UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA Jorge Artur dos Santos Os intelectuais e as críticas às práticas esportivas no Brasil (1890 – 1947) Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Área: História Social Orientador: Arnaldo Daraya Contier São Paulo 2000 Resumo Palavras-chaves: esporte – educação física – educação – anarquismo – comunismo – nacionalismo – autoritarismo – racismo – intelectuais A difusão do esporte no Brasil encontrou resistências de vários matizes. Este trabalho faz, mediante pesquisa restrita ao período compreendido entre os primórdios da República e o final do Estado Novo, o mapeamento das argumentações de resistência a partir dos seus matizes políticos – anarquismo, comunismo, vários nacionalismos –, médicos – da higiene à eugenia – e pedagógicos – da educação católica à Escola Nova – , levando em conta a conjuntura histórica em que se desenvolviam e a maneira como polemizavam com o discurso aficionado. Demonstra também que muitos argumentos utilizados pelos aficionados foram originalmente criados para combatê-los, que algumas mudanças fundamentais ocorridas no discurso aficionado deveram-se em grande parte a esse debate, à necessidade de rebater a crítica, e que certos argumentos críticos se esgotaram no final do período. Abstract Key words: sport – physical education – education – anarchism – comunism – nationalism – authoritarianism – racial descrimination – intellectuals Several bulwarks of resistance were elevated against the dissemination of sports in Brazil. By means of research restricted to the historical period comprehended between the dawn of the Republic and the fall of the Estado Novo, this dissertation proposes to charter the opposing argumentation according to the existing political colours – anarchism, comunism, different sorts of nationalism –, medical ranging – from hygiene to eugenics – , and pedagogical nuances – from catholic education to the New School. It consider the historical scenario in wich the opposing argumentation was developed and how the polemics between criticals and adepts sides were conducted. It also demonstrates that many of arguments to which those upholders resorted were originally created to refute and that some of fundamental changes developed in the upholders discourse resulted to a large extend from this debate, in their need to fight criticism, and that some opposing arguments were debilitated in the end of studied period. Banca Examinadora ___________________________ ___________________________ ___________________________ ___________________________ ___________________________ Agradecimentos O apoio do Professor Arnaldo Daraya Contier foi fundamental, por acreditar neste projeto quando ainda era uma carta de intenção deveras obscura e impedir, depois de minhas sucessivas idas e vindas, que o resultado fosse inferior ao que aí está. Os acertos foram possíveis, portanto, graças à firmeza da sua orientação, sem esquecer as profícuas observações da banca do Exame de Qualificação, professores Maria Helena Rolim Capelato e Carlos Guilherme Mota. Nunca é demais afirmar, contudo, que sou o único responsável pelas páginas que se seguem, particularmente pelos erros. Sou grato também aos funcionários das seguintes instituições: Arquivo Edgard Leuenroth - UNICAMP, Centro de Documentação e Memória - UNESP, Centro de Documentação e Informação Científica “Prof. Casemiro dos Reis Filho” - PUCSP, Biblioteca Mário de Andrade, Centro Cultural São Paulo, Biblioteca Nacional e bibliotecas da USP – especialmente as da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Instituto de Estudos Brasileiros, Faculdade de Economia e Administração, Instituto de Biologia, Escola Politécnica, Faculdade de Direito, Faculdade de Saúde Pública, Faculdade de Medicina, Museu Paulista e Faculdade de Educação Física; e aos funcionários da Secretaria de Pós-graduação da FFLCH-USP e do Departamento de História, sobretudo pela paciência. Os funcionários do Arquivo Público de Uberaba e da Biblioteca do Senado Federal foram muito gentis ao enviarem material pelo correio. Agradeço ainda a Roberto Vaz, pelas constantes conversas e sugestões e aos manos Lisete, Flor, Zezé e Luís, pelo incentivo e por toda a ajuda. À Marina, mãe. À Maria, por tudo. (...) urge cuidarmos seriamente de introduzir no nosso sistema geral de educação, a Educação Física, e nas nossas escolas, nos nossos colégios, nas nossas academias, nos nossos costumes enfim, os exercícios do corpo, todos esses exercícios que os ingleses conhecem sob o nome coletivo de “sport” e os nossos maiores pelo de desportos. José Veríssimo, A Educação Nacional, 1890. Lavoratori, allontanatevi come una pestilenza dal giuoco del foot-ball! Iron, Il giuoco del calcio e la mentalitá del mulo, 1919. O esporte (...) não usa, apenas, das nossas faculdades físicas, adaptando-as ao ideal ambicionado da nossa “educação orgânica e funcional” perfeita. Abusa. Excede, quase sempre, senão sempre, desses limites racionais, para danificar todo o futuro do educando, não só nas qualidades intelectuais que lesa, como nos predicados morais que desvirtua e até nas próprias energias físicas que desconcerta com a sua compreensão tacanha do exercício. Carlos Sussekind de Mendonça, O sport está deseducando a mocidade brasileira, 1921. O Presidente prestou-me atenção e acolheu minha filosofia com essa referência: - “O Chefe de Polícia já me fez observações parecidas. A ordem pública dorme nos dias de grandes jogos de futebol; os bordéis entram em maré-vazante, os botequins ficam às moscas e o próprio tráfego concentra-se numa só direção. Sei que o entusiasmo no estádio leva os próprios comunistas a se confraternizarem com os integralistas, entre abraços efusivos, se há gol nacional”. João Lyra Filho, Meu mundo é uma noz, 1957. O estilo mulato, afro-brasileiro, de futebol é uma forma de dança dionisíaca. Gilberto Freyre, 1938. Sumário Introdução .................................................................................................. 7 A. Tema ............................................................................................................. 7 B. Balanço historiográfico ............................................................................... 14 C. Periodização ................................................................................................ 20 D. Fontes .......................................................................................................... 21 E. Esporte no Brasil .......................................................................................... 22 1. O esporte como “regenerador da raça” .................................................. 31 1.1. Os primórdios da República ...................................................................... 35 1.2. O efeito da Grande Guerra ....................................................................... 46 2. Matizes da recusa às práticas esportivas nos anos 10 e 20 .................... 57 2.1. A posição anarquista ................................................................................. 57 2.2. Lima Barreto e Maria Lacerda de Moura ................................................ 69 2.3. A recusa nacionalista do esporte ............................................................... 83 2.4. Restrições às práticas esportivas ..................................................... 113 2.4.1. Nacionalistas .............................................................................. 113 2.4.2. Comunistas .................................................................................. 139 3. O debate nos anos 30 e 40 ..................................................................... 163 3.1. O projeto autoritário de Tomás Mazzoni .................................................. 164 3.2. O debate pedagógico ................................................................................. 182 3.3. As restrições postas pela Medicina .......................................................... 207 3.4. Os dilemas do catolicismo.......................................................................... 211 3.5. A crítica eclética de Orlando Ferreira ...................................................... 224 4. A reorientação da defesa do esporte ...................................................... 232 Considerações finais .................................................................................. 251 Fontes e Bibliografia .................................................................................. 258 Introdução A. Tema Os termos esporte (ou desporto), ginástica e educação física não eram sinônimos no período que será estudado nesta dissertação e tampouco o são hoje. Entretanto, há nuanças significativas nos textos, até que os autores chegassem a um consenso mínimo em torno da utilização desses termos. Não se pretende aqui corrigir os textos, mas é necessário utilizar uma significação atual como baliza para discernir entre as várias ocorrências que verificamos, especialmente para esporte, o foco desse trabalho. Para essa atividade será utilizada a definição de Jean-Marie Brohm, segundo a qual O esporte é um sistema institucionalizado de práticas competitivas, com predomínio do aspecto físico; delimitadas, reguladas, codificadas e regulamentadas convencionalmente, cujo objetivo confesso é, sobre a base de uma comparação de provas, de marcas, de demonstrações, de performances físicas, designar o melhor concorrente (o campeão) ou registrar a melhor atuação (recorde). O esporte é, pois, um sistema de competições físicas generalizadas, universais, abertas em princípio a todos, que se estende no espaço (todas as nações, todos os grupos sociais, todos os indivíduos podem participar) ou no tempo (comparação dos recordes entre diversas gerações sucessivas), e cujo objetivo é o de medir e comparar as atuações do corpo humano concebido como potência sempre perfectível. O esporte é, pois, em definitivo, o sistema cultural que registra o progresso corporal humano objetivo, é o positivismo institucionalizado do corpo, o museu das atuações, o arquivo dos êxitos através da história. É a instituição que a humanidade descobriu para tomar nota de sua progressão física contínua; o conservatório do recorde onde ficam registradas suas façanhas. A história do esporte está concebida explicitamente como uma mitologia da ininterrupta ascensão até a superação: “citius, altius, fortius”. É esse espírito novo, industrial, que reflete todas as categorias centrais do modo de produção capitalista e as subsome sob o princípio do rendimento que integra o corpo humano numa fantástica corrida até o êxito.1 1 Jean-Marie Brohm, Sociología politica del deporte, México, Fondo de Cultura Económica, 1982, p. 42-43. Acrescento de minha parte que não está excluída da definição os aspectos lúdicos do esporte; mas atividades físicas, cuja principal característica é o lúdico, com toda a carga de espontaneidade que carregam, serão mais adequadamente definidas como jogos ou brincadeiras. No esporte, a regra, a competição e o rendimento se impõem ao lúdico uma vez que no esporte a vitória e/ou o recorde são os objetivos máximos ao qual se subordina toda a dinâmica da atividade física. Em outras palavras, o lúdico só é possível na medida em que colabora para o êxito, ou pelo menos não é um obstáculo para ele; o lúdico só é admissível se for instrumentalizado pela eficiência. 2 O esporte distingue-se, portanto da ginástica e da educação física. A primeira constitui-se num conjunto de exercícios corporais sistematizados, realizados no solo ou com o auxílio de aparelhos, cuja finalidade é fortificar o corpo e dar-lhe agilidade. Foi se construindo no curso do século XIX, quando vários métodos ginásticos surgiram – sueco, alemão e francês. Hoje em dia o termo caiu em desuso, sendo substituído por exercício físico, pura e simplesmente.3 A educação física é de definição mais difícil. Os próprios teóricos da área reconhecem a dificuldade.4 Normalmente aparece grafada com letras maiúsculas a indicar sua condição de ciência; ciência da motricidade humana, nas palavras do 2 No futebol, por exemplo, o drible só é recomendado pelos técnicos quando é dado em direção à meta adversária e colabora para que seja marcado o gol. Em muitas outras modalidades há limites de toques na bola (voleibol, tênis) ou de tempo para se atingir o objetivo (basquetebol). E que dizer das corridas? Mesmo se diferenciarmos o esporte profissional do esporte de recreação, e atribuirmos ao segundo características predominantemente lúdicas, seguindo Brohm deveremos ter em mente que o resultado do esporte recreativo, ainda que o mais das vezes inconsciente, é criar uma prontidão (e servir também de seleção) para o esporte profissional, introjetando nos praticantes o gosto pelas competições e colaborando para a expansão do mercado esportivo, tanto pelo consumo de materiais esportivos quanto dos espetáculos. 3 Não se deve confundi-la com a ginástica esportiva (dita olímpica), que é a apropriação pelo esporte de alguns movimentos ginásticos e a sua transformação em provas competitivas. O desuso do termo ginástica é apontado por Valdir J. Barbanti, Dicionário de Educação Física e do Esporte, São Paulo, Manole, 1994, verbete “Ginástica”. Para uma descrição dos métodos ginásticos veja-se Inezil Pena Marinho, Sistemas e métodos de educação física, São Paulo, Cia. Brasil Editora, 1958. 4 Observe-se que no dicionário supracitado não há o verbete “Educação Física”. O verbete que mais se aproxima é “Educação Motora”, cujo significado é “atividade didática e pedagógica que objetiva iniciar, desenvolver e aperfeiçoar a capacidade de movimento de um indivíduo, bem como formar uma série de valores acerca do mesmo”. português Manuel Sérgio.5 Assim, interessa-se por todos os movimentos do corpo humano, melhor dito, pelo corpo em movimento, que como educação, pretende controlar. Neste sentido consideraremos a educação física como o conjunto de conhecimentos empregados para educar os movimentos do corpo e as práticas através das quais essa educação se processa – tanto os exercícios corporais bem como a inculcação de hábitos higiênicos e alimentares que visam a preservação da saúde. Egressa dos meios militares, encontrou seu lugar no século XX principalmente na escola uma vez que deve ser ensinada para garantir a eficácia da prática. Os exercícios de que lança mão são variados, incluem a ginástica e, dependendo da concepção que a norteia, esportes. Obviamente o esporte não nasceu pronto. O processo da sua construção, ainda em curso, aos poucos vai desvencilhando-o de duas influências de origem, o cavalheirismo aristocrático (o fair play) e o lúdico das camadas populares, que vão se tornando cada vez mais meros adereços para efeito de propaganda. Na primeira metade deste século, no Brasil, a falta de “ordem” nas disputas esportivas era um dos motivos que levavam de anarquistas a conservadores a recusá-lo. As brigas freqüentes nas disputas motivavam uma série de invectivas de ambos os lados. É neste quadro que se deve compreender a preferência nestes setores por jogos (para crianças, já de todo espontâneos) e pela ginástica (para todas as idades, intrinsecamente ordeira e disciplinada) como atividade ideal para a educação física. O desenvolvimento do esporte fez com que se constituíssem duas modalidades de discursos referentes a ele. Sem dúvida nenhuma o discurso apologético foi o que mais se fez ouvir, elaborando um corpo de argumentos que justificavam (e justificam ainda hoje) a sua prática. Em contrapartida, desenvolveu-se também, ainda que fosse menos propalada e menos ouvida, uma crítica cuja principal característica era a recusa do esporte como uma atividade adequada para os indivíduos da sociedade moderna. A primeira modalidade, que absolutamente não é unívoca – como também não o é a sua contraparte crítica –, ao utilizar a História como justificadora, traçou uma linha reta entre as atividades físicas da Antigüidade Clássica, principalmente aquelas dos gregos cujo momento máximo eram as Olimpíadas, e as atividades 5 Manuel Sérgio, Para uma epistemologia da motricidade humana, Lisboa, Compedium, 1987.
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