Para que Serve o Conceito de Honra, ainda hoje? Fabíola Rohden Peristiany, J. G. (org.). 1971 [1965]. Honra e Vergonha: valores das sociedades mediterrâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. IMS/UERJ Peristiany, J. G. & J. Pitt-Rivers (eds.). 1992. Honor and Grace in Anthropology. Cambridge: Cambridge University Press. I O conceito de honra – ou os núcleos simbólicos comumente a ele associados – pode ser reconhecido como um dos conceitos clássicos da teoria social, básico para a compreensão de determinados sistemas sociais e, muito freqüentemente, tomado mais como um pressuposto que como objeto de estudos. Este ensaio procura contribuir no sentido de fornecer um guia crítico de referências básicas que permita aos leitores vislumbrar as potencialidades e conexões analíticas possíveis por meio da consideração das problemáticas associadas à honra. Percorrendo a bibliografia sobre o conceito é possível perceber que os estudos que têm tratado do tema mantêm-se girando em torno de um conjunto de referências comuns, centradas nas pesquisas que envolveram a chamada “área cultural mediterrânea” e as suas críticas.1 Dada exatamente a intensidade das ressalvas feitas às análises envolvendo honra, poder-se-ia perguntar a respeito da validade da sua discussão ainda hoje. O que se poderia argumentar, entre outras coisas, é que os estudos agrupados em torno da noção de honra chamam a atenção, particularmente, para as variadas formas pelas quais são encenados ou construídos os conjuntos de valores associados ao gênero e, em particular, aos modelos de família adotados em cada contexto. Esses valores expressam algo importante da sociedade em questão ao mesmo tempo em que funcionam como operadores eficazes de determinados mecanismos sociais. A literatura sobre honra/vergonha mostra as diversas possibilidades concretas como Campos 7(2):101-120, 2006. isso acontece. 101 Fabíola Rohden Esse núcleo de referências teóricas só se torna desinteressante se desconsiderarmos os intensos e produtivos debates que o conceito de honra provocou dentro da antropologia. O questionamento da idéia de uma “área cultural mediterrânea”, da homogeneização que poderia implicar, ou da naturalização de certos “traços” culturais, psicológicos ou comportamentais, promoveu uma rica discussão, expressa exemplarmente nos trabalhos de J. Davis (1977), M. Herzfeld (1980, 1984) e J. de Pina Cabral (1991). Davis (1977) constrói uma posição em que, ao mesmo tempo em que problematiza a “homogeneidade cultural” do Mediterrâneo, defende a especificidade dos estudos nessa área que se teria singularizado por meio do contato cultural ocorrido historicamente. Já Herzfeld (1980, 1984) e Pina Cabral (1991) assumem uma posição mais crítica e focam suas ponderações nos apriorismos conceituais e nas macro-comparações empreendidas por muitos autores. Na verdade, o ponto central, que aparece com mais ênfase no trabalho de Pina Cabral (1991), é que as estratégias de constituição de uma área específica de estudos dentro da antropologia, em torno do Mediterrâneo e da noção de honra, acabaram reforçando os aspectos comuns de culturas muito distintas internamente. As análises terminaram girando em círculos destinados a reificar uma determinada visão etnocêntrica. Além disso, Herzfeld (1980) chama a atenção para as limitações das traduções para a língua inglesa dos variados termos associados à noção de honra nas diferentes culturas do contexto geográfico estudado. Trata ainda do perigoso procedimento envolvido nas generalizações feitas a partir de características culturais de regiões particulares, que acabam reforçando estereótipos como a própria idéia de “mediterrâneo” (Herzfeld 1984). É interessante notar que tanto Herzfeld (1980) quanto Pina Cabral (1991) fazem uma distinção importante entre os autores que estrategicamente se apegaram à noção de “área cultural mediterrânea” e os trabalhos pioneiros dedicados ao estudo dos fenômenos associados ao tema da honra. Herzfeld (1980:339) afirma que na primeira coleção sistemática de ensaios sobre o tema publicada em 1965 por Peristiany as correlações fáceis eram evitadas por meio de uma “atenção escrupulosa” aos detalhes etnográficos, assim como a comparação transcultural era desejada mas não forçada. No mesmo sentido, Pinal Cabral (1991:89) diz que, apesar dos possíveis erros e defeitos que se possa reconhecer no trabalho dos pioneiros como Pitt-Rivers, Campbell, Stirling ou Friedl, “generalizações, claramente etnocêntricas e indevidamente substanciadas” – comuns nos trabalhos posteriores – não serão neles encontradas. O C Temos assim, portanto, ao lado do intenso debate, recuperada a importância dos trabalhos que pretenderam I F Á dar conta, de forma inovadora na época, dos sistemas morais associados, aproximadamente, com a noção de honra, R G em diferentes sociedades. Aproximadamente porque, como será possível perceber nos artigos produzidos ainda O I L na década de 1960, a variação dos termos, do conteúdo acionado e das práticas efetivadas em cada contexto com B I relação àquilo que apenas analiticamente ou provisoriamente poderia se chamar de “honra” é bastante significativa. B O De um modo geral, vê-se operando nesses trabalhos o privilégio à etnografia e às análises comparativas mas sem I SA o reducionismo das generalizações mais abrangentes que se tornariam comuns mais tarde. N E Além desses aspectos que justificam um interesse no debate teórico a respeito da noção de honra, é preciso 102 enfatizar também um outro fator. Trata-se do fato de que é freqüente uma certa confusão no uso das referências Para que Serve o Conceito de Honra, ainda hoje? à honra nos estudos sobre o Brasil. É claro que não estou me referindo aos estudiosos do tema mas a um certo senso comum letrado que percebe como única ou cristalizada a noção de honra que aparece, por exemplo, em pensadores clássicos da formação nacional e nos discursos cotidianos hoje em dia.2 Certamente, temas como honra, vergonha e família têm estado muito impregnados no nosso vocabulário básico de compreensão da sociedade brasileira, mas é preciso ter cuidado com os sentidos atribuídos em cada contexto. A reificação de uma determinada visão única e invariável de honra pode ser muito contraproducente. Seu perigo reside exatamente na força que o termo possui ao ser capaz de associar muitos núcleos simbólicos ou remeter a muitos domínios importantes como gênero, família, política, religião. Sem uma definição clara e precisa, em cada situação etnográfica, honra pode se transformar em um conceito mágico que fecha as explicações sem levar a uma compreensão mais aprofundada dos fenômenos. É exatamente por isso que se faz necessário um conhecimento mais abrangente da história do conceito e dos debates em torno dele. Se usado a partir de um pondo de vista crítico, apoiado no valor dos dados etnográficos, pode ser um recurso analítico interessante. II O conceito de honra aparece na antropologia de forma mais realçada com as pesquisas inaugurais de J. G. Peristiany e J. Pitt-Rivers durante a década de 1960. Seus trabalhos e os de autores próximos chamam a atenção para a importância desse conceito em termos de seu potencial heurístico especialmente em se tratando das sociedades mediterrâneas. A importante coletânea editada por J. G. Peristiany em 1965 – Honra e Vergonha: valores das sociedades mediterrâneas – delimita o entendimento do que seriam os seus princípios básicos e o tipo de aplicação possível em distintos contextos etnográficos. Na “Introdução”, Peristiany explica que o par honra/vergonha faz parte do sistema de regras de conduta ou de regulamentos sociais comum a todas as sociedades. Honra e vergonha seriam dois pólos da valorização social que implica a hierarquização dos indivíduos. São universais, todas as sociedades teriam suas formas de honra e vergonha. Contudo, o autor deixa claro o fato de que algumas sociedades se referem a esta forma de valorização mais constantemente que outras, com destaque para as sociedades da “área cultural mediterrânea” que apresentariam certas continuidades ou persistências na forma de pensar, especialmente quando O se considera a relação homem-mulher e os diferentes papéis atribuídos aos sexos. C I Mais de quatro décadas depois percebe-se que a produção sobre este tema ainda se mantém atrelada a F Á R estes primeiros estudos, mesmo que de uma perspectiva crítica. Uma contribuição de vulto nos últimos anos, G O pelo menos em termos da junção da vários artigos e autores, é apresentada como um segundo volume do livro LI B de 1965. Trata-se de Honor and Grace in Anthropology, editado por Peristiany e Pitt-Rivers em 1992. Nesta obra I B evidentemente alguns novos autores aparecem, mas ao lado dos que figuraram na primeira. Há tentativas de O I redefinições e precisões conceituais e também de respostas às críticas anteriormente suscitadas. Uma análise de A S N sua introdução é bastante reveladora. Os autores sinalizam algumas mudanças na antropologia, como uma maior E preocupação com o simbolismo e a religião e afirmam que as discussões sobre honra têm que açambarcar o 103 Fabíola Rohden domínio do sagrado, do ritual, do religioso. Aproximações aparecem no sentido de que honra e religião conferem prestígio, a honra é considerado sagrada, honra e graça, desonra e desgraça podem ser equivalentes em alguns contextos. Isto justificaria o título e o objetivo do livro. Além disso, apresentam o conceito de honra de uma forma bem mais flexível, atentando para os contextos sociais e temporais em jogo e para as manipulações performadas pelos grupos sociais3. Honra estaria implicada em diversos aspectos e instituições do mundo mediterrâneo. Representaria não só uma variedade de personalidades sociais presentes em uma dada sociedade, mas também os interesses variados e conflitantes de grupos rivais, como linhagens, clãs, classes ou corporações, que dão precedência, na sua definição de honra, a aspectos que favoreçam sua promoção social (Peristiany e Pitt-Rivers 1992:4). Nesta definição dois pontos são importantes e inovadores. O primeiro diz respeito à dimensão mais abrangente que o conceito ganha na dinâmica social. Os autores dizem que é um erro olhar a honra como um conceito único e constante. Ao contrário, deve estar em foco a noção de um campo conceitual, no qual as pessoas encontram meios para expressar sua estima por si mesmas ou pelos outros. Estaria suposta uma concepção de cultura não como um conjunto de regras de conduta que garantem a organização da sociedade, mas como uma estrutura de premissas conflitantes a partir das quais a luta por domínio tem lugar – o que leva ao segundo ponto. A honra deixa de ser conceituada só em termos de demonstração de precedência ou poder e passa a ser considerado o fato de que o controle de sua definição é também um meio de obtê-la e mantê-la. Exemplos disso são a disputa entre a Igreja e a nobreza sobre a sua definição em termos de dádiva divina ou conquista pelo uso corajoso das armas, ou as distinções entre os tradicionais detentores de posição social e os novos ricos. Cada classe ou grupo instituiria sua própria honra e avaliar-se-ia e aos outros nestes termos. Peristiany e Pitt-Rivers (1992) trazem ainda o componente paradoxal do conceito de honra, na medida em que esta representa tanto uma questão de consciência moral e um sentimento quanto um fato de reputação ou precedência (ligada à virtude do nascimento, poder, riqueza, santidade, prestígio etc.). Isto implicaria que a honra não pode ser reduzida ou tratada como um epifenômeno de algum outro fato mas que ela obedece a uma lógica própria, o que poderia dissipar este paradoxo. Os críticos do primeiro livro teriam afirmado que honra se referia apenas à distribuição de poder e riqueza, apoiando-se em argumentos reducionistas materialistas e não dando O C conta do paradoxo evidenciado. Este novo volume, mais uma vez através de exemplos etnográficos, tentaria I F mostrar como o sistema opera eficazmente. Á R G Uma certa tensão ao aproximar as duas edições ou evidenciar suas diferenças fica patente. Os autores O I dizem que agora não estão apenas preocupados com o Mediterrâneo mas, em continuação ao livro de 1965, estão L B I centrados na mesma parte do mundo e preocupados com o mesmo tema. Na verdade, o que está em jogo aqui é B esclarecer os desentendimentos sobre a noção de Mediterrâneo como área cultural. Argumentam que usaram esta O I A idéia apenas epistemologicamente, não compactuando com estudos que maximizam este conceito e pressupõem S N uma definição geográfica. Problematizam a precisão com que se pode falar do que está dentro ou fora de uma área E cultural. Afirmam que estavam interessados tanto nas semelhanças quanto nas diferenças culturais dos povos que 104 Para que Serve o Conceito de Honra, ainda hoje? circundam o Mediterrâneo. E definem que o “conceito de honra mediterrânea” indica apenas uma tendência em associar honra masculina com pureza sexual feminina, pois há áreas no Mediterrâneo onde ela não ocorre ou a variação é muito grande. Outro mal-entendido que tentam esclarecer é que, quando usaram o termo shame no título do primeiro livro, não pretendiam entrar na distinção da cultura mediterrânea como shame culture ou guilt culture no sentido usado por M. Mead. Dizem que até poderiam ter usado o termo infamy, mas que não o fizeram porque infâmia se restringe à conotação de reputação, não enfocando também os sentimentos, o que transparece em vergonha. Depois de esclarecidas essas pendências, pode-se passar para uma análise mais geral dos usos do conceito de honra e discutir alguns pressupostos teóricos implícitos nas análises concretas. III Inicialmente vou examinar os artigos produzidos na década de 1960, tentando articular suas principais proposições, para depois estabelecer algumas relações com os trabalhos mais recentes. Os textos de J. Pitt-Rivers são os que mais acuradamente têm procurado definir o conceito de honra.4 Honra aparece como possuindo uma estrutura geral presente nas instituições e valores de uma determinada cultura. Seus princípios estariam em toda parte, mas seu significado variaria no tempo, no espaço e de uma classe para outra. Validar-se-ia a si mesmo a partir da interpretação que fornece aos fatos, envolvendo-se em contradições que refletem os conflitos da própria estrutura social (Pitt-Rivers 1979). Além disso, honra poderia ser entendida como um nexo entre os ideais da sociedade e a sua reprodução no indivíduo (Pitt-Rivers 1971), o que abre dois leques de apreciação: a) honra como atributo individual; e b) honra com relação às solidariedades sociais. a) Honra como atributo individual Honra neste sentido é o valor que uma pessoa tem aos seus olhos e aos olhos da sociedade, por meio da conformação a determinadas formas de conduta. É uma reclamação pessoal de orgulho e também a aceitação do direito ao orgulho. Sentimentos, condutas, reputação e concessão de honra estariam implicados. Nas sociedades O complexas, tende a haver uma fissura entre os pólos do sentimento e modo de conduta e da honra como benefício C I outorgado (por um monarca, por exemplo). Esses diferentes critérios entram em jogo em distintos momentos F Á R históricos e de acordo com o tipo de hierarquia que se estabelece em cada sociedade. G O Outro ponto importante é a relação entre honra e pessoa física: a importância da cabeça como locus LI B preferencial de reverência ou afronta à honra, a referência ao sangue etc. Há também a questão da intenção. O que I B importa são os sentimentos evocados mais do que o resultado da ação. Nesse caso, a desculpa é uma negação da O I intenção de ofender, assim como o desafio é sinal da intenção de ofender. Desse modo, se a honra se estabelece ou A S N se impugna através do comportamento físico, isso só é possível porque estão implícitas determinadas intenções. E Por um lado, as ações falam mais claramente do que as palavras. Por outro, a forma como se diz é mais importante 105 Fabíola Rohden do que as próprias coisas. O conhecimento público também é fundamental. O dano causado à reputação está relacionado com o alcance da opinião pública dentro da qual se difundiu. Esta é o tribunal da reputação. Qualquer ação dependerá de sua interpretação para ser considerada uma afronta ou desafio. Quanto à guarda da honra, todo homem é responsável e árbitro das situações. Apenas os considerados incapazes (mulheres, doentes, idosos, padres) têm direito a defensores. Aos outros, recusar-se a enfrentar pessoalmente uma ofensa pode também produzir desonra. A violência é, muitas vezes, o recurso característico. Sua execução é obrigatória quando todos os outros meios de resolver as disputas foram ineficientes. Neste caso, recorrer à justiça oficial, ao Estado, significa admitir a sua incompetência ou vulnerabilidade em termos de honra. Um último ponto diz respeito à igualdade entre os atores envolvidos: um homem é responsável pela sua honra apenas diante daqueles com quem compete conceitualmente. Só se sente ofendido e precisa responder aos insultos de quem considera um igual em honra. Responder às injúrias dos outros pode colocá-lo em uma armadilha de desonra (Pitt-Rivers 1979). b) Honra com relação às solidariedades sociais Os grupos sociais possuem uma honra coletiva relacionada à honra de cada membro. A conduta desonrosa de alguém se reflete na honra de todos, ao mesmo tempo em que cada indivíduo participa da honra de todo o grupo. Desde a família até a nação, nos mais diversos grupos, uma pessoa é investida da honra de todo o grupo. Em se tratando de honra coletiva, as intenções ficam subsumidas aos fatos: o indivíduo já nasce filho ou súdito de alguém. Aqui os rituais têm o papel de estabelecer o consenso da sociedade com relação à ordem de prioridade, entre aquele a quem se deve respeito e os que devem respeitar. Nesse sentido, as transações de honra servem tanto para criar uma ligação entre os ideais sociais e a sua reprodução no comportamento individual (a honra estabelecida socialmente dita os critérios sobre o que o indivíduo deve sentir), quanto para relacionar ordem ideal e ordem real, validando as realidades do poder e fazendo com que a ordem hierárquica consagrada corresponda a elas (a honra sentida pelo indivíduo deve ser igual às honras ditadas ou oferecidas pela sociedade). É graças a essa dualidade de significados da honra que um “dever ser” é derivado de um “é”, garantindo a legitimação do poder estabelecido e auxiliando na interpretação social (Pitt-Rivers 1979). O C I F Na sua análise sobre a Andaluzia, Pitt-Rivers (1971) dá cor a esses princípios e mostra como são atualizados Á R G em uma realidade concreta, além de traçar os marcos do que seria a especificidade da honra mediterrânea. O eixo O I fundamental é o tratamento da honra sempre associada com o seu par, a vergonha, e a possível intercambialidade L B I entre os dois termos. Vergonha pode ser entendida, de modo semelhante à honra, como a preocupação com a B reputação ou o que faz uma pessoa sensível à pressão exercida pela opinião pública. A falta de vergonha é que O I A se equipararia à desonra. Já em um outro plano honra e vergonha seriam distintas e associadas diferentemente S N aos dois sexos. Uma conduta oposta seria exigida do comportamento de homens e mulheres e haveria uma E associação mais forte do homem com a honra e da mulher com a vergonha. Para o homem, o mais importante seria 106 Para que Serve o Conceito de Honra, ainda hoje? a preocupação com a precedência e a propensão para as relações exteriores, como a ofensa e o desafio. À mulher caberia a pureza da conduta sexual, associada à vergonha. Pela complementaridade entre os dois pólos, o centro da honra da família, do grupo, estaria no comportamento das mulheres, mas caberia aos homens a responsabilidade por defendê-la em ofensas públicas. A vergonha, herda-se da mãe. A honra ou direito à precedência, herda-se do pai. A primeira tenta-se manter, a segunda obriga à ação no mundo social.5 Além disso, outra consideração fundamental do autor para a Andaluzia se refere à distinção de igualdade e hierarquia encarnada no sistema de patronagem. Neste caso, a honra é percebida como a tentativa de estabelecer supremacia sobre o outro através do desafio ou outras formas semelhantes. A obediência a alguém não é entendida como humilhante mas pensada em termos de uma lógica da reciprocidade. Serviço e proteção fazem parte dessa lógica: o protetor ou patrono aumenta o seu prestígio ao aumentar o número de seus clientes e estes participam da glória do protetor. Um sistema que é reforçado pelo parentesco ritual através dos laços de compadrio. Além disso, entra em cena a possibilidade de disputas entre os demais servidores, que lutam para atrair os favores dos poderosos, atestando seu potencial de mais ou menos honra (Pitt-Rivers 1979). O trabalho de J. G. Peristiany (1971) compartilha os principais argumentos colocados por Pitt-Rivers (1971 e 1979). Salienta, por exemplo, que honra e vergonha são dois aspectos de uma mesma regra de valorização social que define os ideais aceitos em cada grupo. Reforça a importância do pudor sexual feminino, embora também enfoque a valorização da maternidade na definição da honra do grupo. Ao estudar uma aldeia cipriota de montanha, o autor demonstra o funcionamento desse sistema de valores seja em relação aos laços estabelecidos com personagens de fora da comunidade, como os “ocidentais” ou indivíduos provenientes da cidade (nos quais nunca se poderia confiar plenamente), seja com referência aos códigos estabelecidos dentro dos grupos menores. Neste último caso mais especificamente, a honra segue critérios de variação de acordo com idade, sexo e posição social e é o que mantém os laços de solidariedade do grupo em ativação. Assim, aqueles que não a possuem ou não a buscam são considerados uma ameaça para a comunidade, pois quando perdem o respeito por si próprios e ignoram o valor social que os outros lhes atribuem, colocam-se fora da ordem social estabelecida. A pressão do grupo é para que todos se convertam em participantes nas disputas comuns pela honra, consolidando a unidade em questão. Até mesmo os estranhos passam por um processo de tentativa de pessoalização para que possam fazer parte do jogo, já que a honra só entra em operação entre “pessoas” e não entre indivíduos anônimos. O C I J. K. Campbell (1971) também trabalha com pastores gregos dentro de uma mesma linha de análise. F Á Descreve como o sistema honra/vergonha está embutido na definição de três tipos de laços sociais daquele grupo: GR O a) os parentes pelo sangue – a quem se deve amor e confiança; b) os parentes por afinidade – com os quais se I L B estabelecem as relações de matrimônio, as trocas de honra, mas não a confiança e; c) os estranhos – que ocupam I B o lugar de quase inimigos e a quem é legítimo tentar explorar. Entre a família e a comunidade interpõem-se relações O I de hostilidade e desconfiança, a possibilidade de macular a reputação, a necessidade de segredo, a possibilidade A S do roubo e de incidentes de violência física. As famílias implicadas competem por distância social, o que depende N E de sua aceitação e aderência a um sistema de valores comum e da aprovação de seus méritos pelos outros, que 107 Fabíola Rohden em geral é dificultada. A base do reconhecimento está na admissão de que todos têm honra, com a qual se nasce (com exceção das famílias de status social muito baixo), mas que se tem a possibilidade de perder. É um estado de integridade que é preciso manter e que relaciona atributos físicos e morais. Comporta tanto o agregado da família quanto a avaliação do comportamento individual, distinguido pelo sexo. Ao homem cabe a força de corpo e espírito, a coragem e a eficácia das ações.6 À mulher, a vergonha, o pudor, a repugnância instintiva pela atividade sexual, a necessidade de disfarçar os atributos físicos, a virgindade, de fato nas solteiras e em pensamento nas casadas. Masculinidade e pudor são complementares e juntos formam a possibilidade da honra do grupo. Além desses termos gerais, Campbell se preocupa em identificar o que qualifica como um paradoxo: a honra como uma qualidade egoística e particularística, que enfatiza os interesses individuais e imediatos de cada grupo ou indivíduo, e sua convivência com uma moralidade cristã, calcada na fraternidade e na solidariedade. Recorrendo à figura do diabo, explica que essas duas orientações convivem na medida em que se desloca para aquele toda a fonte de hostilidades e tensões e se privilegia a noção de família sagrada, que justifica todas as disputas para a manutenção de sua integridade e de seus interesses. De certa forma, essa preocupação com a dimensão do sagrado também é enfocada por P. Bourdieu (1971) no seu estudo sobre honra na sociedade cabília. Ele trabalha com a série de oposições que caracterizam diversos planos de funcionamento dessa sociedade, com destaque para a distinção entre nif, que significaria o ponto de honra, o amor próprio, o respeito, a vontade de superar o outro, e hurma, que seria a honra em sua totalidade, o conjunto do que é interdito, do que é sagrado para o grupo, caracterizando também a sua vulnerabilidade. Enquanto o desafio coloca em xeque o ponto de honra, o nif, o ultraje atinge as regiões interditas e é considerado sacrilégio. Se o julgamento social (novamente o reconhecimento e interpretação públicos são fundamentais) define que a ofensa foi sobre a hurma, o indivíduo deve sentir acionado o seu nif, deve ter a obrigação da vingança, sob pena de perder sua honra e só lhe restar o exílio. O nif é o responsável pela guarda da hurma, estando ambos intimamente conectados: “Assim, a integridade da hurma é função da integridade do nif, estando aquele que não tem nif particularmente exposto a ver a sua hurma atingida pela ofensa e a perdê-la completamente por não ter tido coragem para defendê-la. A honra define-se assim pelo par indissociável formado pelo nif e pela hurma” (1971:176). A concepção do sagrado objetiva-se em oposições espaciais, isolando certos domínios para sacralizá- O C los especialmente a partir do par complementar dentro/fora. O pólo “dentro” faz remissão ao espaço feminino, ao I F domínio dos sentidos e sentimentos, enquanto que o “fora” indica o espaço masculino, a exterioridade das relações Á R G de diálogo e troca estabelecidas entre os homens. Além disso, a distinção entre os sexos comporta também a O I associação das mulheres com poderes mágicos e com uma sexualidade culpada e vergonhosa, enquanto os L B I homens estariam do lado da religião e da virilidade reforçada em termos de força e prestígio. B O sistema de oposições, do qual citei apenas algumas mais ilustrativas, constitui uma hierarquia de valores O I A que ordena as regras de conduta daquela cultura. Os princípios agrupados em torno da honra compõem um S N código comum que permite julgar ações próprias e alheias. Em termos gerais, essas proposições de Bourdieu E se coadunam com as dos outros autores vistos. Contudo, a riqueza de possibilidades de focar cada situação, os 108 Para que Serve o Conceito de Honra, ainda hoje? diversos e múltiplos ângulos apresentados quando se leva em conta a ação implicada, abrem espaço para uma certa relativização da preeminência do social sobre o indivíduo. A abertura à escolha e a estratégias individuais na manipulação das regras propostas pela sociedade traz uma nova dimensão à consideração da honra como elemento de mediação entre os padrões sociais idealizados e a atualização no comportamento dos indivíduos (ver Bourdieu 1971 e 1972). O texto de A. Abou-Zeid (1971), de um modo geral, respeita os argumentos estabelecidos pelos outros autores na definição da honra e sua concretização na sociedade. Na sua análise sobre os beduínos do Egito, afirma que honra se refere à adesão aos padrões tradicionais de comportamento, tem como resultado a institucionalização de certas distâncias e superioridades entre os indivíduos, revelando-se um instrumento de controle social que pune, inclusive, as manifestações excessivas de posse de honra que podem colocar laços sociais em perigo. É recorrente também a valorização da castidade e prudência femininas no cálculo da honra do grupo. Já o artigo de J. C. Baroja (1971) é o que se distancia um pouco mais dos outros, não tanto por divergências teóricas, mas pela especificidade de tratar do fenômeno nas suas manifestações históricas na sociedade ocidental. O autor mostra como a honra neste caso descende de três matrizes culturais: a) o mundo clássico; b) o mundo germânico ou bárbaro; e c) o cristianismo. Explica como na Idade Média prevalece a convicção de que os homens formam uma “comunidade de fiéis”, resultado das propagações cristãs, por oposição, por exemplo, a uma “comunidade de cidadãos” que gerenciaria a época clássica. Um dos seus exemplos mais interessantes de como a concepção de honra vai variando historicamente e sendo alvo de disputas segundo a ascensão de determinadas classes se refere às brigas entre nobreza e judeus, uns detentores tradicionais das glórias heróicas, outros dententores do poder econômico. Nesse caso, entra em cena também a simbolização freqüente da honra no sangue, expressa na noção de sangue impuro ou maculado dos não-cristãos ou cristãos-novos. Na edição portuguesa de Honra e Vergonha acrescentou-se mais uma análise a título de prefácio. Trata-se do artigo de J. Cutileiro (1971), que tenta aplicar as premissas da noção de honra mediterrânea a uma comunidade do Além-Tejo. Apesar de reforçar os principais pressupostos já descritos, chama a atenção para a importância da estratificação social e da distribuição de poder político e econômico na diminuição da valorização da família e na rigidez das atitudes e posições, o que traria certas nuanças ao ideal tradicional de honra. O IV C I F Á R Passo agora a uma resenha dos artigos publicados na coletânea de 1992, agrupando-os em torno de alguns eixos. G O Um primeiro seria o dos textos que privilegiam análises históricas (Lafages, Lauderie, Baroja e Campbell). Um LI B segundo se refere ao contexto da sociedade ocidental atual (Bourdieu). Um terceiro diz respeito às atualizações I B etnográficas do conceito de honra em comunidades do Mediterrâneo (Peristiany, Di Bella, Jamous e Ott). E, por O I último, a discussão mais teórica de Pitt-Rivers sobre o conceito de graça e suas aproximações com a honra. A S N C. Lafages (1992), ao analisar os rituais funerários e de coroação na França da Idade Média, mostra como se E dá a conjunção entre honra e graça na pessoa do rei. Através dele os poderes temporal e espiritual são combinados 109 Fabíola Rohden e transmitidos, além de servirem de sustentação um para o outro. O rei, enquanto símbolo paradigmático, é capaz de comportar conjuntamente os dois planos de legitimação de sua posição superior. Somente ele tem o dom de efetivar a transmissão de um tipo de parentesco mortal e individual e de um outro eterno e institucional. Já E. L. Lauderie (1992) nota algumas mudanças na concepção do poder real se comparado com o tratado acima. Sugere que a sacralidade do rei teria mudado na época de Luís XIV na medida em que o nascimento passa a ter privilégio sobre a coroação, o que levaria a uma maximização do poder sagrado do rei. Ele é sagrado em si mesmo, por sua condição pessoal e não mais pela graça de Deus. Honra e sagrado continuam juntos, mas a origem de sua ligação teria se deslocado.7 O artigo de C. Baroja (1992) revela continuidades com o publicado em Honra e Vergonha (1971). Retoma o tema das mudanças dadas historicamente na definição do conceito de honra, que vai permanentemente ganhando novas conotações a partir da classe social que tem o predomínio de sua definição e das ameaças que recebe. Focando na Espanha dos séculos XVI e XVII, o autor mostra como se dão as disputas pela precedência, passando pela glória das armas, tradição ou dinheiro entre três importantes grupos: soldados, aristocracia e mercadores.8 Uma análise mais audaciosa é a feita por J. K. Campbell (1992), que traça relações entre os heróis gregos da época clássica e pastores montanheses da Grécia continental durante o século XVIII. Aqui o que entra em ação são valorações em distintas épocas de um modelo de herói que encena as expectativas e as tensões vividas pela sociedade. Esta temática já tinha aparecido de uma forma mais sutil no seu artigo de 1971, onde discorria sobre os padrões arquetípicos femininos, representados na figura abnegada e recatada de Maria, e masculinos, encarnados na castidade e sacrifício de Cristo e no espírito guerreiro e corajoso de São Jorge e São Demétrio.9 O artigo de P. Bourdieu (1992) não trata diretamente da questão da honra mas do que poderíamos chamar de uma atualização do processo de conquista de honra ou mesmo graça em alguns rituais contemporâneos.10 Trata de alguns ritos de passagem na educação formal dos jovens como exemplos do que chama “atos de instituição” ou “de consagração”. Estes seriam eventos que têm a capacidade de colocar em operação elementos de natureza mágica, detentores do poder de diferenciação e, por isso, distribuidores de prestígio e distinção social.11 Os ensaios que descrevem a honra em diferentes contextos da área mediterrânea comportam uma unidade maior e mais definida. O artigo de Peristiany (1992) demonstra mais uma aplicação dos códigos sociais em situações específicas através de um personagem particular, o sophron. Este seria um mediador ou um árbitro da O C honra. A comunidade atribuiria a ele o poder de avaliar e decidir sobre a natureza de conflitos diversos. Ele tanto I ÁF teria poderes para discernir sobre os atributos da honra individual e adequada à posição do sujeito em termos de R G sexo e idade, quanto para julgar as disputas que envolvem a comunidade como um todo, colocando em questão a O I L reputação coletiva. Na verdade, sua função fundamental é fazer com que se apliquem aqueles preceitos mais gerais B I ou ideais que fundamentam a consciência coletiva da comunidade em situações particulares. Sua preocupação B O deve ser o bem comum, sua perícia se revela na medida em que alcança o fim de ajustar os interesses em conflito I A e a harmonia do grupo é restabelecida. S N E M. P. Di Bella (1992) mostra como na Sicília as definições do conceito de honra mediterrânea são vivenciadas na prática, com destaque para alguns aspectos particulares. Traços gerais, como a castidade para as mulheres 110
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