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Plebe urbana na Roma Antiga - Vida e trabalho PDF

152 Pages·2008·8.274 MB·Portuguese
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2 Agradecimentos Pela confiança, ajuda, amizade e orientação, devo agradecer a Maria Isabel D‟Agostino Fleming: pessoa sensível que me apoiou em momentos difíceis durante todo o trabalho e teve paciência em fazer as inúmeras correções dos erros que um aprendiz, como eu, sempre comete. Para minha família, que soube conviver comigo, com minhas insônias e com minhas pilhas de livros e papéis espalhados pela casa, e por sempre me apoiarem, mesmo não sendo conhecedores profundos dos meus estudos. Para meu amigo Carlos Eduardo, pelas horas de discussão sobre este trabalho, pela amizade de duas décadas, e pelo incentivo sempre presente. Para o meu “bardo” amigo Ivan Luís que sempre me apoiou com seus palavrões carinhosos. Para aqueles que, de alguma forma, tiveram contato com meu trabalho em seu processo de formação, ouvindo minhas reclamações e minhas ansiedades. Obrigado, pois, especialmente, ao Antônio Vieira, pelos vários cafés bebidos em conversas acadêmicas, à Daniela La Chioma, amiga arqueóloga com quem tive o prazer de trabalhar junto, ao Danilo Demarque por sempre me ouvir em muitas ocasiões, ao Denny Yang por me mostrar que a literatura muda vidas e ao Marcelo Cândido pelo crédito e incentivos dados a minha pessoa. Por fim, devo agradecer aos sorridentes olhos de Gláucia. Pelos momentos ótimos ao seu lado: grande parte deste trabalho é culpa de seu incentivo. A todos vocês, muito obrigado. 3 SUMÁRIO Apresentação 5 Introdução 6 I – A) Patrícios x Plebeus 8 I – B) Segunda Guerra Púnica: causas, conseqüências e questão agrária 11 I – C) A Cidade Romana 16 II – A) A Plebe 22 II – B) Plebs Urbana: livres, libertos (e escravos) 24 II – C) Política e Alimentação 28 III – A) Alguns materiais e algumas técnicas 33 III – B) Moradias: Domus e Insula 36 IV – A) O artesão 43 IV – B) O artesanato 45 V – A) A extração e o tratamento dos minérios 52 V – B) O trabalho em metais 57 VI – O trabalho em vidros 77 Conclusão 82 Fontes e Bibliografia 85 Figuras 4 Apresentação Antes mesmo de entrar na faculdade queria estudar História Antiga e Arqueologia: a paixão por Roma me acompanha desde a infância. A oportunidade surgiu logo após ter concluído a disciplina da arqueóloga Maria Isabel D‟Agostino Fleming no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, em 2004. Na ocasião, procurei a professora e pedi orientação para estudar a moradia da plebe urbana romana. Muito solícita, indicou-me livros sobre a temática e passei a fazer o levantamento bibliográfico necessário para a formulação de um projeto de Iniciação Científica. O tema mostrou que poderia ser mais bem abordado se fossem ampliados seus horizontes, por isso, decidimos que o estudo do artesanato seria profícuo, uma vez que possui ligação direta com as moradias romanas e a plebe que tanto desejava estudar. A elaboração do projeto findou em 2006, ano que consegui o financiamento da minha pesquisa pela FAPESP. A partir daí, redigi quatro relatórios (um por semestre) até o fim do meu trabalho em Junho de 2008. O que se segue é a totalidade de minha Iniciação Científica. Com o título original de Plebs Urbana na Roma Antiga (II a.C. – I d.C.): heterogeneidade, vida e trabalho, este trabalho tem como objetivo caracterizar as diferentes camadas da plebe urbana romana e seus ofícios, bem como indicar como os serviços dessa plebe chegavam à aristocracia por meio do estudo dos vestígios materiais que a Arqueologia nos fornece. Com base nas fontes de época e na bibliografia interpretativa dessas fontes são buscados recursos que esclareçam a relação entre ricos e pobres na Roma Antiga, tendo como referência a vida de uma categoria plebéia em particular, os artesãos – seu cotidiano, sua moradia e sua inserção política e econômica na sociedade romana – além da explicação das principais técnicas empregadas no fabrico dos artesanatos (cerâmicas, metais e vidros). 5 Introdução os excertos e os analisamos, ajudados, também, pelo levantamento bibliográfico realizado sobre a temática “Que beleza é essa que o artista luta por exprimir nas abordada. Temos, então, formado o nosso arcabouço lâmpadas de terracota?” para traçarmos o panorama da Parte I e da Parte II, a preocupação com as origens da plebe romana em Em 1916, James Joyce publicou o livro do contraposição ao patriciado, seus embates políticos, sua qual essa frase foi retirada. Proferida por Stephen atuação na política e na economia do mundo romano, Dedalus em Retrato do artista quando jovem, a oração além do papel da alimentação como elemento oriunda do espírito inquieto do rapaz irlandês para o regulador dessa grande massa populacional sempre deão que atiça o fogo da lareira cabe perfeitamente ao pronta a reclamar os seus direitos. Ao optarmos por trabalho que se segue. Se a Idade Moderna trouxe a recuar tanto no tempo, deixamos claro que, para se separação nítida entre artesão e artista, cá não a entender o auge da produção artesanal – séculos I a.C. tomaremos. Estaremos mais preocupados em lidar com a I d.C. – é necessário estudar o desenvolvimento da a visão dos romanos sobre os próprios romanos. Visão camada social plebéia, ao invés de apenas elencarmos esta que não distingue trabalhos manuais: todos são breves tópicos que dariam conta do porquê de a plebe inferiores, embora, reconheça-se, são passíveis de urbana possuir determinada particularidade em um expressar agradabilidade aos olhos do homem. O determinado balizamento temporal. A forma como essa artesanato é feito pelo artesão, a arte é feita pelo artista; plebe se distribuiu espacialmente em Roma aliou-se à o artesão trabalha a arte e o artista fabrica o artesanato preocupação de se tentar delinear a figura do plebeu – aqui, são sinônimos, tal como eram na Antiguidade frente ao liberto e ao escravo para estabelecer o Clássica. Admitindo a beleza existente em fragmentos conjunto, um tanto heterogêneo, ao qual pertencia a de terracota, devemos, pois, deixar de lado, por ora, plebs urbana. apenas o aspecto estético com o qual está preocupado o Da Parte III em diante, adentramos a cultura jovem Dedalus (e o senso comum da população): material em si. Primeiramente, enfatizamos as busquemos, agora, entender os porquês existentes na moradias. Distinguimos a domus da insula a fim de ação de o artesão fabricar a lamparina de argila: por ressaltar a diferença entre as casas dos ricos e as dos que ele a fabrica? por que usa determinado material? menos abastados, pormenorizando os locais onde os por que a técnica empregada é esta e não aquela? E trabalhos eram realizados, transformados em oficinas. dentro dessas questões precisamos incluir o advérbio A partir das residências, estabelecemos um contato onde: onde moravam os artesãos? onde trabalhavam? mais próximo com outras profissões, como a do onde comercializavam seus produtos? arquiteto – uma pessoa que necessitava de um O texto que redigimos tenta, em grande parte, conhecimento mais abrangente do mundo ao seu redor responder a essas indagações, mostrando a todo – e dos construtores de edifícios, ou seja, os instante a beleza advinda do vestígio material nem proletários, os “artesãos de casas” – trabalhadores que sempre formoso com o qual o arqueólogo trabalha: na possuíam a sabedoria e a habilidade próprias para erigir maioria dos casos são fragmentos de cerâmica, metais de maneira correta e enfrentar qualquer desafio que se oxidados e vidros quebrados. Há, também, o concreto lhes apresentasse. As diferenças entre as casas das inventado pelos romanos que perdura por séculos, pessoas mais abastadas e daqueles que pouco tinham auxiliando-nos no estudo de suas moradias. Mais: por eram um reflexo do quanto de artesanato existiria se tratar de uma sociedade que possuía escrita dentro de cada tipo de moradia: os que podiam, alfabética, acreditamos ser obrigatório o diálogo entre compravam artesanatos dos mais variados tipos para suas fontes textuais e suas fontes materiais. O leitor ornamentar a casa e dar maior conforto para a família reparará que a dialética por nós estabelecida, por vezes, que ali habitava; os mais pobres eram obrigados a se tenderá à dicotomia. Textos e cultura material nem contentar com parcos objetos de – na maioria dos casos sempre são compatíveis inteiramente entre si. Mas – cerâmica. Num segundo momento (Parte IV), após a temos de reconhecer a importância dos dois e saber que explanação da figura do artesão romano em sua cada conjunto carrega suas características próprias. A sociedade, começamos a longa dissertação acerca do escrita está imersa em ideologias e obedece a produto artesanal. Sabendo que os produtos fabricados propósitos claros. Talvez o melhor exemplo nesse pelos artesãos ceramistas tinham como destino, momento seja a redação que se lhe apresenta: o nosso geralmente, o interior das moradias e dos templos, objetivo central é estudar a vida da plebe urbana optamos por fazer desta parte um elo entre o romana e o seu trabalho manual. O papel que tem agora comprador e o vendedor, o freguês e o fabricante. No em mãos é a materialidade também fabricada com um caso do nosso estudo, especificamente, centramo-nos intento, o da venda por parte das indústrias. Ambos na descrição pormenorizada dos métodos de fabricação atuam juntos: redigimos sobre o papel para um fim dos objetos mais comuns em cerâmica – material comum, embora os dois tenham origens distintas. abundante em sítios arqueológicos graças ao seu baixo Sendo assim, é notória a presença de obras de valor de manufatura e facilidade de ser manuseado – e autores antigos gregos e romanos. Sua importância percebemos que as trocas de mercadorias e de técnicas reside no fato de fornecerem rastros para o eram abundantes no mundo romano. entendimento do olhar romano sobre o seu mundo, A extensa Parte V pretendeu buscar as além de serem os testemunhos escritos mais próximos minúcias que os artesãos plebeus romanos utilizavam que temos dos vestígios materiais escavados pela para construir os objetos em metais. Foi preciso, Arqueologia. As fontes textuais foram responsáveis por inicialmente, centrar em um aspecto que quase não é grande parte da atenção dada a este trabalho: mencionado na bibliografia especializada em atentamente, lemos os autores que, de alguma maneira, metalurgia antiga: a extração mineral. Relacionando pudessem contribuir para o nosso objetivo. Separamos fontes textuais, como a de Plínio, o Velho, com os buscamos as releituras, em pinturas do vestígios arqueológicos, traçamos um panorama Renascimento, das obras literárias antigas como as sobre as dificuldades e soluções encontradas pelos de Homero e Ovídio sobre a visão do trabalhador de romanos ao adentrarem poços e minas em busca de metais. Por fim, na Parte VI, pormenorizamos a material valioso. Depois, a atenção voltou-se ao vidraria romana, que alcançou enormes quantidades modo como os artesãos transformavam a matéria de peças a partir do século I d.C. com a invenção do prima em mercadoria. Separando-se as técnicas vidro soprado. conforme os minérios empregados, discorremos Dessa maneira, buscaremos mostrar ao leitor sobre os principais métodos usados para o fabrico de quão rico culturalmente e complexo tecnologicamente peças em ferro, bronze, prata e ouro (incluindo, entre era o mundo romano quando se tratava dos seus os produtos fabricados a partir dessas matérias, as artesãos. Caberá ao julgamento de quem lê se moedas). Nessa parte também fizemos um breve conseguimos, então, responder à questão formulada por exercício reflexivo sobre o diálogo existente entre a James Joyce através de sua personagem Stephen Antiguidade e a Idade Moderna; para tanto, Dedalus. 7 Parte I aqueles da infra classem (ou até mesmo alguns pertencentes à classis) agora tinham mais oportunidades para trabalhar, produzir e vender seus A) Patrícios x Plebeus artesanatos, tocar seus comércios. A atividade comercial teve tanta importância na época de Sérvio Túlio que o rei equipou o porto fluvial de Roma e A distinção entre patrícios e plebeus ficou mais reforçou o sistema pré-monetário derivado do aes rude nitidamente sublinhada durante o período da (bronze informe sem cunho que pesava 330g ou 1 Monarquia em Roma (754-510 a.C.). Embora a origem libra). da diferenciação seja desconhecida, sabemos que O aumento da importância econômica dos recebeu melhores contornos na época em que Roma foi patrícios levou ao choque direto com a monarquia: governada pelos três reis etruscos (Tarquínio Prisco, desejavam gozar de mais poderes políticos. Em 510 616-578 a.C.; Sérvio Túlio, 578-534 a.C.; Tarquínio o a.C., é banida de Roma a monarquia e restrito o termo Soberbo, 534-509 a.C.)1 : a sociedade, a exemplo da rex5. Passa, então, a política a ser exercida por uma Etrúria, dividiu-se, basicamente, em dois segmentos: a oligarquia aristocrática, no entanto, a “organização nobreza de um lado, e o restante da população de outro; social estabelecida manteve-se em grande parte após a porém, como aponta Géza Alföldy: “A plebe, como abolição da realeza, com diferença de a nobreza passar grupo independente, não era (...) uma criação etrusca a desempenhar todas as funções do rei que, como se mas especificamente romana, uma vez que a sabe, era o chefe militar, o juiz e o pontífice máximo”6. organização social dos etruscos apenas reconhecia na Por outro lado, como já mencionado, uma sociedade, por um lado, os senhores e, por outro, os parcela da plebs urbana conseguiu acumular riquezas seus clientes, criados e escravos”2. devido ao artesanato e ao comércio, embora ainda não As reformas empreendidas por Sérvio Túlio no usufruísse os mesmos direitos que os patrícios. Nas século VI a.C. nublaram os arcaicos agrupamentos palavras de Pedro Paulo Funari: “Os plebeus urbanos gentílicos: agora a ordem social não dependia tão preocupavam-se, portanto, com os direitos políticos e somente de laços sangüíneos, era preciso, doravante, sociais: queriam ocupar cargos, votar no Senado e até ser classificado em uma das duas categorias, com base mesmo casar-se com patrícios, o que lhes era vedado. na fortuna pessoal: classis (de calare, “convocar”) – Em um movimento paralelo, parte da plebe rural teve aqueles que possuíam meios de adquirir os próprios as terras confiscadas pelo endividamento e lutava pelo armamentos e, por isso, passíveis de convocação para o fim da escravidão por dívida e pelo direito a parte da exército; e a infra classem – os demais, não capazes de terra conquistada de outros povos. Apesar dos prover os meios necessários. Esse novo ordenamento interesses diversos, os plebeus não tiveram dificuldades envolveu todos os cidadãos, tanto os ligados às em unir-se contra o patriciado na luta pela cidadania”7. dezesseis tribos rústicas (do campo) como os Junto ao desejo da plebe, Roma, durante o século V pertencentes às quatro tribos urbanas3. Uma vez na a.C. (até cerca do século III a.C.), enfrentou diversas classis, o soldado4 tinha como recompensa maior, pela guerras com as cidades da Itália8 e viu-se cada vez mais participação nas campanhas de guerra, o butim, que era dependente do contingente plebeu em suas fileiras do distribuído de acordo com a contribuição pessoal no exército9. Essa condição sensível em que se encontrava armamento e equipamento. Do butim vieram os Roma foi a principal aliada dos plebeus em sua luta aumentos nas fortunas pessoais, e, devido ao pelos direitos de cidadania: em duas grandes Secessões enriquecimento das famílias, desenvolveram-se mais as feitas em 494 e 449 a.C., a plebe conseguiu, atividades comerciais não ligadas ao campo, ou seja, respectivamente: que fosse instituído o Tribunado da Plebe e que o conjunto de leis fosse publicado – conhecido como Leis das Doze Tábuas (leges 1 Os quatro reis anteriores foram: Rômulo (reinou até 715 a.C.); duodecim tabularum)10. Numa Pompílio (715-672 a.C.); Tulo Hostílio (672-640 a.C.); Anco Márcio (640-616 a.C.). Excetuando-se Rômulo, que possuí caráter mítico, os demais reis eram sabinos. Assim sendo, 5 Somente é aceito no campo sacerdotal. nenhum dos reis de Roma foi, de fato, romano. Os reis podiam 6 Géza Alföldy, A história social de Roma, p. 20. ser estrangeiros, sendo escolhidos pela aristocracia local (a quem 7 “A cidadania entre os romanos”, in: Jaime & Carla Pinsky deviam reinar conforme seus interesses) e legitimados por meio (org.), História da cidadania, p. 52. do suffragium (“aplauso”) – no caso dos sabinos – e de auspícios 8 Desta vez, sem o apoio militar etrusco. – no caso etrusco. 9 Segundo Alföldy, op. cit., p. 30: “A força militar da plebe, 2 A história social de Roma, p. 25. patente na formação das hoplitenpoliteia, reforçou a sua 3 Os proprietários de terra (capazes de se equipar) inscritos nas consciência de grupo social e estimulou a sua actividade política tribos rústicas eram denominados assidui, já os comerciantes, (...)”. artesãos ou homens sem posses eram os proletari (os que 10 Acerca da Segunda Secessão, Tito Lívio (III, 54) empresta possuíam filhos, ou seja, a prole). Maria Luiza Corassin, A palavras aos legados que foram buscar os plebeus, afastados, até reforma agrária na Roma antiga, pp. 32-33. então, no Monte Sacro: 4 A partir de Sérvio Túlio, em Roma se estabelece a tática de combate hoplita, herança helênica, na qual o combatente é Para o bem-estar, a felicidade e a prosperidade vossa e da munido de um pesado equipamento: couraça, capacete, gládio, república, voltai à vossa pátria, para junto de vossos penates, de lança e escudo. A formação hoplítica consistia em um bloco vossas mulheres e de vossos filhos. E a moderação, com que (falange) composto por fileiras e colunas de combatentes que ia agistes aqui, onde nenhuma propriedade foi violada, apesar de de encontro ao inimigo (Philippe Masson, “A batalha de Egos- todas as necessidades de tão grande multidão, trazei-a também Pótamos: um desastre para o exército ateniense”, in: Revista para a cidade. Ide para o Aventino de onde saístes. Naquele local História Viva Grandes Temas, nº 3, 2004, pp. 61-62). Importante propício, onde lançastes os primeiros fundamentos de vossa ressaltar que a reforma serviana é a introdução hoplítica na liberdade, elegereis os tribunos da plebe. Estará presente o sumo sociedade romana, pois, somente era hoplita, quem pudesse pontífice que presidirá as eleições. prover o próprio equipamento e armamento, como foi dito acima. Sobre a instituição do Tribunado da Plebe (que ▪ lex Publilia (Lei Publília), 339 a.C.: restringiu tanto movimentou a política romana), o verbete o direito de veto do Senado sobre as decisões tomadas homônimo escrito pelo filólogo Luciano Canfora é na assembléia popular.19 realmente esclarecedor11: “(...) Os poderes dos tribunos foram selados com um juramento sagrado (a lex ▪ lex Poetelia Papiria (Lei Poetélia Papíria), 326 sacrata). Eram eleitos pelas assembléias curiatas; a.C.: aboliu a servidão por dívidas, como nos conta desde 471 foram eleitos pelos concilia plebis Tito Lívio (VIII, 28)20: (chamados também comitia plebis tributa), ou seja, pela assembléia popular. Na origem eram em número Naquele ano a plebe romana teve sua liberdade de de cinco, depois dez (já em 449); não eram magistrados certo modo restabelecida, com a supressão da escravidão por porque não podiam consultar os auspícios; os dívidas. Essa modificação no Direito foi devida à infame paixão e à crueldade de um usurário chamado Lúcio Papírio. sucessores deviam ser designados antes que os atuais Caio Públio se havia entregado a Papírio como ocupantes deixassem o cargo. Exerciam o ius auxilii escravo para resgatar as dívidas de seu pai. A idade e a beleza (ou seja, auxilium tribunicium), isto é, tinham a função do jovem, que deveriam ter provocado a piedade de Papírio, de defender pessoas e propriedades da plebe. O poder despertaram nele uma paixão viciosa. Considerando a beleza deles deriva do fato de serem invioláveis (sacrosancti, do jovem como um acréscimo de suas riquezas, tratou sacrosancta potestas). São precedidos pelos uiatores12. primeiramente de seduzi-lo com propostas obscenas. Como Exerciam seu poder dentro do pomério13. Valiam-se da Públio permanecesse surdo e desprezasse aquela indignidade, intercessio14, da obnuntiatio15, da coercitio (direito de passou a amedrontá-lo com ameaças, relembrando-lhe impor decretos da plebe e os próprios direitos). O constantemente sua atual condição. Finalmente, ao ver que ele pensava mais em sua qualidade de homem livre do que reconhecimento dos tribunos ocorreu por meio de em sua situação presente, mandou que o desnudassem e plebiscita e de leis (como a Lex Hortensia de 287 a.C., trouxessem as varas. Dilacerado pelos golpes, o jovem que reconhecia validade jurídica nos plebiscita, mesmo conseguiu escapar e correu pelas ruas da cidade, bradando sem a aprovação do Senado). Foram admitidos nas contra a infâmia e crueldade do usurário. Uma grande sessões do Senado e, a seguir, obtiveram o direito de multidão, comovida pela idade do jovem e indignada com o convocar o Senado e decretar senatusconsulta; ultraje, lembrando-se também de sua própria condição e da lograram o ius cum plebe agendi (de convocar e de seus filhos, acorreu ao Fórum e de lá partiu em colunas presidir às assembléias populares). Podiam acusar os para a cúria. Forçados por aquele tumulto imprevisto, os magistrados nas reuniões da plebe e perseguir em cônsules convocaram o Senado. À medida que os senadores entravam, o povo se arrojava a seus pés, mostrando-lhes o segunda instância os condenados nos comícios tributos (substituíram os questores16 como acusadores dorso dilacerado do rapaz. Naquele dia, em virtude da violência de um só públicos)”. homem, desfez-se um dos mais fortes vínculos do crédito. Os Com o tribunado plebeu e a redação das leis, cônsules receberam ordem de propor ao povo que, no futuro, abriu-se o caminho para os diversos embates políticos nenhum cidadão ficasse sujeito à cadeia ou aos grilhões que permearam Roma17 entre os séculos IV a III a.C.. enquanto aguardasse o castigo, a menos que tivesse cometido Cabe aqui, destacar as principais leis decorrentes desse algum crime. Os bens do devedor, e não seu corpo, período: responderiam pelas dívidas. Assim, libertaram-se todos os escravos por dívidas e tomaram-se providências para que, daí por diante, nenhum devedor fosse preso. ▪ leges Licinae Sextiae (Leis Licínias Séxtias), 367 a.C.: anulou parcialmente as dívidas da plebe mais Lembremos que, até então, uma vez pobre, e contribuiu para a conquista da igualdade escravizados, mesmo por um curto período de tempo, política da plebe, permitindo o acesso dos líderes do os cidadãos perdiam todos os direitos civis. povo aos cargos mais altos, determinou também que Funari aponta mais uma questão que se ninguém podia dispor de mais de 500 jeiras (±1, 25 desenrolou após a aprovação da lei Poetélia Papíria21. Km²) de terras estatais (que puderam ser divididas entre os pobres18). O censor Ápio Cláudio tomou medidas para que os libertos fossem distribuídos não unicamente entre as quatro tribos urbanas, mas, também, entre uma das dezesseis tribos rurais. Essa distribuição feita por Ápio Cláudio teve dois efeitos positivos concomitantes: Note a importância da propriedade e o fato de apenas os homens, diminuiu as dificuldades de inserção social enfrentadas ou seja, cidadãos, terem saído do Centro. 11 Júlio César: o ditador democrático, pp. 493-494. pelos libertos na cidade (entenda-se aqui: o preconceito 12 Encarregados de seguirem pelas vias anunciando a passagem quase inerente do homem livre pelos escravos ou já posterior dos tribunos. escravizados e, talvez principalmente, a disputa 13 Limite sagrado imaginário que circundava a cidade de Roma, econômica que colocava frente a frente livres, libertos onde nada poderia ser construído. e escravos pelas ruas de Roma, cada qual querendo 14 Direito de veto de um magistrado a um outro magistrado igual comerciar sua produção); e incluiu os libertos na ou inferior. 15 Quando a assembléia era adiada por iniciativa do áugure divisão de terras provenientes das conquistas romanas, (sacerdote responsável por consultar os auspícios, ou seja, os integrando-lhes à vida política camponesa. Ter sinais da natureza), devido a um mau presságio. partidários políticos libertos foi praticamente uma 16 Magistrados públicos encarregados do erário (aerarium). 17 Apiano, I, 1. 18 “Mas essa política que previa a atribuição de terras aos pobres 19 Pedro Paulo Funari, “A cidadania entre os romanos”, in: Jaime só pôde ser aplicada plenamente depois de 340 a.C., devido ao & Carla Pinsky (org.), História da cidadania, p. 54. rápido crescimento do ager publicus que se verificou em 20 Grifos meus. consequência da expansão de Roma”. Géza Alföldy, A história 21 “A cidadania entre os romanos”, in: Jaime & Carla Pinsky social de Roma, p.39. Também ver: Tito Lívio, VI, 35-42. (org.), História da cidadania, p. 55. 9 constante na vida de Roma: quanto mais eleitores do vez devemos atentar para a influência militar nas campo existissem, melhor seria na Capital, pois as questões políticas: as causas das secessões do século V tribos rurais representavam a maioria na hora da a.C. tiveram por pano de fundo as guerras com as votação. cidades vizinhas de Roma, e a reforma do sistema social por meio da legislação nos séculos subseqüentes ▪ lex Ualeria de prouocatione (Lei Valéria de não ocorreu por motivo diferente. A extensão do Apelação), 300 a.C.: de acordo com essa lei, o cidadão domínio de Roma por toda a Itália (sécs. IV e III a.C.) condenado à pena máxima pelos magistrados tinha o está ligada intrinsecamente ao processo legislativo: a direito de apelar (prouocatio) para a assembléia do necessidade de aumento do território (ager publicus) povo, a qual decidiria o caso em um processo para assentamento dos plebeus mais pobres (e, especial22. obviamente, o alargamento das propriedades dos cidadãos mais ricos). As Leis Licínias Séxtias vieram ▪ lex Ogulnia (Lei Ogúlnia), 300 a.C.: abriu aos após um dos maiores golpes que Roma recebeu durante representantes da plebe os cargos políticos e também sua história, a invasão e a ocupação gaulesa, por um os cargos superiores sacerdotais (pontífices e augures). breve período, da Cidade em 387 a.C.: ▪ lex Ouinia (Lei Ovínia), (± 312 a.C.): de Mas parece que nem todos os gauleses acordo com Géza Alföldy23, essa lei “determinava que desejavam incendiar a cidade. Talvez seus chefes o Senado devia ser completado periodicamente pelos tivessem decidido apenas semear o pânico ao atear censores, o que significava que o Senado podia ser fogo em algumas casas, na esperança de que o apego renovado durante cada censura através da nomeação de dos sitiados a seus lares os levasse a render-se, e a plebeus ricos e influentes. Ao mesmo tempo, essa lei conservar intacto certo número de residências, ao invés equiparava os senadores plebeus aos patrícios, de queimá-las todas, para que pudessem ter um penhor atribuindo aos conscripti o direito de voto pleno que suscetível de quebrantar a coragem do inimigo. até aí estivera reservado aos patres24. (...) O Senado Realmente o fogo não se propagou logo no primeiro deixou de ser o reduto exclusivo de uma nobreza de dia com a rapidez e a extensão com que costuma atingir sangue e fundiária privilegiada, como fora até aí”. as cidades capturadas. ▪ lex Hortensia (Lei Hortênsia), 287 a.C.: Embora o incêndio não tenha sido devastador, doravante, os decretos dos plebiscitos (plebiscita) como nos explica Tito Lívio (VIII, 28), foi o suficiente passaram a ser válidos mesmo sem o acordo do para traumatizar os romanos a ponto de, no século I Senado. Citando o historiador do século II d.C. Lúcio a.C., ainda ter destaque dentro da obra do historiador Floro (I, 26): latino. Ricos e pobres sofreram com o sítio imposto pelos gauleses, mas, certamente, os que possuíam Em meio a essas sedições, esse povo valoroso merece menos tiveram as maiores desgraças, aumentando suas admiração. Lutou por sua liberdade, por sua honestidade, por dívidas contraídas com o intento de refazer a vida. A sua dignidade de nascimento e também pelos cargos e honras, situação atingiu tal grau, que foi necessário decretar a mas, acima de tudo, bateu-se de forma mais valente pela lei para a redução das quantias devidas e distribuir salvaguarda da liberdade.25 parte do ager publicus entre os mais lastimados – isso, vinte anos depois do saque gaulês (não podemos nos No entanto, Géza Alföldy oferece-nos um esquecer, entretanto, que as situações de dívidas apenas contrapeso que tira um pouco o brilho do entusiasmo pioraram após a invasão, pois, a escravidão por dívidas, da conclusão de Floro: “Na base dessa reforma já existia há muito tempo, sendo abolida apenas em encontrava-se obviamente a convicção de que os 326 a.C. com a Lei Poetélia Papíria). interesses representados pelo Senado e pela assembléia Uma característica marcante para Roma a partir do povo eram, em grande medida, os mesmos, pois os do século III a.C. foi a formação, no interior da elite chefes do povo e os da assembléia do povo eram agora, dominante, da nobilitas (“nobreza”): um grupo restrito simultaneamente, os representantes e os elementos de consolidado como uma “aristocracia de patrícios e uma nova aristocracia senatorial”26. plebeus, com privilégios, propriedades fundiárias e fortuna”27. A ligação entre as famílias patrícias e plebéias teve um início bem anterior ao século III a.C., As leis acima mencionadas não foram casos quando da lex Canuleia (Lei Canuléia) de 445 a.C. que isolados de brigas entre patrícios e plebeus. Mais uma aboliu oficialmente a proibição dos casamentos entre membros patrícios e do povo28, embora tenha havido 22 Tito Lívio, X, 9. certa resistência por parte de alguns patrícios, como 23 A história social de Roma, p. 41. narra Tito Lívio (IV, 1): 24 O conselho dos anciãos, o Senado, era composto, em sua origem, apenas pelos pais de família patrícios (patres, “pais”), Logo no início do ano o tribuno da plebe Caio sendo os únicos que podiam exercer as magistraturas. Após o Canuléio apresentou ao Senado um projeto de lei que instituía século VI a.C., com a modificação do ordenamento social o casamento entre patrícios e plebeus, o qual, segundo os (baseado na riqueza) e a passagem para a República, plebeus ricos puderam juntar-se ao Senado, embora não tivessem o direito de votar até a Lei Ovínia, sendo denominados, então, de conscritos (conscripti, “inscritos” – nas tribos). 25 Apud Pedro Paulo Funari, “A cidadania entre os romanos”, in: 27 Pedro Paulo Funari, “A cidadania entre os romanos”, in: Jaime Jaime & Carla Pinsky (org.), História da cidadania, p. 55. & Carla Pinsky (org.), História da cidadania, p. 55. 26 Op. cit., p. 41. 28 Géza Alföldy, A história social de Roma, p. 35. 10

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