certas questões fundamentais. Determinado processo men- A ciência e os processos encefálicos pelos quais o ser tal é executado em regiões específicas ou envolve o encéfa- humano sente, age, aprende e lembra. Durante as últimas lo como um todo? Se um processo mental pode estar loca- décadas, uma notável unificação dentro das ciências bioló- lizado em regiões encefálicas distintas, qual a relação entre gicas preparou o cenário para a formulação desse grande as funções dessas regiões na percepção, no movimento ou desafio. A capacidade de sequenciar genes e inferir a se- no pensamento e a anatomia e a fisiologia de tais regiões? A quência de aminoácidos nas proteínas que eles codificam compreensão dessas relações será mais provável por meio tem revelado semelhanças imprevistas entre as proteínas da análise de cada região como um todo ou do estudo das no sistema nervoso e aquelas encontradas em outras partes células nervosas individuais? do organismo. Como resultado, tornou-se possível estabe- Para responder a essas questões, deve-se examinar lecer um plano geral para a função celular, um plano que como as neurociências modernas descrevem a linguagem, fornece um arcabouço conceitual comum para toda a biolo- um dos comportamentos cognitivos mais humanos. Ao gia celular, incluindo a neurociência celular. O atual desafio fazê-lo, tem-se como foco o córtex cerebral, a parte do encé- para a unificação dentro da biologia, delineado neste livro, falo mais altamente desenvolvida nos seres humanos. Será é unir o estudo do comportamento – a ciência da mente – e visto como o córtex é organizado em regiões funcionalmen- as neurociências – a ciência do encéfalo. te distintas, cada uma constituída por grandes grupos de Tal abordagem unificada, na qual mente e corpo não neurônios, e como o aparato neural de um comportamento são vistos como entidades separadas, apoia-se na visão de altamente complexo pode ser analisado em termos da ati- que todo o comportamento é resultado da função encefá- vidade de conjuntos específicos de neurônios interconecta- lica. Aquilo que costuma ser chamado de “mente” é um dos dentro de regiões específicas. No Capítulo 2, descreve- conjunto de operações executadas pelo encéfalo. Processos -se como os circuitos neurais funcionam no nível celular, encefálicos formam a base não apenas dos comportamen- utilizando-se um comportamento reflexo simples para tos motores, como caminhar e comer, mas também de atos mostrar como as interações de sinais sensoriais e motores e comportamentos cognitivos complexos, que são enten- culminam em um ato motor. Kandel_01.indd 5 06/06/14 09:54 6 Eric R. Kandel, James H. Schwartz, Thomas M. Jessell, Steven A. Siegelbaum & A. J. Hudspeth Duas visões opostas acerca das relações demonstraram que os fármacos não atuam em um lugar entre o encéfalo e o comportamento qualquer sobre uma célula, mas, sim, ligam-se a receptores individuais geralmente localizados na superfície da mem- têm sido consideradas brana celular. Essa nova informação levou à descoberta de A maneira como as células nervosas, o encéfalo e o com- que células nervosas podem se comunicar umas com as ou- portamento são vistos emergiu durante o século XX a par- tras por meios químicos. tir da síntese de cinco tradições experimentais: anatomia, O pensamento psicológico em relação ao comporta- embriologia, fisiologia, farmacologia e psicologia. mento data do início da ciência ocidental, quando os an- No século II, o médico grego Galeno propôs que os tigos filósofos gregos especularam acerca das causas do nervos conduziriam um fluido secretado pelo encéfalo e comportamento e da relação da mente com o encéfalo. No pela medula espinal para os tecidos na periferia. Sua visão século XVII, René Descartes distinguiu corpo e mente. Na dominou a medicina ocidental até que o microscópio reve- visão dualística de Descartes, o encéfalo medeia a percep- lou a verdadeira estrutura das células no tecido nervoso. ção, a ação motora, a memória, o apetite e as paixões – tudo Ainda assim, o tecido nervoso não se tornou tema de uma o que pode ser encontrado nos animais inferiores. Contu- ciência especial até o final do século XIX, quando o italiano do, a mente – as funções mentais superiores, a experiência Camillo Golgi e o espanhol Santiago Ramón y Cajal produ- consciente característica do comportamento humano – não ziram descrições detalhadas e exatas das células nervosas. é representada no encéfalo ou em qualquer outra parte do Golgi desenvolveu um método para corar os neurô- corpo, mas na alma, uma entidade espiritual que se comu- nios com sais de prata, o que revelava toda sua estrutura ao nica com a maquinaria do encéfalo por meio da glândula microscópio. Ele podia ver claramente que cada neurônio pineal, uma pequena estrutura na linha média do encéfalo. tinha um corpo celular e dois tipos de processos: dendritos Posteriormente, no século XVII, Baruch Spinoza começou que se ramificavam, em um lado, e um longo axônio, como a desenvolver uma visão unificada da mente e do corpo. um cabo, no outro lado. Utilizando a técnica de Golgi, Ra- No século XVIII, as ideias ocidentais acerca da mente món y Cajal considerou que o tecido nervoso não é um sin- dividiram-se em novas linhas. Os empiricistas acreditavam cício, uma rede contínua de elementos, mas uma rede de que o encéfalo era inicialmente uma tábua rasa (tabula rasa), células individuais. Durante seu trabalho, Ramón y Cajal que posteriormente seria preenchida com a experiência desenvolveu alguns conceitos-chave e muitas das evidên- sensorial, enquanto os idealistas, em especial Immanuel cias iniciais para a doutrina neuronal – o princípio de que Kant, acreditavam que a percepção humana do mundo era neurônios individuais são os blocos construtivos elementa- determinada por características inerentes da mente ou do res e os elementos sinalizadores do sistema nervoso. encéfalo. Na metade do século XIX, Charles Darwin esta- Na década de 1920, o suporte para a doutrina neuronal beleceu o cenário para a compreensão moderna do encéfa- originou-se dos estudos do embriologista norte-americano lo como a origem de todo o comportamento. Ele também Ross Harrison, que mostrou que os dendritos e o axônio considerou a ideia ainda mais radical de que os animais crescem a partir do corpo celular e que eles o fazem mes- poderiam servir como modelos para o estudo do compor- mo quando cada neurônio está isolado dos outros, em uma tamento humano. Assim, o estudo da evolução originou cultura de tecidos. Harrison também confirmou a sugestão a etologia, a investigação do comportamento dos animais de Ramón y Cajal de que a ponta do axônio origina uma em seu ambiente natural, e, mais tarde, a psicologia experi- expansão, o cone de crescimento, que leva o axônio em de- mental, o estudo do comportamento humano e animal em senvolvimento a seu alvo, seja outra célula nervosa ou um condições controladas. No início do século XX, Sigmund músculo. A prova final e definitiva da doutrina neuronal Freud introduziu a psicanálise. Como primeira psicologia surgiu em meados da década de 1950, com a introdução da cognitiva sistemática, a psicanálise estruturou os enormes microscopia eletrônica. Um estudo que foi um marco nesse problemas confrontados na tentativa de compreender a tema foi realizado por Sanford Palay, que demonstrou, sem mente humana. qualquer dúvida, a existência de sinapses, regiões especia- As tentativas de integrar conceitos biológicos e psico- lizadas que permitem a sinalização química ou elétrica en- lógicos no estudo do comportamento iniciaram por volta tre neurônios. de 1800, quando Franz Joseph Gall, um médico e neuroana- A investigação fisiológica do sistema nervoso iniciou tomista vienense, propôs duas ideias radicalmente novas. no final do século XVIII, quando o médico e físico italiano Primeiro, ele defendia que o encéfalo é o órgão da mente Luigi Galvani descobriu que os músculos e as células ner- e que todas as funções mentais emanam dele. Ao fazê-lo, vosas produzem eletricidade. A eletrofisiologia moderna rejeitava a ideia de que mente e corpo são entidades sepa- surgiu do trabalho de três fisiologistas alemães do século radas. Segundo, ele argumentava que o córtex cerebral não XIX – Johannes Müller, Emil du Bois-Reymond e Hermann funciona como um simples órgão, mas contém dentro de von Helmholtz – que conseguiram medir a velocidade de si muitos órgãos, e que determinadas regiões do córtex ce- condução da atividade elétrica ao longo de axônios das cé- rebral controlam funções específicas. Gall enumerou pelo lulas nervosas e mostraram também que a atividade elétri- menos 27 regiões, ou órgãos, distintos no córtex cerebral; ca de uma célula nervosa afeta de forma previsível a ativi- posteriormente, muitas outras regiões foram adicionadas, dade de uma célula adjacente. cada uma delas correspondendo a uma faculdade mental A farmacologia causou seu primeiro impacto na com- específica. Gall atribuiu processos intelectuais, como a ca- preensão do sistema nervoso e do comportamento no fi- pacidade de avaliar causalidade, de calcular e de perceber nal do século XIX, quando Claude Bernard, na França, ordem, à parte frontal do encéfalo. Características instin- Paul Ehrlich, na Alemanha, e John Langley, na Inglaterra, tivas, como o amor romântico e a combatividade, foram Kandel_01.indd 6 06/06/14 09:54 Princípios de Neurociências 7 atribuídas à parte posterior do encéfalo. Mesmo os mais abstratos dos comportamentos humanos – generosidade, Esperança introspecção e religiosidade – foram colocados em uma Sublimidade parte do encéfalo (Figura 1-1). Embora a teoria de Gall da localização fosse algo pres- ciente, sua abordagem experimental para a localização das funções era extremamente ingênua. Em vez de localizar Percepção de música funções de forma empírica pela observação do encéfalo, tentando correlacionar defeitos nos atributos mentais com Forma lesões em regiões específicas após um tumor ou acidente vascular encefálico, Gall desprezou todas as evidências Linguagem derivadas de exames de lesões encefálicas, descobertas clinicamente ou produzidas cirurgicamente em animais experimentais. Influenciado pela fisiognomia, uma crença popular com base na ideia de que características faciais re- velam o caráter, Gall acreditava que saliências e sulcos na superfície do crânio de pessoas bem dotadas com determi- nadas faculdades identificavam os centros dessas faculda- des no encéfalo. Ele presumia que o tamanho de uma área no encéfalo estivesse relacionado com a faculdade mental representada naquela área. Assim sendo, o exercício de certa faculdade mental causaria o crescimento da região Figura 1-1 Um dos primeiros mapas para a localização das encefálica correspondente, e esse crescimento, por sua vez, funções no encéfalo. De acordo com a doutrina da frenologia causaria a protrusão da porção do crânio localizada sobre no século XIX, traços complexos como combatividade, espiritua- essa região. lidade, esperança e consciência são controlados por áreas espe- Gall teve essa ideia inicialmente quando criança, ao cíficas no encéfalo, que se expandem à medida que tais traços observar que seus colegas que apresentavam ótimo desem- se desenvolvem. Acreditava-se que esse aumento de áreas lo- calizadas no encéfalo produziria calombos e depressões carac- penho na memorização de temas estudados na escola ti- terísticos no crânio, a partir dos quais se poderia determinar o nham olhos salientes. Ele concluiu que isso era o resultado caráter de um indivíduo. Esse mapa, obtido de um desenho do de um superdesenvolvimento de regiões na parte frontal início do século XIX, pretende mostrar 42 faculdades intelectuais do encéfalo, envolvidas na memória verbal. Ele seguiu de- e emocionais em áreas distintas do crânio e do córtex cerebral senvolvendo essa ideia quando, como um jovem médico, subjacente. trabalhou em um asilo para doentes mentais em Viena. Ali, ele começou a estudar pacientes que sofriam de monoma- nia, um transtorno caracterizado por um interesse exage- funções igualmente. Assim, em 1823, Flourens escreveu: rado em alguma ideia-chave ou uma compulsão profunda “Todas as percepções, todas as vontades ocupam a mesma de entregar-se a determinado comportamento – roubo, as- base nesses órgãos (cerebrais); as faculdades de perceber, sassinato, eroticismo, religiosidade extrema. Ele raciocinou de conceber, de desejar constituem meramente uma facul- que, uma vez que o paciente apresentava desempenho ra- dade que é, portanto, essencialmente única”. zoável em todos os outros comportamentos, o defeito no A rápida aceitação dessa crença, mais tarde denomina- encéfalo deveria ser discreto e, em princípio, poderia ser lo- da visão holística do encéfalo, baseou-se apenas parcialmen- calizado pelo exame do crânio dos pacientes. Com base em te no trabalho experimental de Flourens. Ela representava seus achados, Gall desenhou mapas corticais como aqueles uma reação cultural contra a visão materialista de que a mostrados na Figura 1-1. Os estudos de Gall das funções mente humana é um órgão biológico. Representava tam- encefálicas localizadas levaram à frenologia, uma disciplina bém uma rejeição da noção de que não há alma, de que preocupada com a determinação da personalidade e do ca- todos os processos mentais podem ser reduzidos a uma ráter com base na forma detalhada do crânio. atividade dentro do encéfalo e de que a mente pode ser me- No final da década de 1820, as ideias de Gall foram lhorada pelo exercício, ideias inaceitáveis para o sistema submetidas à análise experimental pelo fisiologista fran- religioso e a aristocracia que então governavam a Europa. cês Pierre Flourens. Pela destruição sistemática, nos en- A visão holística, no entanto, foi seriamente desafiada, céfalos de animais experimentais, dos centros funcionais em meados do século XIX, pelo neurologista francês Paul delineados por Gall, Flourens tentou isolar a contribuição Pierre Broca, pelo neurologista alemão Karl Wernicke e de cada “órgão encefálico” para o comportamento. Desses pelo neurologista britânico Hughlings Jackson. Por exem- experimentos, Flourens concluiu que regiões encefálicas plo, em seus estudos sobre a epilepsia focal, uma doença específicas não são responsáveis por comportamentos es- caracterizada por convulsões que iniciam em determinada pecíficos, mas que todas as regiões do encéfalo, especial- parte do corpo, Jackson mostrou que diferentes funções mente os hemisférios cerebrais do prosencéfalo, participam motoras e sensoriais podem ser rastreadas até partes espe- de cada operação mental. Flourens propôs que qualquer cíficas do córtex cerebral. Os estudos regionais de Broca, parte de um hemisfério cerebral é capaz de desempenhar Wernicke e Jackson foram ampliados para o nível celular todas as funções do hemisfério. A lesão em qualquer área por Charles Sherrington e Ramón y Cajal, que defenderam dos hemisférios cerebrais deveria, portanto, afetar todas as a visão da conectividade celular para a função encefálica. De Kandel_01.indd 7 06/06/14 09:54 Consciência Firmeza Ganância Tempo Coerência Discrição Propensão para destruir Ordem Fome e sede Cor Cálculo Autoestima Vaidade Cautela Amizade Alegria Amor parental Ind. Memória de eventos Localização CaAumsalbidilaiddaede Comparação Construtividade Amor conjugal Combatividade Natureza humana Peso Patriotismo Tamanho Benevolência Imitação Idealismo Desejo sexual Amor pela vida Veneração Espiritua- lidade 8 Eric R. Kandel, James H. Schwartz, Thomas M. Jessell, Steven A. Siegelbaum & A. J. Hudspeth acordo com essa visão, neurônios individuais são as uni- Dois aspectos importantes caracterizam a organização dades sinalizadoras do encéfalo; eles estão arranjados em do córtex cerebral. Primeiro, cada hemisfério está relacio- grupos funcionais e conectados uns aos outros de modo nado principalmente com processos sensoriais e motores preciso. Os trabalhos de Wernicke e do neurologista fran- no lado contralateral (oposto) do corpo. Assim, a informa- cês Jules Dejerine, em especial, revelaram que diferentes ção sensorial que alcança a medula espinal a partir do lado comportamentos são produzidos por diferentes regiões en- esquerdo do corpo cruza para o lado direito do sistema cefálicas interconectadas. nervoso em seu caminho para o córtex cerebral. Do mesmo A primeira evidência importante para a localização modo, as áreas motoras no hemisfério direito exercem con- emergiu de estudos sobre como o encéfalo produz a lin- trole sobre os movimentos do lado esquerdo do corpo. O guagem. Antes de serem considerados a relevância clínica segundo aspecto é que os hemisférios, embora semelhantes e os estudos anatômicos, será revisada a estrutura geral do em aparência, não são completamente simétricos em estru- encéfalo. (A organização anatômica do sistema nervoso é tura nem equivalentes em função. descrita em mais detalhes no Capítulo 17.) A primeira forte evidência da localização das O encéfalo tem duas regiões capacidades cognitivas originou-se de estudos funcionalmente distintas de distúrbios da linguagem O sistema nervoso central é uma estrutura bilateral e essen- As áreas do córtex que foram inicialmente identificadas cialmente simétrica, com duas partes principais, a medula como importantes para a cognição estão envolvidas com espinal e o encéfalo. O encéfalo compreende seis estruturas a linguagem. Essas informações originaram-se de estudos principais: o bulbo, a ponte, o cerebelo, o mesencéfalo, o de afasias, um distúrbio de linguagem que ocorre mais fre- diencéfalo e o cérebro (Quadro 1-1 e Figura 1-3). quentemente quando certas áreas do tecido encefálico são Técnicas que utilizam imagens radiográficas tornaram destruídas por um acidente vascular encefálico, a oclusão possível visualizar essas estruturas em indivíduos vivos. A ou a ruptura de um vaso sanguíneo irrigando parte de imagem encefálica é agora comumente utilizada para ava- um hemisfério cerebral. Muitas das descobertas impor- liar a atividade metabólica de regiões definidas do encéfa- tantes no estudo das afasias ocorreram em rápida suces- lo, enquanto os indivíduos estão envolvidos em tarefas es- são durante a última metade do século XIX. Tomados em pecíficas, sob condições controladas. Tais estudos fornecem conjunto, esses avanços formam um dos capítulos mais evidências diretas de que tipos específicos de comporta- excitantes e importantes nas neurociências do comporta- mento envolvem regiões determinadas do encéfalo. Como mento humano. resultado, a ideia original de Gall de que regiões distintas Pierre Paul Broca, um neurologista francês, foi o pri- são especializadas em funções diferentes é agora um dos meiro a identificar áreas específicas do encéfalo relaciona- alicerces das neurociências modernas. das com a linguagem. Broca foi influenciado pelos esforços Estudiosos do encéfalo, utilizando uma abordagem de Gall em mapear as funções superiores no encéfalo; con- de conectividade celular, descobriram que as operações tudo, em vez de correlacionar o comportamento com ca- responsáveis pela capacidade cognitiva humana ocorrem lombos no crânio, ele correlacionou evidências clínicas de principalmente no córtex cerebral, a matéria cinzenta cheia afasia com lesões encefálicas descobertas post-mortem. Em de sulcos que recobre os dois hemisférios cerebrais. Em 1861, ele escreveu: “Eu acreditava que, se houvesse uma cada um dos hemisférios, o córtex que os recobre é dividi- ciência frenológica, seria a frenologia das circunvoluções do nos lobos frontal, parietal, occipital e temporal (ver Figura (no córtex), e não a frenologia dos calombos (na cabeça)”. 1-2B), assim designados em função dos ossos do crânio que Com base nessa percepção, Broca fundou a neuropsicologia, se situam sobre eles. Cada lobo tem diversos dobramentos uma ciência dos processos mentais que ele diferenciou da profundos característicos, uma estratégia evolutiva para frenologia de Gall. empacotar um número maior de células nervosas em um Em 1861, Broca descreveu um paciente, Leborgne, espaço limitado. As partes superiores dessas circunvolu- que, como resultado de um acidente vascular encefálico, ções são denominadas giros, e as fendas são sulcos ou fissu- não podia falar, embora pudesse compreender a lingua- ras. Os giros e os sulcos mais proeminentes, bastante seme- gem perfeitamente bem. Esse paciente não apresentava lhantes de uma pessoa para outra, têm nomes específicos. déficits motores da língua, da boca ou das pregas vocais Por exemplo, o sulco central separa o giro pré-central, uma que pudessem afetar sua capacidade de falar. Na verdade, área relacionada com a função motora, do giro pós-central, ele podia emitir palavras isoladas, assobiar e cantar uma uma área relacionada com a função sensorial (Figura 1-4A). melodia sem dificuldades. No entanto, não conseguia falar Cada lobo tem um conjunto de funções especializadas. de forma gramaticamente correta ou criar sentenças com- O lobo frontal está bastante envolvido com a memória de pletas e também não conseguia exprimir ideias escrevendo. curto prazo e o planejamento de ações futuras, além do Exames post-mortem do encéfalo desse paciente mostraram controle do movimento; o lobo parietal está envolvido com uma lesão na região posterior do lobo frontal, agora de- a sensação somática, a formação de uma imagem corporal e nominada área de Broca (Figura 1-4B). Broca estudou oito sua relação com o espaço extrapessoal; o lobo occipital está pacientes semelhantes, todos com lesões nessa região, e envolvido com a visão; e o lobo temporal está envolvido em todos os casos a lesão estava localizada no hemisfério com a audição e – por meio de suas estruturas profundas, o cerebral esquerdo. Essa descoberta levou Broca, em 1864, a hipocampo e os núcleos da amígdala – com o aprendizado, anunciar: “Nous parlons avec l’hémisphère gauche!” (Nós fala- a memória e a emoção. mos com o hemisfério esquerdo!) Kandel_01.indd 8 06/06/14 09:54 Princípios de Neurociências 9 Quadro 1-1 O sistema nervoso central O sistema nervoso central tem sete partes principais. O cerebelo situa-se atrás da ponte e está conectado A medula espinal, a parte mais caudal do sistema nervoso ao tronco encefálico por diversos tratos importantes de central, recebe e processa informação sensorial da pele, fibras, denominados pedúnculos. O cerebelo modula a for- das articulações e dos músculos dos membros e do tron- ça e a amplitude do movimento e está envolvido no apren- co e controla os movimentos dos membros e do tronco. É dizado de habilidades motoras. subdividida nas regiões cervical, torácica, lombar e sacral O mesencéfalo, rostral à ponte, controla muitas fun- (Figura 1-2A). ções sensoriais e motoras, incluindo o movimento dos A medula espinal continua rostralmente como o tron- olhos e a coordenação dos reflexos visuais e auditivos. co encefálico, que consiste em bulbo, ponte e mesencé- O diencéfalo situa-se rostralmente ao mesencéfalo e falo. O tronco encefálico recebe informação sensorial da contém duas estruturas. O tálamo processa a maior par- pele e dos músculos da cabeça e fornece o controle motor te da informação que chega ao córtex cerebral a partir do para a musculatura da cabeça. Ele também transmite in- resto do sistema nervoso central. O hipotálamo regula fun- formação da medula espinal para o encéfalo e do encéfalo ções autônomas, endócrinas e viscerais. para a medula espinal, regulando os níveis de alerta via O cérebro compreende os dois hemisférios cerebrais, formação reticular. cada um deles consistindo em uma camada mais externa O tronco encefálico contém diversas coleções de cor- muito enrugada (o córtex cerebral) e três estruturas situa- pos celulares, os núcleos dos nervos cranianos. Alguns das mais profundamente (os núcleos da base, o hipocam- desses núcleos recebem informação da pele e dos mús- po e os núcleos da amígdala). O córtex cerebral é dividido culos da cabeça; outros controlam eferências motoras em quatro lobos distintos: frontal, parietal, occipital e tem- para músculos da face, do pescoço e dos olhos. Outros poral (Figura 1-2B). ainda são especializados no processamento de informa- Os núcleos da base participam na regulação do de- ção de três dos sentidos especiais: audição, equilíbrio e sempenho motor; o hipocampo está envolvido com aspec- paladar. tos do armazenamento da memória, e os núcleos da amíg- O bulbo, diretamente rostral à medula espinal, inclui dala coordenam as respostas autonômicas e endócrinas diversos centros responsáveis por funções autônomas dos estados emocionais. (neurovegetativas) vitais, como a digestão, a respiração e O encéfalo também costuma ser dividido em três re- o controle dos batimentos cardíacos. giões mais amplas: rombencéfalo (bulbo, ponte e cerebe- A ponte, rostral ao bulbo, retransmite informações lo), mesencéfalo e prosencéfalo (diencéfalo e cérebro). O acerca do movimento dos hemisférios cerebrais para o rombencéfalo (excluído o cerebelo) e o mesencéfalo juntos cerebelo. incluem as estruturas conhecidas como tronco encefálico. A B Núcleos da base Lobo Lobo parietal frontal 7. Cérebro Prosencéfalo Lobo occipital Mesencéfalo 6. Diencéfalo Lobo temporal Rombencéfalo 5. Mesencéfalo Tronco encefálico 3. Ponte 2. Bulbo Cervical Figura 1-2 As divisões do sistema nervoso central. 4. Cerebelo A. O sistema nervoso central pode ser dividido em sete partes principais. Torácica 1. Medula espinal B. Os quatro lobos do córtex cerebral. Lombar Sacral O trabalho de Broca estimulou uma busca por regiões ticos das patas de cães, como estender uma pata, podem corticais associadas a outros comportamentos específicos – ser produzidos pela estimulação elétrica de determinadas uma busca logo recompensada. Em 1870, Gustav Fritsch e regiões do giro pré-central. Essas regiões estão invariavel- Eduard Hitzig causaram grande excitação na comunidade mente localizadas no córtex motor contralateral. Desse científica quando mostraram que movimentos caracterís- modo, a mão direita humana, usada para escrever e para Kandel_01.indd 9 06/06/14 09:54 10 Eric R. Kandel, James H. Schwartz, Thomas M. Jessell, Steven A. Siegelbaum & A. J. Hudspeth A B Hemisfério cerebral Corpo caloso Diencéfalo Mesencéfalo Ponte Cerebelo Bulbo Medula espinal Figura 1-3 As principais divisões são claramente visíveis os principais marcos internos, como o corpo caloso, um grosso quando o encéfalo é seccionado na linha média entre os dois feixe de fibras nervosas que conecta os hemisférios esquerdo e hemisférios cerebrais. direito. A. Este desenho esquemático mostra as posições das principais B. As principais divisões encefálicas desenhadas em A também estruturas do encéfalo em relação a marcos externos. Estudan- são evidenciadas em uma imagem por ressonância magnética de tes da anatomia encefálica aprendem rapidamente a distinguir um encéfalo humano vivo. movimentos que requeiram maior habilidade, é controlada nectividade, Wernicke percebeu que diferentes componen- pelo hemisfério esquerdo, o mesmo hemisfério que contro- tes de um único comportamento são provavelmente pro- la a fala. Na maioria das pessoas, portanto, o hemisfério cessados em diversas regiões do encéfalo. Assim, ele foi o esquerdo é considerado dominante. primeiro a desenvolver a ideia do processamento distribuído, O próximo passo foi dado em 1876, por Karl Wernicke, um princípio agora central das neurociências. que publicou, com a idade de 26 anos, um artigo agora Wernicke postulou que a linguagem envolve progra- clássico: “O complexo de sintomas da afasia: um estudo mas sensoriais e motores separados, cada um governado psicológico em uma base anatômica”. Nesse trabalho, ele por regiões distintas do córtex. Ele propôs que o progra- descreve outro tipo de afasia, uma falha da compreensão, ma motor que governa os movimentos da boca para a fala e não da fala propriamente dita: uma deficiência funcional está localizado na área de Broca, adequadamente situada de recepção, em oposição à deficiência de expressão. Enquan- em frente à região da área motora que controla a boca, a to os pacientes de Broca podiam entender a linguagem, língua, o palato e as pregas vocais (Figura 1-4B). A seguir, mas não podiam falar, os pacientes de Wernicke podiam Wernicke atribuiu o programa sensorial que governa a per- formar palavras, mas não compreendiam a linguagem. cepção da palavra à área do lobo temporal que ele havia Além disso, o sítio desse novo tipo de afasia é diferente da- descoberto e que agora é denominada área de Wernicke. Essa quele descrito por Broca: a lesão está na parte posterior do região está convenientemente cercada pelo córtex auditivo córtex, onde o lobo temporal encontra os lobos parietal e e por áreas agora coletivamente conhecidas como córtex as- occipital (Figura 1-4B). sociativo, uma região do córtex que integra sensações audi- Com base nessa descoberta e nos trabalhos de Broca, tivas, visuais e somáticas. Fritsch e Hitzig, Wernicke formulou um modelo neural da Desse modo, Wernicke formulou o primeiro modelo linguagem, que tentou reconciliar e ampliar as duas teorias neural coerente para a linguagem, o qual – com importan- predominantes da função encefálica na época. Frenologis- tes modificações e elaborações que serão vistas no Capí- tas e defensores da conectividade celular argumentavam tulo 60 – ainda é usado hoje. De acordo com esse modelo, que o córtex é um mosaico de áreas funcionalmente espe- os passos iniciais no processamento neural da palavra fa- cíficas, enquanto a escola holística de campo agregado de- lada ou escrita ocorrem em áreas sensoriais separadas do fendia que qualquer função mental envolve todo o córtex córtex, especializadas em informação visual ou auditiva. cerebral. Wernicke propôs que apenas as funções mentais Essa informação é então retransmitida para uma área cor- mais básicas, aquelas relacionadas com a simples percep- tical associativa, o giro angular, especializado no processa- ção e as atividades motoras, são mediadas por neurônios mento de informação tanto visual quanto auditiva. Aqui, em áreas locais restritas do córtex. Segundo seus argu- de acordo com Wernicke, palavras faladas ou escritas são mentos, as funções cognitivas mais complexas resultam de transformadas em um código sensorial neural, comparti- interconexões entre diversos sítios funcionais. Ao colocar lhado tanto pela fala quanto pela escrita. Essa represen- o princípio da função localizada em um arcabouço de co- tação é retransmitida para a área de Wernicke, onde é re- Kandel_01.indd 10 06/06/14 09:54 Princípios de Neurociências 11 A Córtex motor outros incorretos e, em especial, têm dificuldade em repe- (giro pré-central) Córtex somatossensorial (giro pós-central) tir frases. Embora conscientes de seus erros, são incapazes de corrigi-los. Sulco central Inspirada em parte pelos avanços de Wernicke e lide- rada pelo anatomista Korbinian Brodmann, uma nova es- Lobo parietal cola de localização cortical surgiu na Alemanha no início do século XX, a qual distinguia áreas funcionais do córtex Lobo frontal Lobo com base nas formas das células e nas variações de seus occipital Lobo temporal arranjos em camadas. Utilizando esse método citoarquite- tônico, Brodmann distinguiu 52 áreas anatômica e funcio- Sulco lateral nalmente distintas no córtex cerebral humano (Figura 1-5). Embora as evidências biológicas da existência de áreas funcionalmente distintas no córtex fossem instigantes, B a visão de campo agregado do encéfalo, e não a visão de Fascículo arqueado conectividade celular, continuou a dominar o pensamen- Giro angular to experimental e a prática clínica até 1950. Essa situação surpreendente deveu-se em grande parte a diversos neu- rocientistas importantes que defendiam a visão do campo Área de agregado, entre eles o neurologista britânico Henry Head, Broca o neuropsicólogo alemão Kurt Goldstein, o fisiologista Córtex comportamental russo Ivan Pavlov e o psicólogo america- visual no Karl Lashley. Região de vocalização O mais influente foi Lashley, que era profundamente da área motora Área de Wernicke cético em relação à abordagem citoarquitetônica para o Córtex auditivo mapeamento funcional do córtex. “O mapa arquitetônico primário ‘ideal’ é praticamente inútil”, ele escreveu. Ainda segun- Figura 1-4 As principais áreas do córtex cerebral são mos- do Lashley, “as subdivisões de área são, em grande parte, tradas nesta visão lateral do hemisfério esquerdo. anatomicamente insignificantes e ilusórias quanto às pre- A. Os quatro lobos do córtex cerebral. As áreas motoras e soma- sumíveis divisões funcionais do córtex”. Esse ceticismo tossensoriais do córtex são separadas pelo sulco central. B. Áreas envolvidas na linguagem. A área de Wernicke proces- sa sinais auditivos para a linguagem e é importante para a com- 4 preensão da fala. Situa-se próxima ao córtex auditivo primário 6 3 1 e ao giro angular, combinando sinais de entrada auditivos com 8 2 5 informações de outros sentidos. A área de Broca controla a pro- 7 dução da fala inteligível. Situa-se próxima à região da área motora 9 que controla os movimentos da boca e da língua, que formam as palavras. A área de Wernicke comunica-se com a área de Broca 19 por uma via bidirecional, parte da qual é constituída pelo fascículo 46 arqueado. (Adaptada, com permissão, de Geschwind, 1979.) 40 10 18 39 45 44 43 41 conhecida como linguagem e associada a seu significado. 42 47 22 Essa informação também é retransmitida para a área de 11 17 Broca, que contém as regras, ou gramática, para trans- 21 formar a representação sensorial em uma representação 18 38 37 19 motora que possa ser percebida como linguagem falada ou escrita. Quando essa transformação de representação 20 sensorial em motora não ocorre, o paciente perde sua ca- Figura 1-5 Divisão de Brodmann do córtex cerebral hu- pacidade de falar e escrever. mano em 52 áreas funcionais distintas. Brodmann identifi- O poder do modelo de Wernicke não está apenas em cou essas áreas com base nas diferentes estruturas das células sua completude, mas também em sua utilidade preditiva. nervosas e nos arranjos característicos das camadas celulares. Esse modelo previu corretamente um terceiro tipo de afa- Este esquema ainda é amplamente utilizado hoje, sendo atuali- sia, que resulta da desconexão. Nele, as zonas de recep- zado com frequência. Descobriu-se que diversas áreas definidas por Brodmann controlam funções encefálicas específicas. Por ção e de expressão para a fala estão intactas, mas as fibras exemplo, a área 4 é o córtex motor, responsável pelo movimento neuronais que as conectam estão destruídas. Essa afasia de voluntário. As áreas 1, 2 e 3 constituem o córtex somatossenso- condução, como agora é denominada, é caracterizada pelo rial primário, que recebe informação sensorial principalmente da uso incorreto das palavras (parafasia). Os pacientes com pele e das articulações. A área 17 é o córtex visual primário, que afasia de condução entendem as palavras que ouvem e recebe sinais sensoriais dos olhos e os retransmite para outras leem e não apresentam dificuldades motoras quando fa- áreas, para processamento adicional. As áreas 41 e 42 consti- lam. Ainda assim, não conseguem falar coerentemente; tuem o córtex auditivo primário. O desenho mostra apenas as eles omitem partes das palavras ou substituem sons por áreas visíveis na superfície externa do córtex. Kandel_01.indd 11 06/06/14 09:54 12 Eric R. Kandel, James H. Schwartz, Thomas M. Jessell, Steven A. Siegelbaum & A. J. Hudspeth foi reforçado por seus estudos acerca dos efeitos de várias designassem objetos (ou que usassem a linguagem de ou- lesões encefálicas sobre a capacidade dos ratos de aprende- tras formas), enquanto diferentes áreas do córtex exposto rem o caminho em um labirinto. Desses estudos, Lashley eram estimuladas com pequenos eletrodos. Quando uma concluiu que a gravidade de um prejuízo no aprendizado área do córtex era crucial para a linguagem, a aplicação de depende do tamanho da lesão, e não de sua localização estímulos elétricos bloqueava a capacidade do paciente de específica. Desiludido, Lashley – e após ele muitos outros designar os objetos. Desse modo, Penfield e Ojemann pu- psicólogos – concluiu que o aprendizado e outras funções deram confirmar – no encéfalo vivo, acordado e consciente mentais superiores não têm um local específico no encéfalo – as áreas do córtex envolvidas na linguagem, como descri- e, consequentemente, não podem ser atribuídos a conjun- tas por Broca e Wernicke. Além disso, Ojemann descobriu tos específicos de neurônios. outras regiões essenciais para a linguagem, em especial a Com base em suas observações, Lashley reformulou ínsula, uma região que se situa nas profundezas da área a visão de campo agregado, minimizando ainda mais o de Broca. Como será visto no Capítulo 60, as redes neurais papel de neurônios individuais, de conexões neuronais es- para a linguagem são muito mais extensas e complexas do pecíficas e mesmo de regiões encefálicas específicas para a que aquelas descritas por Broca e Wernicke. produção de comportamentos específicos. De acordo com Inicialmente, quase tudo o que se sabia acerca da orga- a teoria de Lashley de ação das massas, é a massa total do en- nização anatômica da linguagem originava-se de estudos céfalo, não seus componentes regionais, que é crucial para de pacientes com lesões encefálicas. Hoje, a tomografia por sua função. Aplicando essa ideia à afasia, Head e Goldstein emissão de pósitrons (PET, de positron emission tomography) concluíram, com base em seus estudos clínicos, que distúr- e a imagem por ressonância magnética funcional (fMRI) bios da linguagem podem resultar de lesões em pratica- permitem que a análise anatômica seja realizada em indiví- mente qualquer área cortical. duos saudáveis enquanto estão lendo, falando e pensando Os experimentos de Lashley utilizando ratos e as ob- (Capítulo 20). A fMRI, uma técnica de imagem não invasi- servações clínicas de Head foram reinterpretados. Uma va para a visualização de atividade no encéfalo, não apenas variedade de estudos tem mostrado que o aprendizado confirmou que a leitura e a fala ativam áreas diferentes do no labirinto utilizado por Lashley não é adequado para a encéfalo, como também revelou que o ato de pensar acer- localização de funções corticais, pois envolve muitas ca- ca do significado de uma palavra na ausência de sinais de pacidades sensoriais e motoras. Quando privado de uma entrada sensoriais ativa uma outra área distinta no córtex capacidade sensorial, como a visão, um rato ainda pode frontal esquerdo (Figura 1-6). aprender seu caminho em um labirinto, utilizando o tato Em estudos separados, Joy Hirsch e colaboradores e ou o olfato. Além disso, como será visto adiante neste livro, Mariacristina Musso, Andrea Moro e colaboradores uti- muitas funções mentais são mediadas por mais de uma re- lizaram fMRI para investigar de modo mais profundo a gião ou via neuronal. Assim, uma dada função pode mos- ideia de Wernicke de que a área de Broca contém as regras trar redundância anatômica e pode não ser eliminada por gramaticais da linguagem. Hirsch e colaboradores fizeram uma única lesão. uma descoberta interessante: o processamento da língua Logo, as evidências de localização de funções torna- nativa de uma pessoa e o processamento de uma segun- ram-se extremamente convincentes. Iniciando no final da da língua ocorrem em regiões distintas dentro da área de década de 1930, estudos de Edgar Adrian na Inglaterra e Broca. Se a segunda língua é adquirida na idade adulta, ela Wade Marshall e Philip Bard nos Estados Unidos demons- está representada em uma região separada daquela onde traram que o toque em partes diferentes do corpo de um está representada a língua nativa. Se a segunda língua é gato determina atividade elétrica em regiões distintas do adquirida mais cedo, no entanto, tanto a segunda língua córtex cerebral. Por sondagem sistemática da superfície quanto a língua nativa ficam representadas em uma região corporal, eles estabeleceram um mapa preciso da superfície comum na área de Broca. Esses estudos indicam que a ida- do corpo nas áreas específicas do córtex cerebral, descri- de na qual uma linguagem é adquirida é um fator signifi- tas por Brodmann. Esses resultados mostraram que áreas cativo na determinação da organização funcional da área funcionalmente distintas do córtex podem ser definidas sem de Broca. Em contrapartida, não há evidências de tal pro- ambiguidade de acordo com critérios anatômicos como cessamento em separado para diferentes línguas na área de tipo celular e camadas celulares, conexões das células e – Wernicke (Figura 1-7). mais importante – função comportamental. Como será vis- Outras evidências do papel fundamental da área de to nos capítulos que se seguem, a especialização funcional Broca nas regras de processamento gramatical foram ob- é um princípio-chave da organização do córtex cerebral, tidas posteriormente por estudos de Musso e Moro utili- que se estende até mesmo para colunas individuais de cé- zando fMRI enquanto investigavam o instinto da linguagem. lulas dentro de uma área funcional. Na realidade, o encé- Como a linguagem é uma capacidade única dos seres hu- falo é dividido em muito mais regiões funcionais do que manos, Charles Darwin sugeriu que a aquisição da língua aquelas definidas por Brodmann. fosse um instinto inato, comparável ao da postura ereta. Métodos mais refinados tornaram possível aprender Crianças adquirem a gramática de sua língua nativa sim- ainda mais acerca da função de diferentes regiões encefáli- plesmente ouvindo seus pais falando, não sendo necessário cas envolvidas na linguagem. No final da década de 1950, que aprendam regras específicas da gramática para isso. Wilder Penfield, e mais tarde George Ojemann, investi- Em 1960, o linguista Noam Chomsky elaborou uma pro- gou novamente as áreas corticais que produzem a lingua- posta com base nessa noção de Darwin. Ele sugeriu que as gem. Durante cirurgias encefálicas para tratar epilepsias, crianças adquirem uma linguagem de modo tão fácil e na- foi pedido a pacientes acordados com anestesia local que tural porque os seres humanos, diferentemente de outros Kandel_01.indd 12 06/06/14 09:54