Polémico ou inconformistas são qualificações que se justificam para os livros desta colecção. Li vros discutíveis, portanto. Livros que não foram escritos para agra dar a este ou àquele leitor. Que abrem portas. Que fazem pensar e repensar. Livros para quem não possui uma resposta para todas as per guntas, para todas as dúvidas. A AUTORA: Kate Millett nasceu no dia 14 de Setembro de 1934 em Saint Paul (Minnesota, Estados Unidos) no seio de uma família irlan desa e católica. Em 1956 terminou, com altas classificações, uma licenciatura em Letras na Universidade do Minnesota, seguindo depois para Oxford, onde, após uma estada de dois anos, obteve um diploma de especialização em literatura vitoriana. Terminou, assim, a sua preparação académica para leccionar, actividade que viria a exercer com intermitências, nomeadamente no céle bre Barnard College de Colúmbia. A partir de 1958 instala-se em Nova Iorque e começa, então, a consagrar-se à escultura. Depois de uma estada de dois anos no Japão, onde cursou artes plásticas na Universidade de Tóquio (1961-1963), expõe com sucesso na Judson Gallery de Nova Iorque. Paralelamente às suas actividades artísticas, Kate Millett inte- ressa-se pelas questões sociais do seu tempo. Com o apareci mento do movimento feminista (ao qual afirma ter ficado a dever-se a sua «tomada de consciência»), a sua posição radica- liza-se, passando, a partir daí, a militar em diversas organi zações defensoras dos direitas da mulher. Em 1966 filia-se no famoso N.O.W. (National Organization for Women), fundado por Betty Friedman. Vem a adquirir, finalmente, a projecção internacional de que hoje desfruta com a publicação da obra Sexual Politics, cuja parte central constitui o presente volume editado por Publica ções Dom Quixote. KATE MILLETT POLÍTICA SEXUAL Traduzido do inglês por Alice Sampaio, Gisela da Conceição e Manuela Torres PUBLICAÇÕES DOM QUIXOTE FICHA: © 1969, 1970 by Kate Millett. A edição portuguesa não inclui, por acordo com a Autora, os capítulos «Instances of sexual politics», «Theory of sexual politics» (já publicado no volume Mulheres contra Homens? (Cadernos Dom Quixote n.° 37) e «The literary reflection». Título original: Sexual Politics. Editor original: Doubleday & Company, Inc., Nova Iorque. Tradutores: Alice Sampaio, Gisela da Conceição e Manuela Torres. Capa e orientação gráfica: Fernando Felgueiras. Todos os direitos para a língua portuguesa, inclusive Brasil, reservados por Publicações Dom Quixote, Rua Luciano Cordeiro, 119— Lisboa ÍNDICE I — A revolução sexual 9 Na política 9 Polémica 47 Engels e a teoria revolucionária 74 II — A contra-revolução 145 Política reaccionária 145 A reacção ideológica 173 I A REVOLUÇÃO SEXUAL PRIMEIRA FASE (1830 — 1930) Na política Definição O termo «revolução sexual» está actualmente tão na moda que é empregue a torto e a direito para explicar os mais insig nificantes comportamentos sociossexuais. Tal emprego é quando muito ingénuo. Com efeito, no contexto de uma política sexual, transformações verdadeiramente revolucionárias deveriam ter influência, à escala política, sobre as relações entre os sexos. Mas uma vez que o statu quo do patriarcado se tem mantido durante tanto tempo e com sucesso universal, nada indicava que ele pudesse evoluir. E, contudo, a situação modificou-se. Ou pelo menos começou a modificar-se — e durante cerca de um século parecia que a organização da sociedade estava pres tes a sofrer uma revisão possivelmente mais drástica do que qualquer outra que tivesse já sofrido dentro do período histó rico. Durante este tempo, o patriarcado, que constitui a prin cipal forma de governo, foi tão discutido e atacado que parecia condenado a desaparecer. Ê evidente que nada disso aconteceu: a primeira fase terminou com uma Reforma imediatamente seguida de uma reacção. No entanto, alterações consideráveis surgiram do seu fermento revolucionário. Justamente porque o período em questão não viu concre- tizarem-se as transformações radicais que parecia prometer, conviria talvez tentar definir aquilo que deveria ser uma revo lução sexual bem sucedida. Tal definição, por hipotética que fosse, ajudaria incontestavelmente a avaliar as falhas da pri- 9 KATE MILLETT meira fase. E seria também útil no futuro, na medida em que se pode supor que a reacção que surgiu após as primeiras décadas do século XX está prestes a ceder perante novas manifesta ções do espírito revolucionário. Uma revolução sexual exigiria antes de mais, talvez, o fim das inibições e tabus sexuais, especialmente aqueles que mais ameaçam o casamento monógamo tradicional: a homos sexualidade, a «ilegitimidade», as relações sexuais pré-matri- moniais e na adolescência. Deste modo, o aspecto negativo no qual a actividade sexual tem sido geralmente envolvida seria necessariamente eliminado, juntamente com o código moral ambivalente e a prostituição. Esta revolução teria por objec tivo estabelecer um princípio único de tolerância, completa mente alheio aos sórdidos e alienantes fundamentos econó micos das tradicionais alianças sexuais. Em primeiro lugar, uma revolução sexual acabaria com a instituição patriarcal, abolindo tanto a ideologia da supre macia do macho como a tradição que a perpetua através do papel, condição e temperamento atribuídos a cada um dos dois sexos. Isto permitiria uma integração de subculturas sexuais, uma assimilação de ambos os lados da experiência humana até aqui excluídos da sociedade. Da mesma forma, seria con veniente reexaminar as características definidas como «mas culinas» ou «femininas» e reconsiderar o seu valor no aspecto humano: a violência encorajada como manifestação de viri lidade e a excessiva passividade definida como característica feminina, inúteis em ambos os sexos; a eficiência e o intelec tualismo do temperamento «masculino» e a ternura e a con sideração ligadas ao temperamento feminino, recomendáveis a ambos os sexos sem distinção. Parece improvável que tudo isto possa acontecer sem um efeito drástico sobre a família patriarcal. O desaparecimento do papel ligado ao sexo e a total independência económica da mulher destruiriam ao mesmo tempo a autoridade e a estru tura económica. Consequentemente, para os menores, seria o fim da situação actual, que os reduz à condição de incapazes e os priva de todos os direitos. Se as crianças fossem entregues a profissionais (com todas as vantagens que isso lhes traria), as mães estariam mais livres, e isso acabaria por destruir a estrutura familiar. O casamento poderia até ser substituído por uma união voluntária, se tal fosse desejado. Se uma revo- 10 POLITICA SEXUAL lução sexual fosse efectivada, o problema do aumento demográ fico deixaria de constituir um dilema, tal como hoje se apre senta, porque estaria vitalmente ligado à emancipação da mulher. Estas conjecturas afastam-nos bastante do período em questão. Porque se afirma então que ele está na origem da revolução sexual? Poder-se-ia objectar que uma vez que a época vitoriana era tão notoriamente inibida, o período entre 1830 e 1930 não poderia ter realizado absolutamente nada no aspecto de liberdade sexual. No entanto, nessa época, a repres são sexual era tal que apenas um abrandamento dessa atitude poderia resolver a tensão provocada. Por isso, nas três últimas décadas do século XIX, bem como nas três primeiras décadas do século XX, houve uma crescente e intensa liberdade sexual para ambos os sexos; especialmente para a mulher que nunca a tinha tido neste aspecto sem perder a sua reputação social ou sem ter de enfrentar os perigos de gravidez numa sociedade com fortes sanções contra o nascimento ilegítimo. Esta pri meira fase conheceu uma certa liberdade sexual e uma certa igualdade graças à luta por um critério único de moralidade. Paradoxalmente, os próprios vitorianos contribuíram de duas maneiras neste sentido. Esforçando-se por reduzir o número de «mulheres perdidas», tentaram com frequente optimismo ingénuo ensinar aos rapazes a ser tão «puros» como as rapa rigas. Mesmo que as suas tentativas nos façam sorrir, este foi o primeiro período da história que tentou resolver o pro blema do padrão duplo e da desumanidade da prostituição. Um estudo superficial do período de reacção que sucedeu a esta primeira fase poderia levar-nos a considerá-la como sendo a época mais significativa para a instauração da liber dade sexual. Mas isso seria um erro, pois a liberalização não é mais do que uma continuação e difusão daquilo que fora iniciado no período anterior. E se ela foi muitas vezes des viada dos seus objectivos para fins patriarcais, pode todavia desenvolver-se dentro do seu carácter utilitário. Qualquer au mento de liberdade sexual para a mulher no período de 1930- -1960 (porque essa liberdade era inegável no fim da primeira fase) deve-se provavelmente menos a uma modificação social do que a um aperfeiçoamento técnico em matéria de contra- conceptivos e à sua difusão. Apenas a «pílula», o meio mais eficaz, não era ainda vulgarizada nessa época. Mas com excep- 11 KATE MILLETT ção deste meio, a «Nova Mulher» dos anos 20 era provavel mente tão livre, se não mais, do que a mulher dos anos 50. Durante a primeira fase, a questão fundamental era desa fiar a estrutura patriarcal e criar um ímpeto inicial necessário para realizar as enormes transformações que uma revolução sexual deveria provocar no plano das concepções sobre o tem peramento, função e estatuto dos dois sexos. Deve ficar cla ramente assente que a «arena» da revolução sexual se situa muito mais na consciência do homem do que nas instituições por ele criadas. A sociedade patriarcal está de tal forma enrai zada que o tipo de estrutura que ela determina em ambos os sexos é talvez mais um hábito de espírito e um tipo de vida do que um sistema político determinado. Depois de ter posto em questão tanto o hábito como as estruturas políticas — com maior sucesso em relação às últimas do que em relação às primeiras —, a primeira fase mostrou-se incapaz de resistir à investida da reacção e não cumpriu a sua promessa revolu cionária. Contudo, como a sua meta era uma alteração do pró prio tipo de vida, de forma muito mais radical do que a maior parte das revoluções políticas, é fácil compreender por que razão este tipo de revolução cultural se processou lentamente, mais no sentido de uma metamorfose progressiva mas pro funda, favorecida pela Revolução Industrial e pela ascensão da classe média, do que nos moldes de uma revolução espas módica (seguida de uma reacção ainda mais forte), como no caso da Revolução Francesa. Além disso, como consequência da rápida investida de um período de reacção, a primeira fase da revolução sexual, como objecto móvel detido no seu percurso, não pode tirar proveito da velocidade adquirida no seu momento inicial. Se nos lem brarmos que esta força só recentemente adquiriu um certo vigor (apenas nos últimos cinco anos) e após cerca de quatro décadas de estagnação, compreenderemos como o fenómeno que pretendemos descrever é simultaneamente vago e contem porâneo e como ele escapa à precisão com que os historiadores procuram caracterizar acontecimentos mais distantes e defi nidos. Não se deve deixar de acentuar que muitos, para não dizer a maior parte dos que primeiramente foram afectados pela revolução sexual, não possuíam nem uma compreensão sistemática desse fenómeno nem uma antevisão das suas pos síveis implicações. Muito poucos, mesmo entre aqueles que se 12