UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS Parentesco e aliança entre os Kalapalo do Alto Xingu Antonio Roberto Guerreiro Júnior SÃO CARLOS 2008 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS Parentesco e aliança entre os Kalapalo do Alto Xingu Antonio Roberto Guerreiro Júnior Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos, como parte dos requisitos para a obtenção do Título de Mestre em Ciências Sociais. Orientadora: Profa. Dra. Marina D. Cardoso SÃO CARLOS 2008 Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitária da UFSCar Guerreiro Júnior, Antonio Roberto. G934pa Parentesco e aliança entre os Kalapalo do Alto Xingu / Antonio Roberto Guerreiro Júnior. -- São Carlos : UFSCar, 2008. 217 f. Dissertação (Mestrado) -- Universidade Federal de São Carlos, 2008. 1. Etnologia. 2. Parentesco e casamento. 3. Alto Xingu - Brasil. 4. Índios Kalapalo. 5. Índios da América do Sul - Brasil. I. Título. CDD: 305.8 (20a) ANTONIO ROBERTO GUERREIRO JÚNIOR PARENTESCO E ALIANÇA ENTRE OS KALAPALO DO ALTO XINGU Dissertação apresentada à Universidade Federal de São Carlos, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Aprovado em 04 de março de 2008 BANCA EXAMINADORA Presidente: ____________________________________________________ Profa. Dra. Marina Denise Cardoso (Orientadora) 1ºExaminador: _________________________________________________ Prof. Dr. Marcos Pazzanese Duarte Lanna Universidade Federal de São Carlos 2ºExaminador: _________________________________________________ Prof. Dr. Edmundo Antônio Peggion Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” “ama” nïgifeke “mãe”, ele [o Macuco, uma ave] disse “ai” nïgifeke “sim?”, ela respondeu “tsakefofo ukilï” “ouça o que eu vou dizer” “eηufetsane talokimukaketsaηe awadyu “eu quero tentar a filha do meu tio, mesmo indisïna utefota que não dê certo eηufa Igifagafituna” na aldeia Igifagafitu” Igifagafitu anetugu endisï ele estava indo para lá se casar com a indisoi ege teta filha do chefe dos Igifagafitu igia ikatafa legei tïtina ele estava perguntando dela para sua mãe “eh he kiηi” nïgifehe “tudo bem, vá”, disse a mãe do Macuco (...) (...) etimbelï ele chegou “awa”, nïgifeke “tio”, ele disse “ai”, nïgifeke “sim?”, ele respondeu “ah, andeaka uwanïgï” “agora, como você vê, eu estou aqui” (...) (...) “eηï, nikefa, efisu enïgï eiña, nïgifeke “veja, seu irmão mais novo está aqui wegeykutsufa, só para você, wegeykutsufa” só para você”. (...) (...) “alatsï alatsï” “É bem assim que tem que ser, é bem assim que tem que ser”. (trechos de um mito extraídos de Basso, 1986) AGRADECIMENTOS Agradeço, em primeiro lugar, a meus pais, que sempre me deram todo o apoio necessário na área de trabalho que escolhi; A Marina Cardoso, que foi mais do que uma orientadora, pois me acolheu como aluno ainda na graduação, com todas as idéias vagas e confusas que eu tinha sobre o que pesquisar em antropologia, me deu a oportunidade de trabalhar com os Kalapalo e me ajudou a traçar os principais caminhos da pesquisa de campo e do Mestrado. E em meio a tudo isso, sobretudo, me formou como antropólogo; Ao Marcos Lanna, que sempre foi um interlocutor assíduo, não poupando ouvidos para as informações que eu trazia do campo a cada viagem e me dando todo o apoio intelectual com suas idéias e empolgação com os temas sobre a organização social kalapalo. A versão final desta Dissertação deve muito a algumas de suas idéias; A Marina Novo, amiga, parceira de trabalho de campo, companheira, “editora, revisora e crítica” de toda esta dissertação, meu “muitíssimo obrigado” por toda a ajuda no campo e na preparação deste trabalho, além, claro, da companhia, atenção e paciência na vida cotidiana; Ao apoio e aos comentários críticos de Edmundo Peggion e Marcio Silva, que foram muito atenciosos e não pouparam esforços para me fornecer bibliografia e material sobre o que refletir; Ao apoio pessoal e à companhia de todos os meus grandes amigos, Pedro Schio, Leonardo Pazetto, Fernão Constanzo, Daniel Dias, Guilherme “Bola” de Lima, Patrícia Begnami, Lucila Tonelli Alves (que gentilmente corrigiu o abstract mais de uma vez) e Lincoln Romualdo; Também agradeço ao CNPq, pelo financiamento do projeto de pesquisa do qual este trabalho fez parte e que possibilitou minhas idas ao campo; E, sobretudo, agradeço aos Kalapalo, que me acolheram com todo o cuidado, respeito e interesse que se poderia desejar. Sem a sua ajuda como intérpretes, tradutores, narradores, amigos, companheiros de pesca, parceiros de lutas de kindene e boas risadas, certamente esta pesquisa teria se tornado impossível. Devo agradecimentos especiais a Jeika e Ugise Kalapalo, que foram meus principais informantes e tradutores, e que fizeram um grande trabalho, com toda a paciência do mundo. Além deles, agradeço àqueles que me receberam em suas casas como hóspede durante minhas idas ao campo, que cuidaram de mim e que tornaram agradável minha estadia em Aiha: Aru, Waya, Numü, Itsapü, Ugise, Haja, Hagema, Tühone, Hinhuka, Indzeagü,... são muitos para serem nomeados; mas a todos eles, os meus sinceros e carinhosos agradecimentos, por tudo que me proporcionaram. RESUMO O objetivo principal desta dissertação de mestrado é descrever e analisar o sistema de aliança matrimonial dos Kalapalo, um grupo de língua karib do Alto Xingu (MT), por meio de uma revisão crítica das hipóteses disponíveis sobre o parentesco xinguano e da apresentação de novos dados etnográficos sobre aliança em relação aos presentemente disponíveis na literatura antropológica da região. Tais dados permitem identificar os tipos de uniões existentes e suas respectivas tendências estatísticas, subsidiando o teste das atuais hipóteses sobre as formas de transmissão e produção da afinidade nos sistemas alto-xinguanos no contexto etnográfico do sistema kalapalo. Ainda, torna-se possível discutir tanto o real alcance quanto os limites da hipótese sobre a estrutura de aliança dos povos da região ser do tipo (patri)multibilateral, pois os dados revelam a existência de um ideal e uma forte tendência dos Kalapalo para o casamento matrilateral. Considerando que a troca matrilateral é um fato pouco comum na Amazônia indígena, onde prevalecem variações do casamento patrilateral, esta característica do sistema kalapalo leva à problematização do modelo multibilateral proposto para os sistemas alto-xinguanos, e torna-se um problema fundamental investigar como estas diferentes estruturas se combinam em um mesmo sistema. Para tanto, será feita uma análise diacrônica de algumas redes de aliança, tendo em vista as condições de produção e redobramento de uniões e a coexistência de duas estruturas de troca (uma patri e outra matrilateral), o que levará a uma definição do sistema kalapalo como “complexo” e à associação dos casamentos matrilaterais com a instituição da chefia. Palavras-chave: parentesco, teoria da aliança, sistemas complexos de aliança, Alto Xingu, Kalapalo ABSTRACT The main aim of this paper is to describe and analyze the marriage alliance system of the Kalapalo, a karib-speaking group from Alto Xingu (MT), by means of a critical review of the available hypothesis on the xinguan kinship and the presentation of newer ethnographical data on alliance in relation to the presently available ones in the anthropological literature about the region. Such data allow to identify the types of existing unions and its respective statistical trends, subsidizing the test of the current hypotheses on the forms of transmission and production of affinity in upper-xinguan systems in the ethnographical context of the kalapalo system. Still, one becomes able to question about the real reach and also the limits of the hypothesis on the alliance structure of the peoples of the region to be of the (patri)multibilateral type, therefore the data disclose the existence of an ideal and a strong trend among the Kalapalo for the matrilateral marriage. Considering that the matrilateral exchange is not a common fact in indigenous Amazonia, where variations of the patrilateral marriage prevail, this characteristic of the kalapalo system leads us to question the multibilateral model considered for the upper-xinguan systems, and becomes a basic problem to investigate how these different structures combine in one same system. For that, a diachronical analysis of some alliance nets will be made, considering the conditions of production and redoubling of unions as well as the coexistence of two exchange structures (one patri and another matrilateral), what will lead to a definition of the kalapalo system as "complex" and to the association of the matrilateral marriages with the institution of chieftaincy. Key-words: kinship, alliance theory, complex alliance systems, Upper Xingu, Kalapalo ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES FIGURA 2.1: MAPA DO PARQUE INDÍGENA DO XINGU ........................................................................................................ 35 FIGURA 2.2: CROQUI DA REGIÃO DO ALTO XINGU SINALIZANDO ALGUMAS DAS ALDEIAS. .......................................................... 38 FIGURA 2.3: CROQUI DA ALDEIA KALAPALO AIHA, TAL COMO OBSERVADA ENTRE ABRIL E JUNHO DE 2007.................................... 41 FIGURA 2.4: CROQUI DE CASA KALAPALO COM SUAS DIVISÕES DOS ESPAÇOS INTERNOS E EXTERNOS. ........................................... 47 FIGURA 3.1: REPRESENTAÇÃO EM DIAGRAMA GENEALÓGICO DOS CÁLCULOS IROQUESES DE CRUZAMENTO. .................................. 69 FIGURA 3.2: REPRESENTAÇÃO DO ESPAÇO SOCIAL KALAPALO, DELINEADO PELO SISTEMA CLASSIFICATÓRIO DE PARENTES E NÃO- PARENTES EM RELAÇÃO AO POTENCIAL PARA A ALIANÇA MATRIMONIAL. ........................................................................ 72 FIGURA 4.1: REPRESENTAÇÃO EM DIAGRAMA GENEALÓGICO DA FORMA BÁSICA DAS TERMINOLOGIAS DE FUSÃO BIFURCADA............ 82 FIGURA 4.2: REPRESENTAÇÃO EM DIAGRAMA GENEALÓGICO DA TERMINOLOGIA DE PARENTESCO XINGUANA TAL COMO DESCRITA POR GALVÃO ........................................................................................................................................................... 83 FIGURA 4.3: REPRESENTAÇÃO GRÁFICA DOS CÁLCULOS TIPO A (DRAVIDIANO) E TIPO B (IROQUÊS) ............................................. 98 FIGURA 5.1: EXEMPLOS DE UNIÕES TRANSGERACIONAIS ................................................................................................... 122 FIGURA 5.2: TROCAS DE IRMÃS E CASAMENTOS DUPLOS REALIZADOS DE FORMA TRANSGERACIONAL. ........................................ 124 FIGURA 5.3: OUTROS EXEMPLOS DE UNIÕES TRANSGERACIONAIS ........................................................................................ 124 FIGURA 5.4: CASAMENTOS ENTRE PRIMOS CRUZADOS DE PRIMEIRO GRAU EM AIHA. .............................................................. 129 FIGURA 5.5: EXEMPLOS DE CASAMENTOS DE FILHOS DE PRIMOS CRUZADOS DE SEXO OPOSTO .................................................. 131 FIGURA 5.6: CASAMENTOS ENTRE FILHOS DE PRIMOS CRUZADOS DE MESMO SEXO E STATUS POLÍTICO DOS INDIVÍDUOS ENVOLVIDOS .................................................................................................................................................................... 132 FIGURA 6.1: RELAÇÕES DE TROCA BILATERAL ENTRE DUAS PARENTELAS DE AIHA, DESCENDENTES DE DOIS ANTIGOS CHEFES ........... 156 FIGURA 6.2: RELAÇÕES DE CASAMENTO ENTRE DUAS PARENTELAS DA ALDEIA E PARENTELAS DE OUTRAS ETNIAS .......................... 158 FIGURA 6.3: VISÃO AMPLA DO FRAGMENTO DE UMA REDE DE ALIANÇAS IDENTIFICANDO UMA TROCA DE IRMÃS .......................... 159 FIGURA 6.4: VISÃO LOCAL DE PARTE DA FIGURA 4.3. DOIS CASAMENTOS ASSIMÉTRICOS COM A PRIMA CRUZADA MATRILATERAL .... 160 FIGURA 6.5: DOIS CASAMENTOS ASSIMÉTRICOS COM A PRIMA CRUZADA MATRILATERAL ......................................................... 161 FIGURA 6.6: EXEMPLOS DE CASAMENTOS ASSIMÉTRICOS COM A MBD ................................................................................ 162 FIGURA 6.7: TROCAS DE IRMÃS E CASAMENTOS ASSIMÉTRICOS .......................................................................................... 164 FIGURA 6.8: DOIS CASAMENTOS COM A PRIMA CRUZADA MATRILATERAL ............................................................................. 166 FIGURA 6.9: TROCAS DE IRMÃS E CASAMENTOS ASSIMÉTRICOS .......................................................................................... 167 FIGURA 6.10: TROCA DE IRMÃS ................................................................................................................................... 168 FIGURA 6.11: TROCAS DE IRMÃS E CASAMENTOS ASSIMÉTRICOS ........................................................................................ 168 FIGURA 6.12: CASAMENTOS TRANSGERACIONAIS MÚLTIPLOS E TENDÊNCIA PARA A TROCA RESTRITA ......................................... 170 FIGURA 6.13: TROCA DE IRMÃS ATRAVÉS DO CASAMENTO MATRILATERAL DE UM HOMEM E DO CASAMENTO DE OUTRO COM A FZHD .................................................................................................................................................................... 171 FIGURA 6.14: HOMENS CASADOS COM SUAS MBD ENVOLVIDOS EM CICLOS PARALELOS DE TROCA ASSIMÉTRICA ......................... 172 FIGURA 7.1: ALGUNS EXEMPLOS DE CASAMENTOS MATRILATERAIS COM FILHAS DE PESSOAS DO GRUPO DE GERMANOS DO PRINCIPAL CHEFE DE AIHA ................................................................................................................................................ 188 FIGURA 7.2: RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS ENTRE OS TRÊS PRINCIPAIS CHEFES DE AIHA ................................................................. 191 FIGURA 7.3: HIERARQUIA DE TODOS OS CHEFES DE AIHA. TODOS REALIZARAM CASAMENTOS COM A PRIMA CRUZADA MATRILATERAL E SE ENCONTRAM NA POSIÇÃO DE “RECEPTORES” EM RELAÇÃO AO CHEFE PRINCIPAL (À EXCEÇÃO DE SEU PRÓPRIO IRMÃO) ...... 191
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