Os Gigantes Imortais Lucas Zanella 1 Como matar alguém que não pode ser morto? Na fantasia, nós temos estacas, balas de prata, fogo e... até mesmo ciência. Mas eles não são fantasia. Nossa aldeia evoluiu por conta da guerra. Éramos frequentemente atacados pelos kratha, os gigantes pálidos e de cabeça lisa do norte. Após tantos anos em guerra, nos tornamos mais fortes e melhores guerreiros, as gerações mais novas não conhecem nada a não ser a arte da guerra. Pelo que sabemos, os kratha têm vivido para sempre desde o início dos tempos, mas isso porque não sabemos muito sobre eles. O único general que possuímos é Cardo, um antigo soldado que batalhou na última guerra e agora tomou o posto de general, pois o antigo nela morrera. Era magro, de pele velha, cabelo grisalho e curto, além de não poder mais andar. Sempre culpou os kratha por sua deficiência, e por conta 2 dela não luta na guerra, apenas nos treina. A última guerra aconteceu pouco mais de cinco anos atrás, mas, como se para não nos esquecermos deles, os malditos têm atacado nossos vilarejos próximos, aqueles que nos trazem alimentos para venda e consumo. Assim, ficamos mais fracos e mais fortes ao mesmo tempo. Como o próprio Cardo fala, a raiva nos alimenta e, usando-a a nosso favor, ficamos cada vez mais determinados a matar. Mas como você mata alguém que não pode ser morto? Apesar de sermos agora uma civilização próspera – pelo menos quando não estamos em guerra –, não somos inteligentes. Não possuímos cientistas ou fisicistas. – Eles estão vindo – o general disse para mim em particular, quando me chamou para discutir sobre a batalha que se aproximava a velocidade de mil cavalos. – Eu posso sentir. 3 Estava sentado em sua cadeira, do outro lado de uma mesa repleta de pergaminhos com anotações e desenhos de mapas. A tenda em que ficava no campo de treinamento era simples, embora ficasse ali a maior parte de seu tempo. A mesa era baixa, para que ele pudesse mudar tudo – se essa fosse sua vontade – sem precisar de ajuda. – Senhor... por que não tentamos negociar com eles? Qualquer ofensiva que tomemos será em vão. Eles são... – Eu sei muito bem o que eles são, Leviel – bateu na mesa com sua mão direita. As diversas penas de escrever que estavam sobre ela pularam e rolaram para as bordas. – Pois não parece saber, senhor – falei sem pensar. – O senhor parece estar determinado a mandar-nos para nossa morte. Melhor ainda, parece determinado a fazer-nos esculpir nossa própria sepultura. 4 – Leviel, não admitirei tamanha desobediência em minha própria tenda. Se não concorda com os planos de guerra, então saia da cidade, pois ela é devotada à guerra, e sempre foi. – Não, senhor, ela não é. Você é quem transformou uma pacífica aldeia numa máquina de matar. Todos nos temem, nós agora só fazemos negócios com nossos próprios vilarejos. E tudo isso porque... não admite que conversemos com os kratha. – Os kratha e nós estamos nessa disputa há anos, e se eles estivessem dispostos a negociar, já teriam falado conosco. – Mas e se todos estão, mas apenas o general deles é cabeça-dura o suficiente para continuar a guerra. – E se você estivesse errado, Leviel, e se fôssemos “conversar” e acabássemos mortos? Sem o exército para defender a cidade, todos pereceriam em poucos dias. É isso o que você quer? 5 – O que eu não quero é ver uma cidade inteira devotar suas vidas a aprender a matar pessoas – suspirei e senti um aperto no peito, estava vermelho e me sentia febril. – Como matar alguém que não pode ser morto? Não sei se percebe, general, mas aqueles que nos atacam são os mesmos que lhe atacaram, isso porque não foram mortos. Nem nunca serão. A paz é a nossa única solução. – Saia daqui antes que mande te prenderem – desviou o olhar, fitou os papéis sobre sua mesa. Empurrei a lona que servia como porta e saí de lá, do campo. A cidade era bonita, cheia de casas grandes de pedra e menores de madeira. Não tínhamos rei, éramos independentes. A única pessoa que realmente tinha um comando maior que os outros era o general, simplesmente porque cuidava da segurança da cidade, acompanhado dos soldados de cargo mais importante. Mesmo possuindo tal privilégio de comando, 6 não ditava regras. O povo, nascido e crescido da guerra, se revoltaria facilmente a uma ditadura. E isso poderia significar o fim de qualquer general. – Como você mata alguém cujo passado é, para você, misterioso? – perguntei ao vento, sem obter resposta. Estava sentado numa pedra, no topo de uma pequena montanha. Observava a cidade inteira, todos saindo de seus trabalhos e dirigindo-se a suas casas, acompanhados da luz do sol, que caía do céu. O passado dos kratha não era simplesmente misterioso, era irreal. Sobre as altas montanhas do deus Kimérico, eles andavam planejando a próxima guerra. Sua cidade era tão pálida quanto eles, e se misturava junto da cor branca da neve que a cobria. Os gigantes pálidos planejavam um plano de ataque que logo chegaria. – O que foi dessa vez? – Sianna apareceu atrás de mim como por mágica. 7 Virei a cabeça rapidamente, com o coração dando um salto e a mente pensando que podia ser um inimigo. A guerra tomara conta das mentes de todos, até mesmo da minha. Ela se sentou ao meu lado e cruzou as pernas, também esfregava os braços por conta do frio. Entreguei-a meu casaco, e o vestiu com vontade. – O general quer nos matar. – De novo? – perguntou. – É. – Quando ele vai fazer o primeiro movimento? – fez referência ao xadrez, seu jogo favorito. – Logo – não sabia de data, mas sabia que essa era a verdade. Ela agarrou um punhado do cabelo preto e liso com as mãos e o pôs para trás, ajustando-se ao casaco maior que ela. Pegou minha mão e fitou o horizonte, onde o sol projetava no céu uma fina linha vermelha clara. 8 Poucos segundos depois e tudo estava escuro. O sol era algo importante, pois ficava no céu por apenas cinco horas por dia. O meu lugar favorito para observar seu partir do céu era lá, naquela mesma pedra. Havia outra ao lado, e foi lá onde eu encontrei Sianna pela primeira vez, observando o pôr do sol tal como eu fazia. – O que faz aqui? – perguntei quando a vi sentada ao lado de minha pedra. Ela levou um susto, como eu. – Estou vendo o pôr do sol – ela comentou, virando o corpo para falar de frente comigo. – Por que nunca te vi aqui antes? – Nós não podemos sair de casa até que tenhamos idade o suficiente para ajudar na guerra, não sabia disso? Hoje é o meu aniversário! – Parabéns. Eu acho... – Como assim? – Você saiu de casa, mas apenas porque agora pode ajudar com a guerra. Isso não é bom. Guerra 9 nunca é bom. Nem nunca será! – Eu pensei que você fosse um soldado, não? Já o vi, pela janela, mas não o conhecia. – Não é minha opção, fui obrigado por meu pai. A guerra não é lugar para mim. – Isso porque não é bom nela? – esboçou um sorriso. – Sou o melhor. Isso que é o pior. Sou o melhor em matar... – fitei o chão, chutei uma pedra. – Sianna! – estendeu sua mão, não a vi se levantar, mas já estava em minha frente. – Leviel – apertei sua mão e olhei em seus olhos, ela sorria. E era lá onde eu a encontrava quase todos os dias desde então. As ruas estavam praticamente vazias. O céu era lotado de estrelas e Sianna caminhava ao meu lado, com as mãos presas atrás de si, andando e chutando algumas pedras de leve. 10