PARA UMA FILOSOFIA DO ATO M. M. Bakhtin Texto completo da edi(cid:231)ªo americana Toward a Philosophy of the Act (Austin: University of Texas Press, 1993 Translation and Notes by Vadim Liapunov Edited by Michael Holquist & Vadim Liapunov) Importante: esta tradu(cid:231)ªo, ainda nªo revisada, destina-se exclusivamente para uso didÆtico e acadŒmico. Tradu(cid:231)ªo de Carlos Alberto Faraco e Cristovªo Tezza 2 ˝NDICE PREF`CIO 3 Michael Holquist PREF`CIO DO TRADUTOR DA EDI˙ˆO AMERICANA 12 Vadim Liapunov INTRODU˙ˆO (cid:192) EDI˙ˆO RUSSA 15 S. G. Bocharov PARA UMA FILOSOFIA DO ATO 19 NOTAS 94 3 PREF`CIO Michael Holquist Em sua longa vida sob o poder soviØtico, Bakhtin experimentou todo o espectro de conseq(cid:252)Œncias que um escritor pode gerar, da censura, prisªo e banimento (cid:224) fama e adula(cid:231)ªo. O choque de sua prisªo durante o terror de StÆlin tornou-o extremamente cauteloso nos œltimos anos. Foi com grande dificuldade que um grupo de jovens admiradores no in(cid:237)cio dos anos 60 convenceram-no a publicar novamente. E foi somente quando ele alcan(cid:231)ava aclama(cid:231)ªo internacional como conseq(cid:252)Œncia dessas publica(cid:231)ıes, e jÆ sabendo que sua morte era iminente, que ele confessou a seus admiradores a existŒncia de um esconderijo com seus primeiros escritos. Eles estavam ocultos em Saransk, onde ele viveu depois de retornar de seu ex(cid:237)lio oficial no Cazaquistªo. Seus jovens amigos ficaram extasiados em 1972 ao saber que Bakhtin tinha, ao longo de suas muitas mudan(cid:231)as, conseguido conservar com ele alguns de seus escritos de juventude. Mas quando foram (cid:224) AssemblØia Legislativa da Mord(cid:243)via recuperar os manuscritos, ficaram horrorizados ao descobri-los empacotados num dep(cid:243)sito de madeiras, onde ratos e goteiras haviam danificado severamente os blocos de notas nos quais Bakhtin sempre escreveu seus livros. Depois de um longo per(cid:237)odo de decifra(cid:231)ªo e retranscri(cid:231)ªo por um ainda outro grupo devotado de jovens disc(cid:237)pulos, descobria-se que os blocos de notas continham os fragmentos de dois importantes projetos que Bakhtin havia empreendido no in(cid:237)cio de sua carreira, quando ainda se propunha trabalhar na tradi(cid:231)ªo da filosofia alemª. O maior dos dois manuscritos foi publicado como Art and Answerability pela Editora da Universidade do Texas, em 1990. O fragmento menor Ø agora publicado como Para uma filosofia do ato 4 [Toward a Philosophy of the Act], traduzido e anotado por Vadim Liapunov, cujo trabalho na edi(cid:231)ªo de 1990 recebeu aclama(cid:231)ªo universal. O aparecimento do presente livro Ø um evento importante para pelo menos dois pœblicos: o nœmero cada vez maior daqueles que se interessam por Bakhtin como a figura fundadora do dialogismo, um pensador independente, e o nœmero ainda maior daqueles que se interessam pelas questıes relativas (cid:224) rela(cid:231)ªo da filosofia com a teoria literÆria, particularmente aqueles ocupados com a rela(cid:231)ªo problemÆtica entre estØtica e Øtica. Para o primeiro grupo, este texto Ø leitura obrigat(cid:243)ria porque se trata do mais antigo dos textos confirmados de Bakhtin, datando de 1919-1921. Ele estava no centro de todas as priva(cid:231)ıes e est(cid:237)mulos criados pelos efeitos da Revolu(cid:231)ªo, em Nevel e Vitebsk. Havia falta de mantimentos e um caos extraordinÆrio em volta, mas para os intelectuais e artistas era um per(cid:237)odo de grande atividade. Havia muitas orquestras, constitu(cid:237)das por refugiados do antigo conservat(cid:243)rio imperial de Sªo Petersburgo; a escola de arte era animada por disputas entre Chagall e Malevich. E havia interminÆveis conferŒncias pœblicas, debates em palcos e discussıes organizadas que atra(cid:237)am grandes multidıes que discutiam em torno das questıes eternas sobre Deus, liberdade, justi(cid:231)a e pol(cid:237)tica. Embora Bakhtin jÆ nesse tempo sofresse de uma grave osteomielite (e de complica(cid:231)ıes decorrentes de um ataque de tifo), ele era jovem, animado e estava totalmente engajado em projetos vÆrios, tanto privados como pœblicos. Para uma filosofia do ato Ø o resultado de um desses projetos. Era dif(cid:237)cil ler o manuscrito original do presente volume nªo apenas pelos estragos do tempo, mas tambØm porque, na sua maior parte, foi escrito com pressa, com algumas partes mais claras sob a letra de sua esposa, que transcrevia o ditado do marido durante os per(cid:237)odos em que sua doen(cid:231)a (cid:243)ssea impedia-o de escrever com a pr(cid:243)pria mªo. Nos garranchos meio apagados n(cid:243)s podemos sentir a corrida entre a produ(cid:231)ªo das idØias e sua transcri(cid:231)ªo febril. Este volume nos dÆ uma oportunidade de ver Bakhtin em todo o calor e urgŒncia de seu pensamento enquanto ele luta consigo mesmo. Em Para uma filosofia do ato n(cid:243)s captamos Bakhtin no ato (cid:150) no ato de cria(cid:231)ªo. 5 AlØm disso, esse texto ilumina o perfil da obra inteira de Bakhtin, na medida em que demonstra a profundidade de seu precoce envolvimento no discurso profissional da filosofia. Mais precisamente, ele revela novas filia(cid:231)ıes entre os temas que pela primeira vez aparecem aqui e que guiarªo o pensamento de Bakhtin atravØs do curso de sua longa vida. Os t(cid:243)picos de (cid:147)autoria(cid:148), (cid:147)responsabilidade(cid:148), eu e o outro, o significado moral da (cid:147)exotopia(cid:148), o (cid:147)estar do lado de fora(cid:148), o (cid:147)pensamento participativo(cid:148), as implica(cid:231)ıes do fato de o sujeito individual viver um (cid:147)nªo-Ælibi na existŒncia(cid:148), a rela(cid:231)ªo entre o mundo experimentado pela a(cid:231)ªo e o mundo representado no discurso (cid:150) todos eles sªo discutidos aqui no puro calor da descoberta. Esses temas estarªo presentes de uma forma mais clara e espec(cid:237)fica em trabalhos futuros, mas o seu poder de sugestªo e de alcance nªo serªo maiores do que eles jÆ sªo neste volume. N(cid:243)s estamos aqui no cora(cid:231)ªo da matØria, no centro do diÆlogo entre o ser e a linguagem, o mundo e a mente, o (cid:147)dado(cid:148) e o (cid:147)criado(cid:148) que estarªo no (cid:226)mago do dialogismo distintivo de Bakhtin, como ele mais tarde o desenvolverÆ. Um modo de estabelecer a import(cid:226)ncia desse trabalho Ø contrastÆ-lo com o projeto que ele estÆ procurando criticar e corrigir. Muito tem-se discutido sobre o interesse do jovem Bakhtin pela escola de Marburg do neo-kantismo. O que essas pÆginas deixam claro Ø a obsessªo de Bakhtin nªo tanto com Hermann Cohen e seus seguidores, mas com o pr(cid:243)prio Kant. N(cid:243)s sabemos que durante o tempo em que ele trabalhava com Para uma filosofia do ato, Bakhtin incessantemente lia, debatia e dava conferŒncias sobre Kant, como ele continuaria a fazer depois de seu retorno a Sªo Petersburgo em 1924. Colocando de forma muito crua, este texto Ø uma tentativa de destranscendentalizar Kant, e mais particularmente pensar alØm da formula(cid:231)ªo kantiana do imperativo Øtico. Kant argumentava que a Øtica poderia ser fundada no princ(cid:237)pio de que todos os agentes morais deveriam fazer julgamentos (cid:147)como se(cid:148) suas conseq(cid:252)Œncias nªo se aplicassem a um caso particular envolvendo os pr(cid:243)prios interesses do agente, mas antes (cid:147)como se(cid:148) cada julgamento pudesse afetar qualquer pessoa em qualquer tempo. Bakhtin chama esse princ(cid:237)pio de (cid:147)a universalidade do dever(cid:148). Tal princ(cid:237)pio protege a moral do v(cid:237)cio potencial do 6 relativismo descontrolado. Ele portanto tem muito a dizer num mundo p(cid:243)s- iluminismo nªo mais capaz de invocar a autoridade de um Deus nªo problemÆtico. O princ(cid:237)pio (cid:150) de fato uma versªo filosoficamente refinada e racionalmente motivada da regra de ouro (cid:150) continua a ser constru(cid:237)do na maior parte das nossas teorias correntes do direito, como formalizado, por exemplo, nas influentes idØias de John Rawl na sua Teoria da Justi(cid:231)a de 1971. Mas a Øtica de Kant deixa alguma coisa importante de fora, de acordo com Bakhtin. O sistema Ø altamente abstrato: ele ganha autoridade marcando uma dist(cid:226)ncia do espec(cid:237)fico, do local (cid:150) de qualquer coisa, em outras palavras, que tenha um toque subjetivo em torno de si. Bakhtin neste volume estÆ procurando recuperar a imediaticidade nua da experiŒncia como ela Ø sentida de dentro da mÆxima particularidade de uma vida espec(cid:237)fica, a lava fundida dos eventos enquanto eles acontecem. Ele procura a qualidade pura do acontecer na vida antes que o magma de tal experiŒncia esfrie, endurecendo-se em teorias do fogo, ou relatos do que aconteceu. E justo como a lava difere da pedra que ela se tornarÆ, assim os dois estados da experiŒncia vivida, de um lado, e sistemas para registrar tal experiŒncia, de outro, sªo fundamentalmente diferentes um do outro. Bakhtin nªo estÆ falando sobre o agora familiar abismo entre a ordem dos signos e a ordem das coisas, mas meditando sobre a diferen(cid:231)a mais primordial entre atos (f(cid:237)sicos e mentais) que n(cid:243)s sentimos como unicamente nossos em sua realiza(cid:231)ªo (cid:150) eventos ocorrendo no que Bakhtin chama aqui de o (cid:147)evento œnico do Ser(cid:148) (cid:150) e as conseq(cid:252)Œncias de tais eventos. Ele quer compreender como a diferen(cid:231)a entre o que Ø agora e o que Ø depois-de-agora poderia ser vinculada com a rela(cid:231)ªo que eu formo entre eles em toda a singularidade do meu lugar œnico na existŒncia. A maioria das pessoas reconhecerÆ intuitivamente que alguma coisa Ø sempre deixada para fora quando n(cid:243)s descrevemos nossas a(cid:231)ıes. Bakhtin argumenta que isso nªo Ø meramente uma fraqueza do nosso poder de descri(cid:231)ªo, mas uma desunidade constru(cid:237)da na natureza das coisas. Como, entªo, podem as duas ordens (cid:150) experiŒncia e representa(cid:231)ªo da experiŒncia (cid:150) ser colocadas juntas? Esse Ø um problema que outros membros do c(cid:237)rculo de Bakhtin em Nevel e Vitebsk estavam tambØm procurando resolver, e seus encontros eram devotados a 7 interminÆveis discussıes sobre o assunto. O amigo fil(cid:243)sofo de Bakhtin, Matvei Kagan, estava usando a historiografia como um exemplo de como um evento e sua descri(cid:231)ªo poderiam ser concebidos para ter coerŒncia; Pumpiansky lutava com a questªo em suas leituras de DostoiØvski. Mas foi Bakhtin quem tentou confrontar diretamente o problema. Muito da dificuldade da prosa de Bakhtin deriva, portanto, da complexidade da tarefa que ele se imp(cid:244)s. Num sentido bastante literal, ele volta ao ponto em que Kant come(cid:231)ou seu questionamento: como podem conceitos, que por defini(cid:231)ªo devem ser transcendentais (no sentido de serem independentes de qualquer experiŒncia particular se pretendem organizar a experiŒncia em geral) relacionarem-se com a minha experiŒncia subjetiva em toda a sua unicidade? (cid:147)ExperiŒncia poss(cid:237)vel(cid:148) Ø um fator maior no sistema de Kant, o que incomoda Bakhtin, aqui, grandemente. Porque (cid:147)experiŒncia poss(cid:237)vel(cid:148) Ø uma ordem de experiŒncia que nªo Ø unicamente minha; ela presume que eu possa totalmente me identificar com um outro: (cid:147)A pura empatia, isto Ø, o ato de coincidir com um outro e perder o pr(cid:243)prio lugar œnico no Ser œnico, pressupıe o reconhecimento de que minha pr(cid:243)pria unicidade e a unicidade do meu lugar constituem um momento nªo essencial que nªo tem influŒncia no carÆter da essŒncia do ser do mundo. Mas esse reconhecimento da unicidade pr(cid:243)pria œnica como nªo essencial para a concep(cid:231)ªo do Ser tem a inevitÆvel conseq(cid:252)Œncia de que se perde tambØm a unicidade do Ser, e, como resultado, n(cid:243)s chegamos (cid:224) concep(cid:231)ªo do Ser apenas como Ser poss(cid:237)vel, e nªo essencial, real, œnico, inescapavelmente Ser real. Esse ser poss(cid:237)vel, contudo, Ø incapaz de devir, Ø incapaz de viver. O significado de um Ser para o qual o meu lugar œnico no Ser foi reconhecido como nªo essencial nªo serÆ jamais capaz de me conferir sentido, nem Ø esse realmente o significado do Ser-evento(cid:148) (p. 17 da presente tradu(cid:231)ªo). Bakhtin estÆ condenado, desde o in(cid:237)cio, pela natureza de seu assunto, a realizar uma tarefa imposs(cid:237)vel: (cid:147)Todas as tentativas de for(cid:231)ar caminho de dentro do mundo te(cid:243)rico para o Ser-evento real sªo completamente sem esperan(cid:231)a(cid:148) (p. 13 da presente tradu(cid:231)ªo). Mesmo reconhecendo que todas as descri(cid:231)ıes dos atos diferem fundamentalmente dos atos tais como eles realmente sªo realizados, ele 8 procura descrever (cid:150) o pr(cid:243)prio ato. (cid:201) uma maneira particularmente complexa de demonstrar a verdade do velho dito segundo o qual vocŒ nªo pode escapar da teoria, porque qualquer oposi(cid:231)ªo (cid:224) teoria Ø em si inelutavelmente te(cid:243)rica. TambØm, e nªo por coincidŒncia, Bakhtin aqui revela alguns dos pathos existenciais que repousam nesta inelutabilidade. Em sua tentativa de criar uma ponte no abismo entre o ato vivido e a representa(cid:231)ªo do (cid:147)mesmo(cid:148) ato (que, Ø claro, nªo Ø nunca o mesmo), Bakhtin opıe-se ao princ(cid:237)pio kantiano do (cid:147)como se(cid:148), colocando no lugar um outro princ(cid:237)pio: aquele do (cid:147)nªo-Ælibi(cid:148) na existŒncia. A maior diferen(cid:231)a entre os dois princ(cid:237)pios (pelo menos no n(cid:237)vel formal; hÆ, Ø claro, muitas diferen(cid:231)as em outros n(cid:237)veis que nªo sªo menos definidoras) pode ser localizada na funda(cid:231)ªo que cada um pressupıe como a base da a(cid:231)ªo Øtica. Para Kant, Ø a s(cid:237)ntese entre sensibilidade e razªo sobre a qual todo o seu sistema Ø baseado. Esta s(cid:237)ntese requer de Kant a postula(cid:231)ªo de duas formas bÆsicas de intui(cid:231)ªo, tempo e espa(cid:231)o, e suas doze categorias (subst(cid:226)ncia, for(cid:231)a, etc.) como transcendentalmente necessÆrias, na medida em que elas sªo anteriores a qualquer ato espec(cid:237)fico de julgamento. Bakhtin, tambØm, estÆ aqui procurando uma s(cid:237)ntese entre sensibilidade (o ato vivido, o mundo de postupok1) e razªo (nossos sistemas discursivos descrevendo ou dando significado ao ato, um mundo sempre aberto ao perigo de cair em mero (cid:147)teoreticismo(cid:148)). Mas o todo que ele postula como capaz de conter ambos nªo Ø fundado em uma estrutura prØ-existente (a necessÆria co- dependŒncia entre razªo e compreensªo, sensibilidade pessoal e categorias extra- pessoais que sªo sempre anteriores a inst(cid:226)ncias espec(cid:237)ficas, isto Ø, a s(cid:237)ntese transcendental de Kant). Para Bakhtin, a unidade de um ato e seu relato, uma a(cid:231)ªo e seu significado, se preferir, Ø algo que nunca Ø um a priori, mas que deve sempre e em toda parte ser conquistado. O ato Ø uma a(cid:231)ªo, e nªo um mero acontecimento (como em (cid:147)uma maldita coisa depois da outra(cid:148)), apenas se o sujeito de tal 1 Postupok: do russo, (cid:147)meu pr(cid:243)prio ato ou a(cid:231)ªo individualmente responsÆvel(cid:148). V. nota 10 ao final do 9 postupok, de dentro de sua unicidade radical, tece uma rela(cid:231)ªo com ele em seu relato dele. A responsabilidade, entªo, Ø a funda(cid:231)ªo da a(cid:231)ªo moral, o modo pelo qual n(cid:243)s superamos a culpa da cisªo entre nossas palavras e nossas a(cid:231)ıes, mesmo que nªo tenhamos um Ælibi na existŒncia (cid:150) de fato, porque nªo temos tal Ælibi: (cid:147)(cid:201) apenas o meu nªo-Ælibi no Ser que transforma uma possibilidade vazia em um ato ou a(cid:231)ªo responsÆvel e real...(cid:148) (p. 44 da presente tradu(cid:231)ªo). Uma maneira de imaginar a import(cid:226)ncia que o nªo-Ælibi tem para Bakhtin Ø pensÆ-lo nªo como uma carŒncia que eu deva preencher, mas como uma carŒncia no Ser, um buraco no tecido do mundo. O vÆcuo que o Nªo-Ælibi parece nomear para Bakhtin Ø alguma coisa de que todos n(cid:243)s temos consciŒncia. (cid:201) o espa(cid:231)o entre o conhecimento objetivo e subjetivo que, especialmente em face do poder indubitÆvel das ciŒncias exatas desde o sØculo XVII, manifesta-se com freq(cid:252)Œncia crescente. A diferen(cid:231)a entre a ordem do mundo matemÆtico e o mundo da experiŒncia humana sempre tem sido reconhecida. A impersonalidade do mundo objetivo da geometria era justamente o que a recomendava para Platªo como um modelo de perfei(cid:231)ªo que poderia proveitosamente se opor ao mundo desajeitado dos reflexos no qual os seres humanos reais vivem suas breves existŒncias, confundidos por imita(cid:231)ıes degradadas e sombras bruxuleantes. A diferen(cid:231)a entre o cosmo objetivo e nosso mundo humano foi demonstrada aos legionÆrios romanos cada vez que uma de suas unidades era punida com a dizima(cid:231)ªo: na ordem dos nœmeros, a diferen(cid:231)a entre (cid:147)nove(cid:148) e (cid:147)dez(cid:148) Ø puramente sistŒmica; para o soldado postado na nona linha significava vida, enquanto o fato (cid:147)objetivo(cid:148) de ser o dØcimo condenava o pr(cid:243)ximo homem da linha (cid:224) morte. A diferen(cid:231)a entre este evento como visto apenas da perspectiva da teoria dos nœmeros, e como o que significa para um legionÆrio real num dia particular Ø a cisªo que a categoria do nªo-Ælibi de Bakhtin procura conciliar. A distin(cid:231)ªo se tornou ainda mais profunda na f(cid:237)sica p(cid:243)s-qu(cid:226)ntica. Como Richard Feynman define o caso com sua clareza costumeira, (cid:147)em todas as leis da f(cid:237)sica que n(cid:243)s encontramos atØ aqui nªo parece haver qualquer distin(cid:231)ªo entre volume. (Nota da trad. brasileira) 10 passado e futuro(cid:148)2. Isto Ø, as leis da gravidade, eletricidade e magnetismo, intera(cid:231)ªo nuclear, as leis da part(cid:237)cula beta (cid:150) elas sªo todas indiferentes ao tempo, jÆ que sªo em si processos que permanecem os mesmos, mesmo que a ordem em que ocorram se inverta. Mas apesar disso, se um copo de Ægua cai da mesa, nenhum de n(cid:243)s espera que as gotas se reconstituam, que os cacos estilha(cid:231)ados voem juntos de volta (cid:224) forma anterior, ou entªo que todo o complexo salte do chªo de volta (cid:224) mesa. O modo mais pungente pelo que manifestamos nossa expectativa de que o tempo nªo Ø revers(cid:237)vel Ø o conhecimento seguro que cada um de n(cid:243)s tem de que um dia morreremos. E entretanto o copo (cid:150) e nossos corpos (cid:150) sªo feitos no mais bÆsico n(cid:237)vel de Ætomos, molØculas e quarks, todos eles comportando-se, literalmente, como se nªo houvesse amanhª (cid:150) ou ontem. As frias extensıes do espa(cid:231)o, o cosmo como ele Ø entendido na f(cid:237)sica te(cid:243)rica, Ø um espa(cid:231)o no qual os seres humanos nªo sªo necessÆrios. (cid:201) de fato o caso que, como Bakhtin diz, (cid:147)um abismo se formou entre o motivo de um ato ou a(cid:231)ªo realmente realizados e seu produto (...). N(cid:243)s evocamos o fantasma da cultura objetiva, e agora nªo sabemos como exorcizÆ-lo(cid:148) (pp. 57-58 da presente tradu(cid:231)ªo). E entretanto nªo podemos, como fizeram alguns dos assim chamados fil(cid:243)sofos da vida (Dilthey, Bergson), ou os existencialistas nos anos 50, ignorar o mundo objetivo: nosso mundo como a(cid:231)ªo responsÆvel (cid:147)nªo deve se opor (cid:224) teoria e ao pensamento, mas incorporÆ-los em si como momentos necessÆrios que sªo totalmente responsÆveis(cid:148) (p. 58 da presente tradu(cid:231)ªo). Isso significa que (cid:147)o mundo no qual um ato ou a(cid:231)ªo realmente se desenvolve, no qual ele Ø realmente completado, Ø um mundo unitÆrio e œnico (...). A unicidade unitÆria desse mundo (...) Ø garantida (cid:224) realidade pelo reconhecimento de minha participa(cid:231)ªo œnica nesse mundo, por meu nªo-Ælibi nele. (...) Esse mundo Ø dado para mim, do meu œnico lugar no Ser, como um mundo que Ø concreto e œnico. Para a minha consciŒncia participativa que age, esse mundo, como um todo arquitet(cid:244)nico, estÆ disposto em torno de mim como 2 Richard Feynman, (cid:147)The Distinction of Past and Future(cid:148), em The World Treasury of Physics,