ebook img

OS DILEMAS DO MARXISMO LATINO-AMERICANO NAS OBRAS DE CAIO PRADO JR. E JOSÉ PDF

16 Pages·2012·0.25 MB·Portuguese
by  
Save to my drive
Quick download
Download
Most books are stored in the elastic cloud where traffic is expensive. For this reason, we have a limit on daily download.

Preview OS DILEMAS DO MARXISMO LATINO-AMERICANO NAS OBRAS DE CAIO PRADO JR. E JOSÉ

OS DILEMAS DO MARXISMO LATINO-AMERICANO NAS OBRAS DE CAIO PRADO JR. E JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI André Kaysel Introdução Quais as razões dessa dificuldade? Para os grams cianos argentinos José Aricó e Juan Carlos Como as demais ideologias e teorias sociais Portantiero, ela se deve à singularidade dos pro- europeias, o marxismo, ao ser trazido para a Amé- cessos de formação do Estado e da sociedade na rica Latina – a partir de fins do século XIX –, de- América Latina. Enquanto Marx pressupunha a frontou-se com o dilema da distância entre a nova determinação do Estado pela base social, na Amé- realidade histórica a ser interpretada e seus pressu- rica Latina do século XIX a constituição do Esta- postos fundamentais, pensados à luz do capitalismo do teria precedido e condicionado a sociedade em avançado da Europa ocidental. Talvez o já bastante formação (Aricó, 1982). Contudo, segundo os au- discutido problema do “lugar das ideias”, para o tores argentinos, isso não faria da América Latina caso do liberalismo, seja ainda mais radical no caso um caso “oriental”, no sentido proposto por Gra- do materialismo histórico, dada a reivindicação ori- msci, para o qual, no Oriente o Estado era tudo e ginária de um vínculo entre teoria e prática. Em a sociedade civil, débil e gelatinosa. Recorrendo a outras palavras, se, para Marx, o mundo deveria ser essa tipologia gramsciana de “Ocidente/Oriente”, conhecido para ser transformado, o sucesso da ação Portantiero (1978) afirma que a América Latina política revolucionária dependeria da capacidade de seria um “outro Ocidente” ou um “Ocidente pe- interpretar adequadamente a realidade social que se riférico”. De um modo similar, o brasileiro Carlos quer transformar. Nelson Coutinho (1985) sugere que as socieda- des latino-americanas seriam casos intermediários Artigo recebido em 18/02/2011 Aprovado em 01/12/2011 entre os dois polos. RBCS Vol. 27 n° 79 junho/2012 12027_RBCS79_AF3b.indd 49 7/2/12 4:35 PM 50 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 27 N° 79 Esse pressuposto teórico da precedência da marxista do Brasil e o mais importante marxista da sociedade civil sobre o Estado teria conduzido os América Latina. partidos de orientação marxista, socialistas e comu- Creio que o interesse em comparar o pensa- nistas, a uma visão societária da política que difi- mento dos dois autores não resida em sua influ- cultou a apreensão da importância do Estado na ência no debate nacional ou continental, nem articulação das sociedades latino-americanas, fraca- mesmo em sua heterodoxia, mas sim porque suas mente diferenciadas e bastante hierarquizadas. Daí obras apresentam analogias importantes que possi- que as organizações de esquerda inspiradas no mar- bilitam e tornam fecunda a comparação.1 Em pri- xismo tiveram grandes dificuldades de se implantar meiro lugar, ambos têm como cerne das suas refle- solidamente nas massas trabalhadoras, as quais se xões – tanto como chave de interpretação, quanto identificaram muito mais com outro tipo de ator como programa político – a questão nacional. Em político: os movimentos populistas. segundo lugar, ambos abordam a questão nacio- Os diversos populismos que marcaram a his- nal de modo análogo: ou seja, como a formação tória latino-americana ao longo do século XX sou- inconclusa da nação, devido à persistência de re- beram, muito mais do que o socialismo de inspi- lações econômicas e sociais legadas pela colônia. ração marxista, compreender o tipo de relação que Em terceiro lugar, ambos encaravam o materialis- as massas populares estabeleciam com o Estado por mo histórico, não como um sistema de categorias meio da figura do caudilho personalista. Mais do a ser aplicado ao real, mas como um método capaz que isso, conseguiram, nas palavras de Portantiero, de apreendê-lo de modo original. Por fim, ambos “fundir demandas de classe, demandas de nação e pertenceram ao movimento comunista e ocuparam demandas de cidadania num único movimento que nele uma posição heterodoxa ou marginal, o que recolhia a visão paternalista e caudilhista da con- fez com que suas vozes permanecessem relativa- cepção tradicional da política” (1985, p. 58). mente isoladas em seu tempo. Essa última passagem é interessante, pois Em que pesem tais aproximações, é importan- aponta como os movimentos populistas, ao seu te lembrar que se trata de obras muito diferentes. modo, foram mais hábeis do que as organiza- Como então compará-las? O procedimento aqui ções marxistas ao formular a questão nacional adotado será o de cotejar o pensamento de Pra- em termos que fizessem sentido para as realida- do Jr. e de Mariátegui em torno de alguns temas des sociais latino-americanas. Desse modo, teria ou questões comuns: a passagem colônia/nação, a faltado, ao marxismo clássico, uma chave inter- questão agrária, a relação entre o imperialismo e a pretativa para compreender os termos específicos burguesia nacional, e a teoria da revolução. Ao lon- da questão nacional no subcontinente. Se na Eu- go desta análise, procurarei entender as diferenças ropa o problema nacional se expressou por meio ou as discrepâncias entre as ideias dos autores com da reivindicação de autonomia ou independên- base nos diferentes contextos históricos e locais nos cia de grupos étnico-linguísticos particulares, na quais foram concebidas. Não me refiro apenas aos América Latina, este estaria no caráter inconcluso contextos nacionais – o Peru dos anos de 1920 e o do processo de constituição das nações, isto é, na Brasil entre os anos de 1930 e 1960 –, mas também não incorporação de grandes parcelas da popula- aos diferentes momentos do movimento comunista ção à vida econômica, social e política dos Esta- nos quais os autores militaram. dos da região. Desse modo, a metodologia aqui empregada O objetivo deste artigo é comparar a relação parte do pressuposto de que o contexto históri- entre o marxismo e a questão nacional em duas co deve ser tratado como elemento interno à obra obras que procuraram adequar o marxismo à rea- em estudo (Cândido, 1965). No campo específi- lidade latino-americana: as do historiador brasilei- co da história do pensamento político, a aborda- ro Caio Prado Jr. (1907-1990) e as do jornalista gem contextualista mais conhecida é aquela que e militante peruano José Carlos Mariátegui (1894- privilegia a reconstrução dos contextos por meio 1930), respectivamente o mais influente intérprete da linguagem política disponível e da recupera- 12027_RBCS79_AF3b.indd 50 7/2/12 4:35 PM OS DILEMAS DO MARXISMO LATINO-AMERICANO... 51 ção das intenções originais dos autores (Skinner, Por outro lado, é inegável que o uso de ca- 1974; Tully, 1988). racterizações como mercantil ou feudal se baseiam Embora reconheça a importância da exigên- também em condições concretas dos dois casos. cia de se partir de uma adequada contextualização Em outras palavras, se a escravidão e o sistema de histórica, creio que a excessiva ênfase dos adeptos plantation estão muito distantes do feudalismo, a do “contextualismo linguístico” na intencionali- encomienda ou a versão colonial da mita – nas quais dade do autor limita o escopo de questões para o o trabalho é compulsório mas o camponês não é estudo do pensamento político. Afinal, a exigên- propriedade do senhor – estão mais próximas. É cia de fidelidade às intenções originais pressupõe interessante notar que, ao justificar a rejeição ou a uma certa transparência, bastante questionável, adoção do conceito de feudalismo, ambos procu- do social, além de colocar de lado o problema de ram se reportar, seguindo o método de Marx, às como e por que autores do passado são recupera- relações de produção (Prado Jr., 2002, p. 175; Ma- dos e re-significados no presente, o que aproxima riátegui, 1991a, p. 109). o estudo das ideias políticas de uma arqueologia Essa divergência de leitura não impede que os sem maior interesse para os dilemas atuais (Femia, dois autores tenham uma visão similar do papel 1988; Brandão, 2007). Assim, ainda que partindo histórico da colônia. Em ambos os casos ela fun- da necessidade de uma reconstrução contextual ciona como negação da nação. Para Caio Prado, rigorosa, pretendo não me restringir aos limites por ser a sociedade colonial uma empresa voltada propostos por Skinner, pois procurarei discutir para os mercados externos e baseada no trabalho autores que nunca pretenderam dialogar entre si, escravo, estariam ausentes os pressupostos básicos ou seja, não compartilharam o mesmo contexto de uma nação: uma estrutura econômica dirigida a histórico, além de pensar contribuições que estes partir “de dentro” e voltada para o atendimento das deixaram para a atualidade. necessidades de sua população. Aliás, o historiador identifica na condição mercantil e escravista a origem de um contingente A colônia como negação da nação populacional livre, mas despossuído, o qual ficaria sem um lugar na produção. Esse setor, que Prado Jr. A primeira e mais evidente discrepância entre (1957, pp. 267-297) denomina “inorgânico”, seria Caio Prado e Mariátegui está na caracterização da um elemento constante de crise na ordem colonial colônia. Enquanto, para o historiador brasileiro, por esta não poder absorvê-lo. A mera existência a colonização portuguesa foi uma empresa mer- do setor inorgânico anunciaria, pois, a virtua lidade cantil e escravista, para o peruano, a colônia espa- da nação. Já Mariátegui, ao pensar a colônia como nhola foi uma transplantação do feudalismo, em ordem feudal que submete os indígenas ao domí- declínio na Europa, que rompeu com o “comunis- nio espanhol, aponta aí uma fratura histórica entre mo primitivo” que caracterizaria o Império Inca o elemento colonizador e o colonizado, o que im- (Prado Jr., 1957, pp. 13-26; Mariátegui, 2008, pediria as diversas partes da formação social de se pp. 7-8) integrarem numa nação: Tal divergência se explica tanto por motivos geracionais, como pelas óbvias diferenças entre os O problema está nas raízes mesmas deste Peru, dois processos de colonização. Caio Prado fez parte filho da conquista. Não somos um povo que de uma geração de historiadores que, a partir dos assimila as ideias e os homens de outras nações, anos de 1940 e por motivos que discutirei adian- impregnando-os de seu sentimento e seu am- te, fez uma revisão historiográfica que questionou biente e consegue, desta sorte, enriquecer sem o uso do conceito de feudalismo para interpretar deformá-lo, seu espírito nacional. Somos um a realidade latino-americana. Já Mariátegui, viveu povo no qual convivem, sem fundir-se, sem se em uma época em que esse uso, dentro e fora do entender ainda, o índio e o branco conquista- marxismo, era consensual. dor (Mariátegui, 2008, p. 86). 12027_RBCS79_AF3b.indd 51 7/2/12 4:35 PM 52 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 27 N° 79 Para tanto, seria preciso romper com essa fratu- produção (Mariátegui, 2008, pp. 9-13). Enfim, ra, incorporando o índio à vida econômica, social e tanto para o brasileiro, como para o peruano, se a política, tornando-o, enfim, a base da nacionalidade. emancipação política abriu caminho para a cons- trução da nação, esse caminho ficou bloqueado pelo fato de as classes dominantes – que lideraram Os processos de independência o processo – terem reforçado as estruturas sociais do período anterior. Tratava-se, pois, de revoluções Dito isso, caberia a pergunta: por que as re- burguesas incompletas. lações coloniais não foram definitivamente supera- Caio Prado e Mariátegui procuraram captar das? A resposta, para ambos os autores, estaria na um processo histórico no qual as rupturas eram forma pela qual se deram os processos de emanci- incompletas ou inexistentes, onde o passado se pação política no Brasil e no Peru. repunha sob novas formas, onde arcaico e moder- Já se disse anteriormente que a questão nacio- no se articulavam e se potencializavam reciproca- nal é o cerne tanto da obra do brasileiro como da mente. Desse modo, a consolidação de uma na- do peruano. Mais do que isso, ambos a trabalharam ção socialmente integrada – segundo os padrões de modo similar: tratava-se de captar a dialética en- legados pela Revolução Francesa – seria alcançada tre colônia e nação, na qual a nação em processo por meio de uma ruptura radical com um passado de formação – fruto da crise do regime colonial – colonial, o que implicaria em uma mudança da era negada pelas estruturas legadas pela colônia, as posição dos respectivos países na ordem econômi- quais se renovavam e se reforçavam com o avanço ca internacional. da integração dessas economias no sistema capita- Pode-se retomar o rico paralelo que Carlos lista. Dessa maneira, ganham relevo as leituras dos Nelson Coutinho traçou entre a visão de Caio Pra- dois autores a respeito do processo de independên- do sobre a formação social brasileira e os conceitos cia de seus países. de “revolução passiva” (Gramsci, 2002a, pp. 65-85) Caio Prado, em seu ensaio de estreia ana- e de “via prussiana” (Lênin, 1986, p. 406). Embora lisa como, no período de quarenta anos que vai com importantes limitações teóricas,2 o historia- da vinda da família real (1808) até a Revolução dor paulista pôde – como o marxista italiano ou Praieira (1848), os conflitos entre a burguesia o russo – empregar o método de Marx e Engels de mercantil lusitana e os proprietários de terra brasi- modo criativo para entender um processo de “via leiros trouxeram para o palco da luta política tan- não clássica para o capitalismo”. Tal processo seria to os homens livres sem posses, como os escravos, caracterizado, não por uma ruptura revolucionária, em especial nas revoltas do período regencial. Na mas sim pela ausência de transformações mais ra- opinião do autor, a “inorganicidade” dessas mas- dicais e pela permanência de uma estrutura social e sas populares – as quais não foram capazes nem política herdada do passado. Como afirma o mes- de se unir, nem de se emancipar da liderança das mo Coutinho, o outro autor latino-americano a elites regionais – permitiu a reação conservadora realizar uma empreitada similar foi justamente José (1837-1840) e a consolidação de um Estado cen- Carlos Mariátegui (1989, pp. 116-132. É essa pers- tralista e calcado na escravidão (Prado Jr., 1987, pectiva comum que possibilita aproximar o brasi- pp. 48-79). leiro do peruano. Já Mariátegui enfatiza como a participação subordinada das massas mestiças e indígenas no processo de independência, comandado pela aris- Duas vias “não clássicas” para o capitalismo tocracia feudal, marcou os limites da emancipa- ção política. Além disso, a distância entre o Peru É o caso agora de aprofundar no que con- e os centros do mercado mundial teria retardado sistiria, para cada autor, a “via não clássica” para ainda mais o desenvolvimento capitalista do país, o capitalismo, nas reflexões realizadas acerca de consolidando a persistência das antigas relações de suas respectivas formações sociais. Empreende- 12027_RBCS79_AF3b.indd 52 7/2/12 4:35 PM OS DILEMAS DO MARXISMO LATINO-AMERICANO... 53 rei essa análise por meio de dois temas presentes para “dentro” e era pouco mercantil (Donghi, s.d., em ambos os pensadores de modo entrelaçado: a pp. 11-63). Assim, as próprias diferenças entre o questão agrária e a relação entre imperialismo e campo no Brasil e no Peru ajudam a entender os burguesia local. Assim como no caso da concei- distintos diagnósticos da questão agrária. tuação da colônia, o modo pelo qual os dois au- Não deixa de ser curioso que os próprios tex- tores abordam suas respectivas formações econô- tos parecem apoiar essa análise ao confirmarem, mico-sociais e a questão agrária que delas emerge coincidentemente, um o argumento do outro. é marcadamente diferente. Caio Prado, por exemplo, em uma das inúmeras Enquanto o historiador brasileiro centra-se no passagens em que aponta a escassez de um autênti- conflito entre o capital agro-mercantil e a força de co campesinato brasileiro, por meio de uma longa trabalho, considerando o campesinato e suas rei- nota, compara o sistema da grande exploração com vindicações de acesso à terra problemas secundá- os casos dos países andinos e do México, nos quais rios ou residuais, Mariátegui, por seu turno, pensa as populações autóctones constituiriam uma classe em termos de um conflito entre um campesinato camponesa, expropriada pelo colonizador espanhol indígena, lutando pela terra, e uma elite feudal de e, portanto, aspirariam objetivamente ao acesso à origem criolla3 (Prado Jr., 2000, pp. 15-85; Mariá- terra (Prado Jr., 1966, pp. 221-222). tegui, 2008, pp. 26-38). Quais fatores explicam Se essa nota de A revolução brasileira converge, essas diferenças? Ensaiarei duas possibilidades de inadvertidamente, com o raciocínio de Mariátegui explicação complementares. De um lado, uma que sobre o problema agrário no altiplano, este último remeta às diferenças entre a sociedade brasileira e a parece dar razão ao primeiro ao negar a conveniên- peruana e, de outro, a remissão aos contextos in- cia de se parcelar as grandes empresas agrícolas da telectuais e políticos distintos nos quais os autores costa peruana. A justificativa de Mariátegui é a de produziram suas obras. que, parcelados, esses latifúndios perderiam seu Quanto à primeira explicação, creio que o di- caráter de empresas orgânicas trabalhadas coletiva- visor de águas esteja no tema, central para os dois mente, argumento este muito próximo, portanto, intelectuais, das relações sociais de produção. Caio daquele empregado por Caio Prado para a grande Prado pode rejeitar – com base no vínculo origi- exploração no Brasil (Mariátegui, 1991a, p. 114). nário entre escravidão, grande propriedade e pro- Todavia, se o feudalismo era mais próximo das dução para o mercado exterior – a existência de estruturas agrárias do Peru do que das do Brasil, um passado feudal, além de sustentar a escassez de isso não é suficiente para explicar o porquê de um um autêntico campesinato (Prado Jr., 1957, pp. autor defender o caráter feudal das relações sociais 113-123). Já Mariátegui tinha diante de si a so- do campo, ao passo que o outro afirmava serem brevivência do ayllú – comunidade rural indígena elas mercantis. Essa discrepância só pode ser mais baseada na apropriação e no trabalho coletivos – bem compreendida tendo-se em mente as diferen- e a persistência de relações de trabalho origina- ças históricas entre os contextos intelectuais de cada das nas encomiendas, as quais eram mais próxi- um. Até o início dos anos de 1930, não apenas a mas da servidão do que da escravidão, uma vez interpretação de um passado colonial feudal era he- que o camponês, ainda que submetido ao traba- gemônica no pensamento social latino-americano, lho compulsório, não era propriedade do senhor como a própria questão da articulação entre os paí- (Mariátegui, 2008, pp. 9-10). ses da região e o sistema capitalista havia apenas Ainda que se possa fazer objeções às interpre- começado a se constituir como um problema de tações dos dois autores a respeito das relações de reflexão. Com a crise do modelo agroexportador trabalho no campo em seus países, é preciso admi- e da dominação oligárquica – que tem a Primeira tir que a grande propriedade rural brasileira esteve Guerra Mundial e a crise de 1929 como principais sempre articulada ao mercado externo, ao passo marcos –, o lugar da América Latina no conjunto que no Peru, pela colonização ser centrada na mi- do mercado mundial se torna um problema políti- neração, o latifúndio do altiplano voltava-se mais co e teórico (Funes, 2006, pp. 224-226). 12027_RBCS79_AF3b.indd 53 7/2/12 4:35 PM 54 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 27 N° 79 Mariátegui produziu sua obra justamente en- Todavia, é justamente no tema da inserção tre a guerra e a crise, e tomou o caráter colonial subordinada das formações sociais respectivas no da economia de seu país como um tema-chave; no capitalismo internacional que se pode encontrar entanto, continuava dominante o paradigma do uma das principais convergências entre os autores feudalismo. Já Caio Prado, escrevendo após 1930 e estudados. Lembre-se, por exemplo, a passagem num ambiente intelectual que preparava o terreno dos Siete ensayos... sobre “o caráter colonial” do la- para o debate sobre o desenvolvimento, encontrou tifúndio da costa (Mariátegui, 2008, pp. 80-81). condições para superar a noção de feudalidade por A maneira pela qual Mariátegui demonstra como meio da inserção da trajetória da formação social os cultivos da costa peruana derivam dos interesses brasileira no interior do mercado mundial.4 No pe- dos mercados metropolitanos de Londres e Nova ríodo após 1945, quando o historiador brasileiro York tem fortes semelhanças com a noção caio-pra- já havia consolidado sua interpretação historiográ- diana de “sentido da colonização” como origem e fica inovadora sobre o Brasil-colônia e sua crise, foi dinâmica da grande exploração. Em ambos os casos fundada a Comissão Econômica para a América se apontam como os interesses mercantis externos Latina e Caribe (Cepal), organismo no qual inte- determinam o desenvolvimento de certas atividades lectuais iriam desencadear e pautar todo o debate produtivas, além de condicionarem sua estrutura, sobre o desenvolvimento. Celso Furtado – ao lado ritmos de ascensão e crise. Desse modo, tanto o de Raúl Prebisch, o principal pensador da Cepal brasileiro como o peruano deram destaque aos efei- – também irá considerar, em Formação econômica tos que a dominação econômica estrangeira exercia do Brasil (1959), a estrutura econômica brasilei- sobre as estruturas socioeconômicas internas, in- ra como sendo integrada ao mercado internacio- dependentemente dos conceitos que empregavam nal desde sua origem (Furtado, 1962, pp. 5-8). para definir tais estruturas. Nessa nova fase histórica – conhecida hoje como desenvolvimentista –, Caio Prado teria como inter- locutores não apenas os intelectuais comunistas que O imperialismo e a burguesia nacional se aferravam à tese dos “restos feudais”, mas tam- bém os intelectuais cepalinos, como Furtado. Essa constatação introduz a necessidade de O que importa assinalar aqui é que as novas abordar o tema do imperialismo e suas relações condições históricas em que se encontravam o com as classes dominantes locais. Aqui, é preciso Brasil e a América Latina, nas quais a economia fazer referência ao interlocutor comum aos dois primário-exportadora e a dominação oligárquica intelectuais: o movimento comunista. A Interna- haviam entrado em crise definitiva, e a industria- cional Comunista (IC) colocava como problemas lização aparecia como alternativa de superação do fundamentais dos países “coloniais, semicoloniais atraso, traziam novas questões aos intelectuais lati- e dependentes”, de um lado, a persistência de res- no-americanos.5 Nesse novo cenário, Caio Prado – tos feudais e, de outro, a dominação imperialista ao lado do argentino Sérgio Bagú e do chileno como travas do desenvolvimento capitalista dessas Marcelo Segall – pôde ser um dos pioneiros no in- sociedades. Segundo essa formulação – elaborada terior do marxismo a rejeitar a tese do feudalismo originalmente para o caso da China e posterior- colonial, revelando o caráter mercantil e escravis- mente generalizada para o conjunto da periferia do ta da colônia.. Quanto a Mariátegui, não se pode capitalismo (Schlessinger, 1974, pp.43-53; Cabal- exigir de um intelectual que responda questões que lero, 1988, pp. 121-145) –, haveria solidariedade seu tempo histórico não permite. Se a articulação entre os interesses imperialistas e dos latifundiários subordinada da economia peruana ao capitalismo feudais. Tanto Caio Prado como Mariátegui se in- mundial e seus efeitos internos foi um tema crucial serem no seio dessa vertente político-intelectual da reflexão mariateguiana, reavaliar a caracterização ao também enquadrarem os problemas centrais das relações sociais do campo, à luz dessa articula- de suas formações econômico-sociais em torno da ção não estava em seus horizontes. questão agrária e do imperialismo. 12027_RBCS79_AF3b.indd 54 7/2/12 4:35 PM OS DILEMAS DO MARXISMO LATINO-AMERICANO... 55 Contudo, como se verá adiante, as formulações Dentro da América Latina também se repro- de ambos sobre o imperialismo e sua relação com as duziria essa divisão. De um lado, na América classes dominantes em seus países discrepa daquela Central – cujas Repúblicas tinham a experiência da defendida pela ortodoxia comunista. Se para esta, intermitente intervenção militar norte-americana – a burguesia nacional, assim como o proletariado, poderiam se desenvolver movimentos cujo eixo se- teria um interesse objetivo em combater tanto os ria o anti-imperialismo e a libertação nacional. De restos feudais, como o capital imperialista, Caio outro, na América do Sul, cujas burguesias não se Prado e Mariátegui não enxergavam as coisas desse sentiam ameaçadas pelo imperialismo, o anti-im- modo. Pelo contrário, viam com ceticismo o papel perialismo só poderia ser coerentemente sustentado histórico que as burguesias brasileira ou peruana por movimentos classistas (Idem, p. 206). poderiam ter no combate à dominação econômica Aqui é importante lembrar que o alvo imedia- estrangeira, uma vez que sua origem estaria vincu- to de Mariátegui não era a IC, mas sim seu con- lada à inserção subordinada dessas economias no terrâneo Victor Raúl Haya de la Torre, político sistema capitalista internacional. nacional-populista, fundador da Aliança Popular Nesse sentido, é bom lembrar que os dois Revolucionária Americana (Apra).6 Para Haya de la procuraram desconstruir o modelo que a IC ten- Torre, o imperialismo seria a primeira fase do ca- tava impor à região – decalcado da experiência da pitalismo na América Latina, ainda parcialmente Revolução Chinesa durante os anos de 1920 –, feudal (2002a, p. 63). Partindo de uma visão evolu- demonstrando o modo diferente pelo qual o im- cionista da história, Haya considerava que os países perialismo se articulava com as burguesias locais latino-americanos não podiam prescindir dos apor- na América Latina e na Ásia. Em “Punto de Vista tes técnicos trazidos pelo imperialismo, mas deve- Anti-Imperialista” – tese enviada com a delega- riam controlar a tendência dos capitais imperialistas ção peruana à I Conferência Comunista Latino- para dominar suas economias (Idem, pp. 64-65). -americana, realizada em Buenos Aires, em junho Tal controle seria obtido por meio da construção de de 1929 –, Mariátegui começa por propor uma um “Estado-anti-imperialista”, apoiado na aliança diferenciação interna entre os chamados países das classes prejudicadas pela dominação estrangei- “semicoloniais”. De um lado, haveria aqueles ra – operários, camponeses e a classe média –, cujo que vivenciariam a intervenção política e militar primeiro exemplo teria sido o Estado que emergira direta do imperialismo, o que, por conseguinte, da Revolução Mexicana (Idem, 2002b, p. 51). levaria a burguesia e a pequena-burguesia a assu- Desse modo, não é a toa que Mariátegui tenha mir uma postura nacionalista ou anti-imperialista. escrito: “Nem a burguesia, nem a pequena-burgue- De outro, haveria países nos quais, em que pese o sia no poder podem fazer uma política anti-impe- caráter semicolonial da economia, a burguesia se rialista. Temos a experiência do México, aonde a sentiria suficientemente “dona do poder político” pequena-burguesia acabou pactuando com o impe- para não se preocupar com a soberania nacional, rialismo yankee” (Mariátegui, 1991b, p. 205). associando-se ao capital estrangeiro sem reservas Embora rejeitasse a heterodoxa visão de Haya (Mariátegui, 1991b, p. 202). de la Torre, a IC não deixava de compartilhar com Haveria ainda diferenças de caráter cultural. ele uma interpretação evolucionista do processo Na China, por exemplo, tanto o nobre como o histórico. Assim, ao criticar o líder aprista, Mariá- burguês se sentiriam imbuídos de um sentimento tegui acabou por atingir a concepção da IC sobre o nacional que os oporia ao estrangeiro e os vincu- papel do imperialismo no subcontinente. la ao povo. Já na Indo-América: “a aristocracia e a Escrevendo quase quatro décadas mais tarde, burguesia criollas não se sentem solidárias com o Caio Prado também enxerga um erro fundamen- povo por laços de uma história e cultura comuns. tal nas formulações da IC do final do decênio de No Peru, o aristocrata e o burguês brancos despre- 1920 sobre o imperialismo. Enquanto na Ásia e zam o nacional [...]. O pequeno-burguês mestiço na África o imperialismo teria se implantado em imita esse exemplo” (Idem, p. 204). sociedades constituídas fora da órbita do capita- 12027_RBCS79_AF3b.indd 55 7/2/12 4:35 PM 56 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 27 N° 79 lismo – gerando, assim, profundas tensões sociais, É bom lembrar, seguindo Bresser-Pereira políticas, culturais e mesmo étnicas –, as sociedades (1979, pp. 272-274), que até meados da década latino-americanas teriam se constituído a partir da de 1950 a batalha pela industrialização ainda não expansão do capitalismo comercial europeu, eta- havia sido ganha, havendo importantes parcelas pa de formação do capitalismo industrial, ou seja, das elites ligadas ao setor primário-exportador que dentro dos quadros do mercado e da modernidade defendiam a velha tese da “vocação agrícola” do europeia em formação. Assim, o imperialismo – Brasil. Em seguida, porém, veio à tona a questão definido como fase contemporânea do capitalismo de se a industrialização deveria ser conduzida com internacional – teria encontrado aqui um terreno já base em capitais nacionais ou recorrendo aos es- preparado por estruturas legadas pelo passado colo- trangeiros. nial (Prado Jr., 1966, pp. 100-102). Assim, se Caio Prado, entre 1954 e 1956, Esses dois modos distintos de articulação com o apostou, como fez o Partido Comunista Brasilei- imperialismo resultam em diferentes conformações ro – PCB, na ampla frente social industrializante, da burguesia. No primeiro caso, forma-se um setor num segundo momento, passou a criticar a opção autóctone vinculado aos interesses comerciais estran- de JK e da maior parte da burguesia pelo recurso geiros em oposição a outro, interessado no desenvol- aos “capitais imperialistas”. Oscilações como essas vimento de uma indústria própria. Já no segundo, os não podem ser observadas nas leituras de Mariá- diferentes ramos da burguesia – agrária, comercial, tegui. A razão, mais uma vez, deve ser buscada na industrial e financeira – desenvolveriam laços de as- diferença entre Brasil e Peru. Os avanços da indus- sociação com o capital estrangeiro, não tendo assim trialização e da modernização da economia expe- interesses anti-imperialistas. rimentados pelo Brasil em meados do século XX Em que pese essa convergência básica, os dois contrastam com a situação vivida pelo Peru na intelectuais marxistas aqui analisados possuem, ao década de 1920. Ali, o que havia era uma econo- pensar a relação entre o imperialismo e a burguesia, mia de enclave, baseada na mineração, na extração uma discrepância sutil, porém importante. Doze de petróleo e na agricultura comercial. Não havia, anos antes de escrever A revolução brasileira, curio- então, perspectivas apreciáveis de industrializar o samente Caio Prado, ao enumerar os sujeitos sociais país andino. Assim, Mariátegui, para além de sua das transformações econômicas das quais o Brasil concepção do imperialismo e do processo revolu- necessitava, inclui, ao lado do proletariado, “a bur- cionário, tinha diante de si uma situação na qual guesia industrial e comercial, liberta de seu vínculo uma etapa de desenvolvimento capitalista levado com o imperialismo” (Prado Jr., 1954, p. 240). Essa a diante por uma classe burguesa progressista não referência é tanto mais surpreendente pois não só vai seria muito realista. na contramão das formulações consagradas na obra já citada de 1966, como também contraria posições anteriores do autor, tomadas a propósito de polêmi- A revolução: programa e agentes cas partidárias (Prado Jr., 2007, p. 140). Como ex- plicar tal oscilação? Essa última discrepância entre as duas obras re- Creio que a resposta pode ser encontrada nos mete ao último tema comum que articula o cotejo artigos escritos pelo autor na Revista Brasiliense a res- aqui empreendido: o da teoria da revolução. Esta se peito da industrialização e do capital estrangeiro. Se, desdobra em dois planos. Em primeiro lugar, num por volta de 1955, ele se mostrava otimista em rela- programa ou tarefas históricas a serem cumpridas ção às potencialidades do nacionalismo brasileiro de e, em segundo, nos sujeitos ou atores sociais que conduzir um processo de industrialização autônoma levarão tais tarefas a cabo. (Prado Jr., 1955, p. 80), logo em seguida condena Para o historiador brasileiro, o programa re- a opção, feita pelo governo de Juscelino Kubitschek volucionário adequado ao país deveria centrar-se (JK), de promover o desenvolvimento amparando-se na conclusão da construção da nação, superando no capital estrangeiro (Idem, 1959, p. 6). definitivamente as relações coloniais. Esse processo 12027_RBCS79_AF3b.indd 56 7/2/12 4:35 PM OS DILEMAS DO MARXISMO LATINO-AMERICANO... 57 dar-se-ia, de um lado, pela generalização de direi- e o limite da elaboração sobre o assunto no inte- tos sociais e trabalhistas no campo, o que forçaria rior do marxismo de matriz comunista no Brasil a desconcentração da propriedade rural (Prado Jr., (Brandão, 1997, p. 54). 1966, pp. 216-218) e completaria a transição para Mariátegui, como já foi referido, também con- o trabalho livre, e, de outro, pela consolidação de cordava em que a tarefa histórica central da revo- um mercado interno de massas, que se converte- lução no Peru seria a de completar a formação da ria no motor do desenvolvimento nacional e na nação e superar a colônia. A concretização desse superação da a dependência externa (Idem, pp. objetivo dar-se-ia pela solução de dois problemas 256-257). Os sujeitos dessas transformações seriam conjugados: a questão indígena e a questão agrá- a classe operária urbana e os trabalhadores rurais, ria. Os indígenas seriam incorporados à vida na- cujos interesses objetivos, embora muitas vezes cional quebrando-se o monopólio da aristocracia “sem a devida consciência”, convergiriam nesse feudal sobre a terra (Mariátegui, 1991d, pp. 218- sentido (Idem, pp. 279-280). Dessa maneira, Caio 220). Para ele, esse programa implicava também a Prado critica seu partido por ter apostado no cará- ruptura com o imperialismo, cujo interesse se li- ter progressista e nacionalista da burguesia, a qual o gava à ordem vigente. Os portadores sociais dessas autor via como alinhada aos interesses imperialistas transformações seriam a classe operária urbana e e da grande exploração rural. Desse equívoco, con- os camponeses indígenas (Aricó, 1978, p. xlviii). clui ele, teria resultado o fracasso político da teoria Ao contrário de Caio Prado, Mariátegui conside- “oficial” da revolução brasileira. rava a revolução como sendo claramente socialista. Todavia, essa crítica não implicava na defesa de Nesse sentido, o revolucionário peruano não via, uma revolução socialista. Na realidade, Caio Prado na periferia do capitalismo, contradição entre na- afirmava que começar o debate sobre a revolução cionalismo e socialismo. Enquanto na Europa, o a partir de “rótulos” como “socialista” ou “demo- nacionalismo adquiria um caráter conservador, nos crático-burguesa” seria um equívoco teórico, já que países coloniais, por não haver cumprido sua mis- uma revolução, para ele, se definiria por suas tarefas são revolucionária, o nacionalismo desembocaria históricas (Idem, pp. 3-5). Seja como for, ele é cla- no socialismo (Mariátegui, 1995, p. 250). ro ao dizer, em acordo com o PCB, que o socialis- Dado que a burguesia peruana chegara tarde mo não estaria na ordem do dia do Brasil de então demais à cena histórica e o capitalismo internacio- (Idem, pp. 265-266). nal só reservava ao Peru o papel de “semicolônia”, É sintomático observar a esse propósito a con- as tarefas revolucionárias, em que pese seu “caráter vergência insuspeita dos dois principais críticos de burguês”, só poderiam se realizar por meio do socia- A revolução brasileira. Assis Tavares (pseudônimo lismo (Idem, 1991c, p. 127). do dirigente pecebista Marco Antônio Tavares Coe- Do mesmo modo que na polêmica sobre o lho), defendendo a linha do partido, adverte que imperialismo, o marxista peruano também pro- o programa defendido pelo historiador era vago e curava criticar as concepções de Haya de la Torre estava aquém do programa do PCB (Tavares, 1967, sobre o processo revolucionário no Peru e na Amé- p. 58). Já o trotskista Ruy Fausto aponta na obra rica Latina. Para este último, o objetivo da revolu- um divórcio entre a economia e a política, o que ção seria o de criar um “Estado anti-imperialista”, manteria Caio Prado na órbita do “reformismo” de apoiado, como já foi dito, em uma aliança policlas- seu partido (Fausto, 1967, pp. 9-10). sista, capaz de assegurar a soberania nacional por Ao contrário do que sustenta a maior parte meio da implantação de um capitalismo de Estado de seus comentadores, estou de acordo com Gildo (Haya de la Torre, 2002b, pp. 56-58). Marçal Brandão e Raimundo Santos de que Caio Mais uma vez, as teses mariateguianas extrapo- Prado seja um legítimo representante da cultura laram a polêmica com o aprismo e o confrontaram política pecebista (Brandão, 1997, pp. 219-220; com a ortodoxia da IC, que defendia a precedência Santos, 2001). Sua teoria da revolução como pro- de uma etapa “democrático-burguesa” da revolução cesso contínuo de reformas é, em realidade, o auge para os “países semicoloniais”. Na realidade, a di- 12027_RBCS79_AF3b.indd 57 7/2/12 4:35 PM 58 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 27 N° 79 vergência de fundo entre o peruano e a IC devia-se contextos nacionais. O Peru dos anos de 1920, ao fato de o primeiro empregar o marxismo como além da ditadura pessoal de Augusto B. Leguía,7 método para apreender a especificidade do Peru e caracterizava-se ainda por uma ordem social oli- da América Latina, enquanto a última empregava- gárquica e uma rígida estratificação que seguia li- -o como um sistema de categorias universalmente nhas étnicas, com a exclusão da massa indígena válidas (Mellis, 1978, p. 225). (Galindo e Burga, 1994), ao passo que o Brasil – Examinadas as respectivas concepções do pro- entre 1930 e 1964 – viveu um processo de incor- cesso revolucionário e as polêmicas que a esse res- poração, ainda que subordinada, das classes tra- peito foram travadas pelos autores, cabe verificar as balhadoras urbanas na política. Assim, se no Peru discrepâncias e as convergências entre Caio Prado e da década de 1920 seria difícil crer em transfor- Mariátegui a respeito deste tema. Enquanto o pe- mações por meio de reformas, no Brasil, especial- ruano afirmava o caráter socialista da revolução, o mente entre o pós-guerra e o golpe de 1964, esse brasileiro defendia uma revolução definida segundo era um caminho plausível. suas tarefas históricas, que avançasse por meio de Outra discrepância entre os autores diz res- reformas sucessivas. Isso não significa que o perua- peito às diferentes formas de articulação entre a no desprezasse o caráter processual e de longo prazo leitura que ambos tinham dos processos históricos da revolução ou que o brasileiro não tivesse o so- mais gerais e a análise das conjunturas políticas. cialismo por objetivo último. O que se quer dizer é Uma das críticas mais contundentes feita, tanto que, enquanto o primeiro acreditava na necessidade por Assis Tavares, como por Ruy Fausto, a Caio de uma ruptura mais drástica, o segundo defendia Prado é de sua incompreensão das exigências da um caminho mais gradualista. análise e da ação políticas. Com base nessa crí- A diferença se explica, em grande parte, por tica, creio ser possível apontar um certo “econo- razões históricas. Mariátegui, é bom lembrar, vi- micismo” nas análises políticas empreendidas pelo veu na Europa durante a onda revolucionária que historiador paulista. Não que suas teses historio- se seguiu à Revolução de 1917 (1919-1923), ten- gráficas fossem economicistas, o que não creio do sido particularmente influenciado pela expe- que tenham sido. Aqui o termo “economicismo” riência das agitações operárias do norte da Itália, tem a acepção dada por Gramsci: a dificuldade de no que ficou conhecido como “biênio vermelho” distinguir entre os processos estruturais de longo (1919-1920), pela fundação do Partido Comu- prazo e o acontecer conjuntural, tendendo-se a re- nista Italiano (1921) e pela reação fascista (Paris, duzir um ao outro (Gramsci, 2002b, pp. 37-38). 1980, pp. 100-121). Além disso, militou em um O historiador brasileiro procurou derivar de movimento comunista internacional que, embora sua concepção do processo de formação da socie- com importantes mudanças de estratégia política dade brasileira um programa alternativo ao do PC, ao longo da década de 1920, acreditava na proxi- mas sem levar em consideração a necessária me- midade da revolução mundial. diação das conjunturas políticas. Suas propostas Já Caio Prado, embora tenha sido formado programáticas, além de vagas e gerais, permanece- na mesma matriz política, militou em um perío- ram nos limites da cultura política comunista de do mais longo, que vai dos anos de 1930 aos de então. Assim, talvez se explique por que, em que 1960. Nesse período, em especial após a dissolu- pese inovações teóricas para os padrões da esquer- ção do Comintern (1943) e após a Segunda Guerra da brasileira de seu tempo, como sua conceituação Mundial, os PCs alinhados com a União Soviética de revolução, Caio Prado não tenha logrado pensar foram adotando – em virtude da Guerra Fria e da uma alternativa política à altura de sua contribui- estabilização do capitalismo mundial – uma linha ção como historiador. mais defensiva e, não sem oscilações, tendente à in- Curiosamente, uma acusação similar foi feita, tegração nos sistemas políticos nacionais. tanto por Haya de la Torre, como pelo responsável Entretanto, talvez se possa aventar uma ex- pelo Secretariado Sul-americano da Internacional plicação complementar, calcada na diferença dos Comunista (SSAIC) Vittorio Codovilla, a Mariá- 12027_RBCS79_AF3b.indd 58 7/2/12 4:35 PM

Description:
ro Caio Prado Jr. (1907-1990) e as do jornalista Caio Prado e Mariátegui está na caracterização da .. da Revolução Mexicana (Idem, 2002b, p.
See more

The list of books you might like

Most books are stored in the elastic cloud where traffic is expensive. For this reason, we have a limit on daily download.