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Os demônios PDF

447 Pages·2013·0.8 MB·portuguese
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Fiódor Dostoiévski Os demônios Romance em três partes Que nos matem; nem sinal vemos, Nos perdemos, e agora? Ao campo nos leva o demo, Vemos, e vai girando afora. [...] Quantos são, aonde os tangem, Que cantam nesse lamento? Farão enterro dum duende, Ou duma bruxa o casamento? A. Púchkin Ora, andava ali, pastando no monte, uma grande manada de porcos; rogaram-lhe que lhes permitis- se entrar naqueles porcos. E Jesus o permitiu. Tendo os demônios saído do homem, entraram nos porcos, e a manada precipitou-se despenhadeiro abaixo, para dentro do lago, e se afogou. Os porqueiros, vendo o que acontecera, fugiram e foram anunciá-lo na cidade e pelos campos. Então saiu o povo para ver o que se passara, e fo- ram ter com Jesus. De fato acharam o homem de quem saíram os demônios, vestido, em perfeito juí- zo, assentado aos pés de Jesus; e ficaram domina- dos pelo terror. E algumas pessoas que tinham presenciado os fa- tos contaram-lhes também como fora salvo o ende- moninhado. Lucas, 8, 32-6* * Todas as citações bíblicas empregadas nesta tradução se baseiam no texto de A Bíblia Sagrada, traduzido para o português por João Ferreira de Almeida (1628-1691) e publicado pela Sociedade Bíblica do Brasil, edição revista e atualizada, 1993. (N. do T.) PRIMEIRA PARTE I À GUISA DE INTRODUÇÃO - ALGUNS DETALHES DA BIOGRAFIA DO HONORABILÍSSIMO STIEPAN TROFÍMOVITCH VIERKHOVIÉNSKI I Ao iniciar a descrição dos acontecimentos recentes e muito estranhos ocorridos em nossa cidade que até então por nada se distinguia, por inabilidade minha sou forçado a começar um tanto de longe, ou seja, por alguns detalhes biográficos referentes ao talentoso e honorabilíssimo Stiepan Trofímovitch Vierkhoviénski. Sirvam esses detalhes apenas de introdução a esta crônica, pois a própria história que pretendo descrever ainda está por vir. Digo sem rodeios: entre nós Stiepan Trofímovitch sempre desempenhou um papel, por assim dizer, cívico, e gostava apaixonadamente desse papel, a ponto de me parecer que sem ele nem poderia viver. Não é que eu o equipare a um ator de teatro: Deus me livre, ainda mais porque eu mesmo o estimo. Tudo aí podia ser questão de hábito, ou melhor, de uma tendência constante e nobre para acalentar desde criança o agradável sonho com a sua bela postura cívica. Por exemplo, gostava sumamente de sua condição de “perseguido” e, por assim dizer, “deportado”. Nessas duas palavrinhas há uma espécie de brilho clássico que o seduziu de vez e depois, ao promovê-lo gradualmente, ao longo de muitos anos, em sua própria opinião, acabou por levá-lo a um pedestal bastante elevado e agradável ao amor-próprio. Em um romance satírico inglês do século passado, um tal de Gulliver, voltando do país dos liliputianos, onde as pessoas tinham apenas uns dois vierchóks (Vierchók: antiga medida russa equivalente a 4,4 cm. (N. do T.)) de altura, habituou-se de tal modo a se achar um gigante entre elas que, ao andar pelas ruas de Londres, gritava involuntariamente aos transeuntes e carruagens que se desviassem e tomassem cuidado para que ele não os esmagasse de algum modo, imaginando que ainda fosse gigante e os outros, pequenos. Por isso riam dele e o injuriavam, enquanto os cocheiros grosseiros chegavam até a lhe dar chicotadas; convenhamos, será isso justo? De que não é capaz o hábito! O hábito levou Stiepan Trofímovitch a agir quase do mesmo modo, porém de uma forma ainda mais ingênua e inofensiva, se é lícita esta expressão, porque ele era um homem magnificentíssimo. Chego até a pensar que, ao fim e ao cabo, ele foi esquecido por todos e em toda parte; entretanto, não há como dizer que antes ele já fosse inteiramente desconhecido. É indiscutível que durante certo tempo até ele pertenceu à célebre plêiade de outros homens célebres da nossa geração passada, e num período - aliás, apenas durante um minutinho curtíssimo - em que o nome dele foi pronunciado por muitas das pessoas apressadas de então, quase que ao lado de nomes como Tchaadáiev (Piotr Yákovlievitch Tchaadáiev (1794-1856), filósofo e pensador político russo. (N. do T.)), Bielínski (Vissarion Grigórievitch Bielínski (1811-1848), crítico literário e pensador político, que teve grande influência sobre Dostoiévski. (N. do T.)), Granovski (Tomofiêi Nikoláievitch Granovski (1813- 1855), historiador e sociólogo russo. (N. do T.)) e Herzen, que acabara de voltar do estrangeiro. Mas a atividade de Stiepan Trofímovitch terminou quase no mesmo instante em que começou - por assim dizer, em virtude de “um turbilhão de circunstâncias” (É possível que essas palavras remontem à expressão “um turbilhão de trapalhadas”, usada por Gógol em Trechos seletos da correspondência com amigos. (N. da E.)). E o que aconteceu? Depois não só o “turbilhão” mas nem mesmo as “circunstâncias” se verificaram, pelo menos nesse caso. Para a minha imensa surpresa, só agora, por esses dias, fiquei sabendo, mas já de fonte absolutamente fidedigna, que Stiepan Trofímovitch morou entre nós, na nossa província, não só sem ser deportado, como se costumava pensar, mas inclusive nunca esteve sequer sob vigilância. Em face disso, que força tem a própria imaginação! Durante toda a vida ele mesmo acreditou que em certas esferas sempre o temiam, que conheciam e contavam continuamente seus passos e que cada um dos três governadores que entre nós se alternaram nos últimos vinte anos, ao partirem para governar a província, já traziam consigo uma certa ideia especial e preocupante sobre ele, incutida de cima, e antes de tudo no ato de entrega da província. Fosse alguém assegurar então ao honorabilíssimo Stiepan Trofímovitch, com provas irrefutáveis, que ele não tinha absolutamente o que temer, e ele forçosamente se ofenderia. Entretanto, ele era um homem inteligentíssimo e talentosíssimo, um homem, por assim dizer, de ciência, embora, convenhamos, em ciência... bem, numa palavra, em ciência ele não fez lá muita coisa e, parece, não fez nada vezes nada (Juízo semelhante sobre T. N. Granovski foi emitido pelo professor reacionário da Universidade de Moscou V. V. Grigóriev (1816-1881), segundo quem o professor Granovski fora predominantemente “um transmissor passivo de material assimilado” e sua “vasta erudição ainda não lhe dá o direito ao título de cientista”. Já N. G. Tchernichévski (1828-1889), escritor e pensador de esquerda, escreveu que Granovski, “pela natureza e a ilustração”, será por vocação “um grande cientista”. (N. da E.)). Acontece, porém, que aqui na Rússia isso ocorre a torto e a direito com os homens de ciência. Ele voltou do exterior e brilhou como lente numa cadeira de uma universidade já bem no final dos anos quarenta. Conseguiu, porém, proferir apenas algumas conferências e, parece, sobre os árabes (Em 1840 Granovski deu um curso sobre história dos gauleses e dos povos da Oceania. Não tratou dos árabes. Dostoiévski faz menção a estes com o fito de ironizar as aulas de história de Stiepan Trofímovitch. (N. da E.)); ainda teve tempo de defender uma brilhante dissertação a respeito da perspética importância cívica e hanseática da cidade alemã de Hanau (Em 1845 Granovski defendeu na Universidade de Moscou sua dissertação de ingresso no magistério superior sobre o tema da cidade medieval. (N. da E.)) entre 1413 e 1428, e ao mesmo tempo sobre as causas peculiares e vagas que inviabilizaram essa importância. Essa dissertação alfinetou de modo hábil e profundo os eslavófilos de então e logo lhe angariou inúmeros e enfurecidos inimigos entre eles. Mais tarde - aliás, já depois de ter perdido a cadeira -, ele conseguiu publicar (por assim dizer, para se desforrar e mostrar quem eles haviam perdido), em uma revista mensal e progressista, que traduzia Dickens e divulgava George Sand (Trata-se de Otiétchestvennie Zapiski (Anais Pátrios). (N. da E.)), o início de uma pesquisa profundíssima - parece que sobre as causas da nobreza moral inusitada de certos cavaleiros em uma certa época (Alusão irônica ao artigo de Granovski “O cavaleiro Bayard”, que trata de um cavaleiro medieval francês. (N. da E.)) ou qualquer coisa desse gênero. Quanto mais não seja, desenvolvia-se algum pensamento superior e inusitadamente nobre. Disseram depois que a continuidade da pesquisa foi gradualmente proibida e que a revista progressista foi censurada pela primeira metade do trabalho que publicou. Isso era muito possível, pois o que não acontecia naquela época? Mas neste caso o mais provável é que nada tenha acontecido e que o próprio autor deixou de concluir a pesquisa por preguiça. Ele interrompeu suas aulas sobre os árabes porque, não se sabe como, alguém (pelo visto um de seus inimigos retrógrados) interceptou uma carta dirigida a não sei quem com a exposição de certas “circunstâncias”, e em decorrência de sabe lá o quê alguém exigia dele certas explicações (Em virtude da sua atividade de professor, em 1845 Granovski foi acusado de homem nocivo ao Estado e à religião, e em razão disso o metropolitano de Moscou, Filariet, exigiu dele explicações a respeito de tais acusações. (N. da E.)). Não sei se é verdade, mas afirmavam ainda que, na ocasião, fora descoberta em Petersburgo uma sociedade imensa, contranatural e antiestatal formada por uns trinta homens, que por pouco não abalou o edifício. Diziam que eles teriam a intenção de traduzir o próprio Fourier (Referência à sociedade de Pietrachevski (1846-1848), da qual o próprio Dostoiévski foi membro. (N. da E.)). Como de propósito, ao mesmo tempo foi interceptado em Moscou um poema de Stiepan Trofímovitch escrito ainda seis anos antes, em Berlim, em plena primeira juventude, que se transmitia de mão em mão, em manuscritos, entre dois aficionados e um estudante. Eu também tenho esse poema na minha escrivaninha; recebi-o no ano passado, não mais tarde, numa cópia escrita de próprio punho e bem recentemente pelo próprio Stiepan Trofímovitch, com sua assinatura e uma magnífica encadernação em marroquim vermelho. Aliás, o poema não é desprovido de poesia e nem mesmo de um certo talento; é estranho, mas naquela época (isto é, mais provavelmente nos anos trinta), escrevia-se frequentemente nesse gênero. Tenho dificuldade de narrar o enredo, pois, para falar a verdade, não entendo nada dele. É uma espécie de alegoria em forma lírico-dramática, que lembra a segunda parte do Fausto. A cena é aberta por um coro de mulheres, depois por um coro de homens, depois por um coro de certas forças e, no fim de tudo, por um coro de almas que ainda não viveram mas que gostariam muito de viver um pouco. Todos esses coros cantam sobre algo muito vago, o mais das vezes sobre alguma maldição, mas com matiz de supremo humor. No entanto a cena é subitamente modificada e tem início alguma “festa da vida”, na qual cantam até insetos, aparece uma tartaruga dizendo algumas palavras sacramentais latinas e, se estou lembrado, até canta um mineral sobre sei lá o quê, ou seja, um objeto já inteiramente inanimado. No geral todos cantam sem cessar e, se conversam, xingam-se de um modo um tanto indefinido, porém mais uma vez com matiz de suprema importância. Por último, a cena torna a mudar e aparece um lugar selvagem e entre rochas perambula um jovem civilizado, que arranca e chupa certas ervas e à pergunta da fada: por que está chupando essas ervas? - responde que, sentindo em si um excedente de vida, procura o esquecimento e o encontra no suco dessas ervas; mas que o seu desejo principal é perder o quanto antes a razão (desejo talvez até excessivo). Em seguida, aparece subitamente em um cavalo preto um jovem de uma beleza indescritível, seguido de um número monstruosamente grande de gente de todas as nacionalidades. O jovem representa a morte e todos os povos estão sequiosos dela. Finalizando, na última das cenas aparece súbito a torre de Babel, alguns atletas finalmente estão acabando de construí-la entoando o canto de uma nova esperança, e quando concluem a construção até da própria cúpula o possuidor - do Olimpo, suponhamos - foge de maneira cômica e a humanidade, que se dera conta e se apossara do lugar dele, começa imediatamente uma nova vida com uma nova convicção das coisas. Pois bem, foi esse poema que naqueles idos consideraram perigoso. No ano passado sugeri a Stiepan Trofímovitch que o publicasse por causa da sua absoluta inocência em nossos dias, mas ele rejeitou a proposta com uma visível insatisfação. A opinião sobre a absoluta inocência o desagradou, e chego até a atribuir a isso certa frieza dele em relação a mim, que durou dois meses inteiros. E o que aconteceu? De repente, quase na mesma ocasião em que eu lhe sugeri publicar aqui, publicam o nosso poema lá, isto é, no estrangeiro, em uma coletânea revolucionária (Para traçar uma característica irônica do poema de Stiepan Trofímovitch, Dostoiévski se vale da forma e de alguns motivos da trilogia do jovem S. P. Petchérin (1807-1855). (N. da E.)), e sem qualquer autorização de Stiepan Trofímovitch. A princípio ele ficou assustado, precipitou-se para a casa do governador e escreveu a mais nobre carta de justificação a Petersburgo, leu-a para mim duas vezes, mas não a enviou por não saber a quem endereçá-la. Numa palavra, andou o mês inteiro alvoroçado; mas estou convencido de que, nos meandros secretos do seu coração, sentiu-se extraordinariamente lisonjeado. Por pouco não dormiu com um exemplar da coletânea que lhe chegou às mãos, de dia o escondia debaixo do colchão e não permitia nem que a mulher trocasse a roupa da cama, e, embora esperasse a cada dia um telegrama de algum lugar, ainda assim tinha um ar arrogante. Não chegou telegrama nenhum. Então fez as pazes comigo, o que prova a extraordinária bondade do seu coração sereno, que não guarda rancor. II Bem, eu não afirmo que ele não tenha sofrido nem um pouco; só agora estou convencido de que ele poderia continuar falando dos seus árabes o quanto lhe aprouvesse, contanto que desse as explicações necessárias. Mas naquela ocasião ele andava ferido em seu amor-próprio e com uma pressa particular dispôs-se a assegurar a si mesmo, de uma vez por todas, que sua carreira estava desfeita para o resto da vida por um “turbilhão de circunstâncias”. Se é para dizer toda a verdade, a verdadeira causa da mudança de sua carreira foi a proposta delicadíssima que lhe foi feita e renovada ainda antes por Varvara Pietrovna Stavróguina, esposa de um tenente-general e ricaça importante, para que ele assumisse a educação e todo o desenvolvimento intelectual de seu único filho na condição de supremo pedagogo e amigo, já sem falar da brilhante recompensa. Essa proposta lhe foi feita pela primeira vez ainda em Berlim, e justamente na mesma ocasião em que ele enviuvara pela primeira vez. Sua primeira esposa era uma moça leviana da nossa província, com quem ele se casara ainda muito jovem e imprudente, e parece que essa criatura, aliás atraente, causou-lhe muitos dissabores porque lhe faltavam recursos para mantê-la e, ademais, por motivos já em parte delicados. Ela faleceu em Paris, após ter estado já separada dele nos últimos três anos, e lhe deixou um filho de cinco anos, “fruto do primeiro amor alegre e ainda não sombrio”, como certa vez se exprimiu com tristeza Stiepan Trofímovitch na minha presença. Ainda bem no início enviaram o pimpolho para a Rússia, onde foi educado o tempo todo por umas tias distantes, nuns cafundós. Na ocasião, Stiepan Trofímovitch rejeitou a proposta de Varvara Pietrovna e rapidamente tornou a casar-se, até antes de que se passasse um ano, com uma alemã de Berlim, caladona, e, principalmente, sem qualquer necessidade particular. Mas além desta houve outras causas da recusa ao posto de educador: sentia-se seduzido pela fama então estrondosa de um inesquecível professor e ele, por sua vez, voou para a cadeira para a qual se preparava com a finalidade de também experimentar as suas asas de águia. Eis que agora, com as asas já queimadas, ele naturalmente recordava a proposta que já antes abalara a sua decisão. A morte repentina de sua segunda esposa, que não viveu nem um ano com ele, arranjou tudo definitivamente. Digo sem rodeios: tudo foi resolvido pela participação ardorosa e preciosa, por assim dizer, pela amizade clássica que Varvara Pietrovna lhe tinha, se é que se pode falar assim de amizade. Ele se lançou nos braços dessa amizade e ela se estabilizou por mais de vinte anos. Empreguei a expressão “lançou-se nos braços”, mas Deus me livre de que alguém pense algo excessivo e vão; esses abraços devem ser entendidos apenas em um sentido, o mais altamente ético. O laço mais sutil e mais delicado uniu para sempre esses dois seres tão notáveis. A vaga de educador foi aceita ainda porque a fazendinha que Stiepan Trofímovitch herdara da primeira mulher - muito pequena - ficava bem ao lado de Skvoriéchniki, magnífica fazenda dos Stavróguin, situada nos arredores da cidade em nossa província. Além do mais, no silêncio do gabinete e já sem desviar suas atenções com a imensidade de ocupações universitárias, sempre era possível dedicar-se à causa da ciência e enriquecer as letras pátrias com pesquisas da maior profundidade. Pesquisas não houve; mas em compensação foi possível permanecer todo o resto da vida, mais de vinte anos, por assim dizer, “como a censura personificada” (Ainda com o poeta N. A. Niekrássov (1821-1877) vivo, Dostoiévski o chamava de “poeta popular”. Os versos aqui citados são do poema de Niekrássov “A caça do urso”, onde se lê: “Diante da pátria te ergueste/ Honesto nas ideias, puro no coração,/ Como a censura personificada/ Liberal idealista”. (N. da E.)) diante da pátria, segundo expressão de um poeta popular: Como a censura personificada ............................................... Diante da pátria te ergueste, Liberal idealista. Mas a pessoa sobre quem se exprimiu o poeta popular talvez tivesse o direito de passar a vida inteira nessa pose se o quisesse, embora isso fosse tedioso. Já o nosso Stiepan Trofímovitch, para falar a verdade, era apenas um imitador de semelhantes pessoas e, além disso, ficaria cansado de permanecer em pé e se deitaria um pouquinho de lado (Palavras tiradas do livro de Gógol Trechos seletos da correspondência com amigos. (N. da E.)). Mas ainda que fosse de lado, a personificação da censura se manteria também com ele deitado - justiça seja feita, ainda mais porque, para a província, isso já bastava. Ah, se os senhores o vissem em nosso clube à mesa do carteado! Todo o seu aspecto dizia: “Cartas! Estou aqui com vocês nesse ieralach (Antigo jogo de cartas semelhante ao uíste. (N. do T.))! Acaso isto é compatível? Quem vai responder por isso? Quem destruiu minha atividade e a transformou em ieralach? Eh, Rússia, dane-se!” - e, garboso, trunfava com copas. Mas em verdade gostava tremendamente de jogar uma partida (Uma das características principais de Granovski nos momentos mais intensos de temor à repressão, segundo seus biógrafos. (N. da E.)), pelo que tinha desavenças frequentes e desagradáveis com Varvara Pietrovna, sobretudo ultimamente, ainda mais porque sempre perdia, mas disto falaremos depois. Observo apenas que ele era um homem até consciencioso (isto é, às vezes) e por isso frequentemente andava triste. Durante todos os vinte anos de amizade com Varvara Pietrovna, ele caía regularmente naquilo que entre nós se chama de “tristeza cívica” (Expressão muito em voga na Rússia nos anos sessenta do século XIX. (N. da E.)), ou seja, simplesmente em melancolia profunda, mas essa palavrinha era do agrado da prezada Varvara Pietrovna. Mais tarde, além da tristeza cívica ele passou a cair também no champanhe; mas a sensível Varvara Pietrovna o protegeu a vida inteira de todas as inclinações triviais. Sim, ele precisava de uma aia, porque às vezes se tornava muito estranho: no meio da mais sublime tristeza começava de repente a rir da forma mais vulgar. Havia minutos em que começava a exprimir-se sobre si mesmo em sentido humorístico. Porém, não havia nada que Varvara Pietrovna temesse mais que o sentido humorístico. Era uma mulher-clássico, uma mulher-mecenas, que agia sob formas exclusivas de razões superiores. Foi capital a influência de vinte anos dessa dama superior sobre o seu pobre amigo. Dela é preciso falar em particular, o que passarei a fazer. III Existem amizade estranhas: um amigo chega a querer quase devorar o outro, os dois vivem a vida inteira assim, e no entanto não conseguem separar-se. Não encontram nem meio de separar-se: tomado de capricho e rompendo a relação, o primeiro amigo adoece e talvez até morra se isso acontecer. Sei positivamente que Stiepan Trofímovitch várias vezes, e de quando em quando depois dos mais íntimos desabafos olho no olho com Varvara Pietrovna, à saída dela pulava subitamente no sofá e começava a bater com os punhos na parede. Isso acontecia sem a mínima alegoria, e de tal forma que uma vez chegou até a arrancar o reboco da parede. Talvez perguntem: como pude conhecer um detalhe tão sutil? Por que não, se eu mesmo fui testemunha? E se o próprio Stiepan Trofímovitch várias vezes chorou aos prantos no meu ombro, desenhando em cores vivas diante de mim o seu segredo? (E o que ele não andou falando nessas ocasiões!) Eis o que acontecia quase sempre depois de tais prantos: no dia seguinte já estava pronto a crucificar-se pela ingratidão; chamava-me às pressas à sua casa ou corria pessoalmente a mim unicamente para me comunicar que Varvara Pietrovna era um “anjo de honra e delicadeza e ele era absolutamente o contrário”. Ele não só corria para minha casa como descrevia reiteradamente tudo isso para ela nas cartas mais eloquentes e lhe confessava, sob sua assinatura completa, que não mais tarde que na véspera, por exemplo, ele contara a um estranho que ela o mantinha por vaidade, invejava a sabedoria e o talento dele; que o odiava e apenas temia exprimir o seu ódio claramente, no temor de que ele a deixasse e assim lhe prejudicasse a reputação literária; que por causa disso ele se desprezava e decidira morrer de morte violenta, mas esperava dela a última palavra que iria resolver tudo, etc., etc., tudo nesse gênero. Depois disso pode-se imaginar a que histeria chegavam às vezes as explosões nervosas dessa criança, a mais ingênua de todas as crianças cinquentenárias. Certa vez eu mesmo li uma dessas cartas, escrita depois de uma briga entre eles por uma causa insignificante, mas venenosa. Fiquei horrorizado e lhe implorei que não enviasse a carta. - Não posso... É mais honesto... um dever... eu morro se não confessar a ela tudo, tudo. A diferença entre os dois estava em que Varvara Pietrovna nunca enviaria semelhante carta. É verdade que ele gostava loucamente de escrever, escrevia-lhe mesmo vivendo com ela na mesma casa, e, em casos histéricos, duas cartas por dia. Sei ao certo que ela sempre lia essas cartas com a maior atenção, mesmo quando eram duas cartas ao dia, e, depois de ler, colocava-as numa gavetinha especial, datadas e classificadas; além disso, guardava-as em seu coração. Depois, mantendo o amigo o dia inteiro sem resposta, encontrava-se com ele como se nada houvesse acontecido, como se na véspera não tivesse ocorrido absolutamente nada de especial. Pouco a pouco ela o dispôs de tal forma que ele mesmo já não ousava por conta própria mencionar a véspera, limitando-se a olhá-la algum tempo nos olhos. Mas ela nada esquecia e às vezes ele esquecia rápido demais e, animado pela tranquilidade dela, não raro sorria no mesmo dia e fazia criancices com champanhe caso aparecessem amigos. Nesses instantes, com que veneno ela devia olhá-lo, mas ele não notava nada! Só uma semana, um mês ou até um semestre depois, em algum instante especial, lembrando-se involuntariamente de alguma expressão de tal carta, e em seguida de toda a carta, com todas as circunstâncias, de repente ele ardia de vergonha e chegava a atormentar-se de tal forma que adoecia de seus ataques de colerina. Esses ataques particulares que lhe aconteciam, como os de colerina (Forma atenuada do cólera. (N. do T.)), eram em alguns casos a saída comum dos seus abalos nervosos e uma extravagância um tanto curiosa de sua compleição. De fato, Varvara Pietrovna na certa e mui frequentemente o odiava; mas só uma coisa ele não notou nela até o fim - que acabou se tornando um filho para ela, sua criatura, até, pode-se dizer, o seu invento; que se tornou carne da carne dela, e ela o mantinha e o sustentava não apenas por “inveja do seu talento”. E como deve ela ter se sentido ofendida por semelhantes suposições! Escondia-se nela um amor insuportável por ele em meio a um ódio constante, ao ciúme e ao desprezo. Ela o protegia de cada grão de poeira, embalava-o durante vinte e dois anos, passava noites inteiras sem dormir de preocupação caso se tratasse da sua reputação de poeta, cientista, homem público. Ela o inventou e foi a primeira a acreditar em sua invenção. Ele era algo como um sonho... Mas por isso exigia dele realmente muito, às vezes até servilismo. Era rancorosa ao ponto do improvável. A propósito, vou contar duas anedotas. IV Certa vez, ainda sob os primeiros rumores sobre a libertação dos camponeses servos (Os rumores sobre as intenções do governo russo de libertar os camponeses se fizeram ouvir reiteradas vezes na sociedade no início dos anos quarenta. A reforma, porém, só vivia em 1861. (N. da E.)), quando toda a Rússia de repente tomou-se de júbilo e esteve a ponto de renascer inteira, Varvara Pietrovna recebeu a visita de um barão chegado de Petersburgo, homem das mais altas relações e muito familiarizado com o assunto. Varvara Pietrovna tinha extraordinário apreço a semelhantes visitas, porque suas ligações na alta sociedade estavam se enfraquecendo cada vez mais após a morte do marido e por fim cessaram inteiramente. O barão passou uma hora em casa dela e tomou chá. Não havia mais ninguém, porém Varvara Pietrovna convidou Stiepan Trofímovitch e o apresentou. Já antes o barão até ouvira falar alguma coisa a respeito dele ou fingiu que tivesse ouvido, porém durante o chá pouco se dirigiu a ele. É claro que Stiepan Trofímovitch não podia deixar de fazer boa figura, e além do mais as suas maneiras eram as mais elegantes. Embora, parece, não fosse de origem elevada, aconteceu de ser educado desde tenra idade em uma casa nobre, logo decente, de Moscou; falava francês como um parisiense. Desse modo, o barão deveria compreender à primeira vista que espécie de gente cercava Varvara Pietrovna mesmo em sua solidão provinciana. Entretanto não foi o que aconteceu. Quando o barão confirmou positivamente a absoluta fidedignidade dos primeiros rumores sobre a grande reforma que acabavam de se espalhar, Stiepan Trofímovitch de repente não se conteve e gritou “hurra!”, e até fez um gesto de mão que representava êxtase. Deu um gritinho baixo e até elegante; o êxtase talvez tenha sido até premeditado e o gesto proprositadamente estudado diante do espelho, meia hora antes do chá; mas alguma coisa não lhe deve ter saído bem, de sorte que o barão se permitiu sorrir levemente, embora no mesmo instante tenha emitido de modo extraordinariamente cortês uma frase sobre o enternecimento geral e devido de todos os corações russos em face do grande acontecimento. Partiu logo em seguida, e ao partir não se esqueceu de estender dois dedos também a Stiepan Trofímovitch. Ao voltar ao salão, Varvara Pietrovna inicialmente ficou uns três minutos calada, como se procurasse alguma coisa sobre a mesa; mas, súbito, voltou-se para Stiepan Trofímovitch e, pálida, com brilho nos olhos, pronunciou num murmúrio: - Nunca vou esquecer essa sua atitude! No dia seguinte, ela encontrou o amigo como se nada houvesse acontecido; nunca mencionou o ocorrido. Mas treze anos depois, em um momento trágico, lembrou-lhe e o censurou, e igualmente empalideceu como treze anos antes, quando o censurara pela primeira vez. Em toda a sua vida só duas vezes ela lhe disse: “Nunca vou esquecer essa sua atitude!”. O caso do barão já foi o segundo;

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