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OS AGENCIAMENTOS DA MEMóRIA POLÍTICA NA AMÉRICA LATINA Javier Alejandro Lifschitz PDF

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OS AGENCIAMENTOS DA MEMóRIA POLÍTICA NA AMÉRICA LATINA Javier Alejandro Lifschitz Introdução e televisiva. Mas essa mudança também se expres- sou na emergência de práticas e agentes, como as O termo “memória política” remete à ideia de vítimas, os testemunhos, os movimentos de direi- que todos os povos têm diferentes graus de memó- tos humanos, as comissões da justiça e verdade e ria em relação aos acontecimentos políticos vivi- os suportes materiais da memória, a exemplo de mo- dos. Existiriam, assim, povos com muita, pouca ou numentos às vítimas do terrorismo do Estado, me- sem memória política. No entanto, a memória po- moriais, eventos, livros, filmes, intervenções artís- lítica da qual falamos aqui tem pouca relação com ticas, centros de memória e outros, que no seu essa representação. Referimo-nos a ela como um conjunto sugerem a conformação de um campo campo de práticas cuja emergência estaria associa- específico, no sentido dado por Bordieu (1983), da a processos políticos que ocorreram na segunda que se diferencia tanto da memória social como do metade do século XX, como o fim das ditaduras próprio campo político. militares na América Latina, o apartheid na África Nas suas formulações clássicas sobre a memória do Sul e a queda do Muro de Berlim (Pollok, social, Maurice Halbwachs define-a como um fe- 1992; Huyssen, 2001). Durante esse período, hou- nômeno sociológico que deve ser distinguido tanto ve uma verdadeira virada em direção ao tema da da memória individual como da memória histórica. memória, que adquiriu expressão numa diversida- A memória social forma-se a partir de experiências de de registros, como a produção cinematográfica vividas por grupos sociais, enquanto a memória histórica é um registro textual produzido pelo po- Artigo recebido em 18/05/2012 Aprovado em 07/02/2014 der. A memória social articula-se com a oralidade, RBCS Vol. 29 n° 85 junho/2014 Anpocs85_AF3f.indd 145 8/1/14 12:46 PM 146 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 29 N° 85 com a pluralidade e com a sociedade civil; a memó- ser consideradas obras inaugurais. Ainda que mui- ria histórica, com a textualidade, com a unicidade tas de suas páginas sejam dedicadas a um tipo de e com o Estado. Através da memória, Halbwachs fenomenologia dos atos da memória, essas obras fala, em chave durkheimiana, do laço social e da estabelecem algumas distinções conceituais que to- espontaneidade, em contraposição ao poder estatal, davia são referência. Para o autor, a memória social que, de certa forma, congela a memória social. é um fenômeno sociológico que deve ser diferencia- O Estado, no entanto, como observaram pos- do tanto da memoria individual como da memória teriormente Pierre Nora (1993) (1997), Benedict histórica, que é um registro textual sobre aconteci- Anderson e outros autores, desempenhou um papel mentos nacionais, porque, a diferença desta, baseia- ativo na construção das memórias nacionais. A me- -se em experiências vividas. O próprio conceito de mória nacional não foi o resultado da soma de nar- memória histórica, aponta o autor, é um contras- rativas espontâneas sobre o passado, mas uma cons- senso, visto que associa termos que, na realidade, trução que teve o Estado como mentor. Já não se se opõem porque a memória social é um registro trata da memória de grupos, senão da memória in- múltiplo e em permanente deslocamento Impossí- tencionalmente construída, que remete à esfera pú- vel de ser fixada num só relato, circula através da blica, da forma como esta é entendida na teoria da oralidade entre diferentes grupos sociais que, ao ação comunicativa. Num período mais recente, e estabelecer novas interações entre si, transformam neste artigo, abordaremos mais especificamente a ao mesmo tempo os pontos de vista sobre o pas- América Latina depois do período das ditaduras sado. Ela retém do passado aquilo que permanece militares, quando a questão da memória política na vida da sociedade, sendo sempre local e parcial, tomou uma nova direção. Acontecimentos atrela- enquanto a memória história está condenada a ser dos ao terrorismo de Estado e ao desaparecimento “artificial”, porque, de maneira manifesta e meto- forçado de cidadãos provocaram a emergência de dologicamente condicionada, deve manter-se dis- novos agentes no espaço público, como as Mães da tante dos impulsos vitais que constituem a fonte Praça de Maio e os movimentos de direitos huma- das memórias coletivas. Deve ser imparcial sem nos que, de diversas formas, se contrapunham aos privilegiar o ponto de vista de nenhum grupo real, referentes da memória oficial. A memória política e isto constitui, segundo o autor, uma verdadeira tornava-se um tema de conflito que convocava limitação em relação à memória social, que não agentes, práticas e formas de luta específicas, os são meros registros do passado, mas uma forma quais, no seu conjunto, foram configurando um de laço social que se recria permanentemente. campo de disputas singular com relação às conven- Como observa Paul Ricoeur (2007, p. 133), “é na ções e parâmetros do campo politico. Este artigo lembrança onde Halbwachs procura e encontra a aborda a genealogia desse campo da memoria poli- marca do social”. tica. Divide-se em três partes. Na primeira, situa- O tema do laço social estava muito presente na mos a memória social conforme a perspectiva de sociologia francesa do século XIX, especialmente Halbwachs; na segunda, abordamos a questão da em Durkheim, que sem dúvida o influenciou na memoria nacional a partir de temas como esfera investigação sobre diferentes formas de agregação pública e a ação estratégica. Por fim, discutimos a social (cf. Sepúlveda, 2003). memória política como um campo autônomo, con- Tinha sido abordado em diversas obras, espe- siderando principalmente o contexto pós-ditaduras cialmente na Divisão do trabalho social (2001), a na América Latina. partir do conceito de solidariedade. Nesse livro, o autor ressalta que os diferentes tipos de agregação social – ou de solidariedade – se estruturam prin- Memória e vínculo social cipalmente no âmbito do trabalho. As formas de solidariedade, sejam mecânicas ou orgânicas, têm Les cadres sociaux de la mémoire (1925) e La origem nos modos de trabalho – e defende a ideia mémoire collective (1950),1 de Halbwachs, podem de que mesmo a divisão do trabalho (considerada Anpocs85_AF3f.indd 146 8/1/14 12:46 PM OS AGENCIAMENTOS DA MEMÓRIA POLÍTICA NA AMÉRICA LATINA 147 por outros autores como uma forma de desagrega- De um ponto de vista fatual ou projetivo, a ção social) produzia solidariedade. No entanto, isto memória estabelece laços sociais e, como esta ques- não implicava dizer que o trabalho sempre geraria tão se articulava geralmente com o tema da ordem laços sociais. O problema que Durkheim queria en- social, diversos autores inscrevem tanto Halbwachs frentar era precisamente o fato de nas sociedades como Durkheim no quadro dos pensadores sobre modernas haver um déficit de solidariedade, o qual a coesão social (cf. Sepúlveda, 2003). A memória era expresso pelo cenário político e cultural do fim social, assim como a solidariedade, era antagônica do século XIX, com os conflitos que envolviam sin- ao conflito. Ambos pensavam a criação da ordem dicatos, classes e ideologias políticas. de baixo para cima, como uma agregação produzida Mas independentemente dos pressupostos pela própria capilaridade do social, mas no caso da políticos, o que se tenta destacar é se Durkheim memória havia algo de singular: ela é um fenômeno encontrou nas formas de trabalho um lugar pri- efêmero e espontâneo. Como observa Halbwachs, vilegiado para pensar a agregação social e a afeti- os indivíduos e os grupos deslocam-se sempre entre vidade. Halbwachs parece tê-lo encontrado numa diferentes marcos de memória, através do pensa- dimensão menos instrumental da vida social: nos mento ou da interação. Podemos representar o pas- encontros coloquiais nos quais se fala sobre o pas- sado colocando-nos no espaço do nosso âmbito fa- sado. Isto significa que, ainda que o âmbito de in- miliar, escolar, ou em outros. Essas deslocações não vestigação tenha sido outro, para ambos os autores produzem apenas cruzamentos de narrações, mas a questão central era onde e como se estabeleciam também novos vínculos que se caracterizam por sua os laços sociais, e, nesse sentido, pode se dizer que espontaneidade. Não existe determinismo externo a memória social é um equivalente da solidariedade. que leve a recordar numa ou noutra direção. Contudo, as preocupações de Halbwachs pare- No entanto, o autor também considera a possi- cem ser mais nosológicas que políticas. No contex- bilidade de influência das “correntes do pensamen- to acadêmico da época, a memória era um objeto to coletivo”, que se “impõem aos sujeitos desde o de investigação da psicologia, e a intenção do au- exterior”. Portanto, pareceria existir em Durkheim tor é desloca-la em direção a um saber sociológico. uma certa ambiguidade, que Ricoeur formula da Nesse contexto, ele defende a ideia da não existên- seguinte forma:. “O próprio ato de colocar-se num cia de uma memória puramente individual. O que grupo ou deslocar-se de grupo em grupo é espon- é, portanto, a memória social? Em primeiro lugar, tâneo ou resulta de uma casualidade objetiva que para o autor, ela não é uma gestalt; não é um con- recai nos quadros da memória que são externos junto de imagens que representam o coletivo, em aos sujeitos, no sentido durkheimiano?” (Ricouer, contraposição a uma memória individual que esta- 2008, p. 132). A questão é sem dúvida debatível, ria representada em imagens isoladas. A memória mas, subscrevendo a Ricoeur, pensamos que o traço social não é definida como um registro imagético no dominante da memória social é a espontaneidade: qual se poderiam distinguir memórias intensamen- “O próprio ato de situar-se num grupo e deslocar- te habitadas de memórias desérticas. A premissa de -se de grupo em grupo e assumir o ‘ponto de vis- Halbwachs é a de que o que define a memória so- ta’ de um grupo, não supõe, por si, que se trata de cial é da ordem das relações sociais: ela é um tipo algo espontâneo que se desdobra em si mesmo? Se de vínculo, uma atração desejosa que os indivíduos fosse de outra forma, a sociedade não teria atores estabelecem quando falam sobre os seus passados. É sociais.” (Idem, ibidem). Essa perspectiva é reforça- social porque o ato de recordar é sempre realizado da se considerarmos que a contraposição entre me- com outros, tanto no sentido da interação fatual mória social e memória histórica fundamenta-se no entre pessoas que viveram experiências conjuntas argumento de que a primeira seria espontânea, en- e que, ao encontrarem-se, espontaneamente as re- quanto a segunda, um processo orientado. Assim, cordam, como num sentido virtual: para recordar, poderíamos sintetizar as conceções de Halbwachs colocamo-nos sempre na perspectiva de um grupo, sobre a memória social: ainda que este já não esteja presente. Anpocs85_AF3f.indd 147 8/1/14 12:46 PM 148 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 29 N° 85 a. A memória social não é uma gestalt. Não é pelo Para compreender o que está em causa no cará- facto de remeter para imagens sobre o coletivo ter intencional da memória política devemos con- que são memórias sociais. siderar que a memória é uma ação mediada pela b. A memória social cria vínculos sociais ao mes- linguagem. Isto justifica que nos desloquemos da mo tempo que estabelece diferentes “pontos de teoria da ação social, num sentido durkheimiano, vista” sobre o passado. em direção à teoria da ação comunicativa (Haber- c. Os marcos de memória, como as deslocações mas, 1997). Não nos vamos deter aqui nas distintas sociais que os geram, são espontâneos. A memó- interpretações e desdobramentos da teoria da ação ria social não é intencional. comunicativa desenvolvida por Habermas, mas apenas em alguns conceitos para poder explicitar Com base nesses postulados, discutimos na melhor a ideia de intencionalidade. sequência se é de fato pertinente referir-se a um Tanto os atos de fala como as ações não lin- campo da memória política, e qual seria a sua es- guísticas podem ser consideradas atividades desti- pecificidade. nadas a uma finalidade, cuja intencionalidade, no entanto, deve ser interpretada em cada caso. Os atos de fala situam-se num nível discursivo, e a sua in- Memória política e esfera pública tencionalidade residiria em fazer compreender (ação de compreensão) os significados expressos e em al- Comecemos com o postulado de que a memó- cançar o reconhecimento do dito, como verdadeiro ria social não representa um gênero de imagens sobre ou crível. Nas ações não linguísticas, que se situam o passado. Em princípio, essa premissa também seria no plano da ação social (atividade dirigida para um aplicável para a memória política: não são as imagens fim), a intencionalidade consistiria na tentativa de de fatos reconhecidos socialmente como sendo polí- provocar uma intervenção no mundo objetivo; ne- ticos que constituem seu campo; porque ela não é las, os atores sociais procuram interferir no mun- um tipo de representação sobre o passado. Portanto, do e, por isso, mais do que compreender, a questão a questão não consiste em tentar deslindar conteú- é exercer influência sobre os outros ou confrontar-se dos mais “sociais” de conteúdos mais “políticos”. Se com eles para alcançar uma finalidade (idem, p. 67). existem diferenças, elas não residem nos conteúdos Cabe ressaltar que ambos tipos de ação encon- representados, e afirmamos isso não pela inexistência tram-se sempre articulados, mas, dependendo do de limites muito precisos que permitam diferenciar mecanismo coordenador da ação, prevalecerá um as representações do social das do político. ou outro tipo de intencionalidade. Quando a coor- Vimos que a memória social não se define pelo denação é dada pela ação comunicativa, fortalece- tipo de representação, mas pelas interações que os -se a força consensual do entendimento linguístico, sujeitos estabelecem através delas, e poderíamos enquanto que quando são as ações sociais as que dizer o mesmo em relação à memória política. As coordenam, privilegia-se a atuação estratégica. Em narrativas de memórias são um tipo de vínculo síntese, a ação comunicativa está pautada no enten- entre sujeitos e grupos, e, sob uma perspectiva so- dimento e no consenso, enquanto a ação estratégi- ciológica, esta é a dimensão realmente significati- ca reside nas possibilidades de afetar ou influenciar va. Por isso, se de fato existe uma distinção entre outros atores. a memória social e a memória política, ela está no Passemos à formulação de algumas possíveis tipo de vínculo social que ambas estabelecem. Se a analogias entre as formas de memória e os diferen- memória social remete para a configuração de laços tes tipos de ação. Se existe uma característica nos sociais espontâneos, que tipo de vínculo social sus- estudos de memória social, esta é, sem dúvida, a tenta a memória política? A nossa hipótese é a de de relacionar a memória com a formação de co- que se a memória social está associada a vínculos munidades afetivas e de entendimento. Os grupos sociais espontâneos, a memória política está associa- de memória de Halbwachs são, como as ações de da a ações intencionais. compreensão de Habermas, comunidades linguís- Anpocs85_AF3f.indd 148 8/1/14 12:46 PM OS AGENCIAMENTOS DA MEMÓRIA POLÍTICA NA AMÉRICA LATINA 149 ticas intersubjetivamente partilhadas que não pro- formam-se entre os participantes uniões potenciais curam, em princípio, uma ação efetiva de interven- de diálogo ou de opinião. A esfera pública não é ção social. A memória social desloca-se de grupo uma instituição nem uma organização, pois não em grupo, mas não vai além do ato performativo; constitui uma estrutura normativa capaz de dife- portanto constituiria, de fato, um tipo de ação co- renciar competências e papéis sociais. Também não municativa. é um sistema, pois se caracteriza por ter “horizontes Já a memória política só adquire potência abertos, permeáveis e deslocáveis”. É, melhor di- quando entra na dimensão do sistema político ou zendo, “uma rede adequada para a comunicação de da esfera pública, porque o seu “outro”, o emissor/ conteúdos, tomada de posições e opiniões” (Idem, destinatário de sua mensagem, é sempre o poder. Já pp. 92-93) que envolve tanto o espaço publico não se trata de memórias espontâneas cuja finalida- como âmbitos considerados privados, mas nos de é a de serem compreendidas e reconhecidas quais interfere a mídia e as redes de comunicação como verídicas. O narrar da memória política pro- no sentido de provocar posicionamentos políticos. cura intervir no mundo social, confrontando a rea- Em suma, falar sobre memória política é reconhe- lidade jurídica, cultural e política que pretende si- cer intencionalidades estratégicas, e isso evidencia- lenciar a memória ou produzir outras versões do -se nos estudos sobre os processos de construção passado. A memória política é um tipo de ação es- das memórias nacionais. tratégica, mas aqui cabe uma exceção. Para Haber- mas, a atuação estratégica é uma forma debilitada de ação porque não condiz com o desenvolvimento A memória nacional como dimensão da de comunidades linguísticas e de consensos, um tema memória política fundamental na sua teoria da democracia. Sob essa perspectiva, só pelo acionar comunicativo os sujei- Vimos que para Halbwachs as principais dife- tos se submetem aos critérios racionais e públicos renças entre a memória social e a memória histó- de entendimento necessários para o fortalecimento da rica residiam no fato de a primeira ser constituída democracia (Habermas, 1997, p. 75). Nossa dis- por recordações vivas, comunicadas oralmente, e a cussão vai em outra direção. segunda, um relato distanciado e único que se fixa- Com a ideia de ação estratégica, queremos des- va num texto. A memória social remitia para gru- tacar que a memória política passa a existir quando pos e a memória histórica para a nação. O livro de indivíduos ou grupos a colocam, intencionalmente, história canônico utilizado nas escolas é a imagem na esfera pública. A finalidade desse tipo de ação sugerida pelo autor, para se referir à memória his- estratégica não é a compreensão ou o entendimen- tórica, que de forma distanciada registra os “princi- to, mas o confronto e a rivalidade, ou a influência e pais” acontecimentos da nação. Ao considerar essa a sujeição. Portanto, se existe um campo específico memória histórica necessária para a transmissão do da memória política, ele articula-se com as diferen- passado entre as gerações, esse tipo de registro tor- tes modalidades nas quais o passado se instaura no nava opaca a vivacidade da memória espontânea de sistema político e na esfera pública. Isso não signifi- grupos sociais, a qual era o verdadeiro objeto das ca um retorno à antiga dicotomia entre o público e suas reflexões. o privado. O próprio Habermas já se encarregou de No século XX, o tema da memória nacional vai mostrar que, na modernidade, essa fronteira foi se ser retomado por outros autores, mas a problemáti- transformando, originando novos espaços sociais, ca será outra. Pierre Nora estabelece, na introdução como o da esfera pública. de Lieux de mémoire (Nora, 1993),2 uma espécie de O autor define a esfera pública como um es- programa inaugural em que convergem memória, paço social em que os fluxos comunicacionais se história e nação. Identifica um primeiro momen- condensam em opiniões públicas que exercem in- to na República Francesa, quando esses três regis- fluência na circulação do poder político (Idem, p. tros teriam sido intercambiáveis e simbióticos; um 92). Nela, os participantes “assumem posições” e segundo momento, situado a partir da década de Anpocs85_AF3f.indd 149 8/1/14 12:46 PM 150 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 29 N° 85 1930, quando a memória social (entendida, assim Embora o eixo dessa obra seja a emergência dos como por Halbwachs, como a memória viva de gru- nacionalismos europeus do século XVIII e, princi- pos) teria sucumbido ante a dinâmica acelerada da palmente, a importância que tiveram a imprensa e mudança social: o desaparecimento da memória no a atividade editorial conforme normas capitalistas fogo da história. para a consolidação das nações, na segunda edição Nesse novo contexto, no qual a memória é do livro, em 1991, o autor incorpora um capítulo absorvida pelo Estado, surgiria um novo regime dedicado ao papel que os estados colonizadores ti- de memória, que Nora designa como “lugares de veram na construção de uma memória para as co- memória”, no qual a memória já não circula de lônias. Nesse novo capítulo, intitulado “Os censos, maneira espontânea entre os grupos pois perdeu os mapas e os museus”, Anderson analisa o uso que vitalidade, e, no seu lugar, o Estado instaura luga- o poder colonial fez desses dispositivos como for- res de memória, como os arquivos, os museus, as ma de legitimação dos seus domínios: “uma abs- celebrações, as homenagens e outros, que terão um trata quantificação de pessoas, feita pelo censo, a papel importante nas estratégias de legitimação dos logoização do espaço político devida aos mapas e a estados nacionais: a memória torna-se “voluntária ecuménica e profana genealogização do museu fize- e deliberada, vivida como um dever e não mais es- ram contribuições entrelaçadas” (Idem, p. 228). Os pontânea [...] a memória entrou no repertório dos mapas históricos foram construídos nas colônias deveres da sociedade” (idem, p. 15) como verdadeiras “genealogias espaciais do poder” A ideia de regimes de memória indica uma e, com a marca arqueológica, sítios antigos foram nova trajetória teórica dos estudos sobre o tema. A desenterrados, medidos, classificados, fotografados, questão não se remete, então, aos vínculos sociais analisados, reconstruídos e, por fim, exibidos como que a memória cria, mas a uma “construção volun- materializações de uma memória política colonial, tária”, à “institucionalização da memória” (Ricouer, cujo papel foi importante nos planos pedagógico 2007, p. 414). Trata-se de analisar intencionalida- e ideológico. Como observa o autor, o auge da ar- des estratégicas e de identificar agentes. Diluída queologia nas colônias coincidiu com as discussões a memória social, é o Estado que assume a tarefa sobre a necessidade de uma política educativa co- estratégica de construir lugares de memória e, nos lonial e, de fato, os descobrimentos arqueológicos termos de Le Goff, nesses lugares não encontramos eram seguidos de edições impressas patrocinadas a memória coletiva. Por detrás dos “lugares encon- pelo Estado e utilizadas como material educativo. tramos lugares”, ocupados pelo Estado ou por me- Os monumentos arqueológicos, descobertos e re- diadores sociais, que constroem esses espaços em construídos pelos agentes da metrópole eram tam- função dos usos políticos que fazem da memória bém testemunho do declínio dos antigos impérios (Le Goff, 1990, p. 473) indígenas. Nesse sentido operavam, segundo o au- A construção de memórias nacionais pressu- tor, como um discurso ideológico que interpelava põe agenciamentos estratégicos, que Nora analisa as populações indígenas: “A vossa mesma presença principalmente no plano dos lugares, ou seja, das mostra que sempre, ou, desde há muito tempo, fo- diferentes formas de sua materialização na esfera ram incapazes de alcançar: a grandeza de se auto- pública. Se, para Halbwachs, a memória histó- governarem” (Idem, p. 253). Assim, diferentemente rica era fundamentalmente texto, a temática dos dos lugares de Nora, que expressam a construção lugares amplia as referências3 e abre uma nova de uma memória nacional glorificada e triunfante, percepção sobre o fato de que a diversificação dos em Anderson as memórias eram de povos subme- suportes é um tema consubstancial no campo da tidos e sujeitos a ações estratégicas marcadas pelo memória política. colonialismo. Outros autores também abordaram o tema Nesse mesmo registro da memória política em da memória e da nação, mas sob a perspectiva da contextos coloniais, podemos citar ainda o livro questão colonial – cabendo aqui citar o livro Comu- Invenção da tradição, de Eric Hobsbawm (2002), nidades imaginadas, de Benedict Anderson (1997). que trata da invenção, ou recriação, de memórias Anpocs85_AF3f.indd 150 8/1/14 12:46 PM OS AGENCIAMENTOS DA MEMÓRIA POLÍTICA NA AMÉRICA LATINA 151 locais com o objetivo estratégico de legitimar ins- ções positivas da memória como forma de coesão tituições e padrões sociais nativos compatíveis com social, mas nos conflitos e disputas entre memórias. as necessidades da metrópole. Como no caso do ca- pítulo dedicado às “invenções inglesas de tradições Ao privilegiar a análise dos excluídos, dos margi- africanas para os africanos” (Ranger, 2000), esses nalizados e das minorias, a história oral ressaltou historiadores ingleses querem mostrar que a memó- a importância das memórias subterrâneas que, ria nacional não é apenas construída, mas também como parte integrante das culturas minoritárias manipulada, e que essa manipulação pode não ser e dominadas, se opõem à ”memória oficial” e contraditória com a manutenção do rigor ritual. neste caso à memória nacional [...] A memória Assim, podemos dizer que tanto o processo de entra em disputa. Os objetos de investigação são construção de memórias nacionais como o de me- eleitos, de preferência, onde existe conflito entre mórias coloniais falam de memórias intencionais memórias” (Idem, p. 18). que têm o Estado como agente estratégico. Isso também se tornou patente na América Latina, já Essas verdadeiras “batalhas pela memória” te- que as ditaduras se empenharam em construi-las riam emergido com o fim das ditaduras militares estrategicamente, apoiadas em suportes mediáticos na América latina, do apartheid na África do Sul, que invariavelmente questionavam o caráter des- da desagregação da União Soviética e de outras re- viante e desestabilizador dos movimentos popula- giões, nas quais emergiram memórias sobre confli- res. Além disso, aniquilando indivíduos e grupos tos étnicos, políticos ou culturais que provocaram insurgentes, aniquilavam também outras memórias problemáticas específicas no campo da memória sobre esse passado que puderam desafiar as “re- política. Portanto, não era apenas uma questão de construções” da memória nacional. Nesse sentido, inversão de perspectivas, mas também da verdadei- podemos considerar as memórias nacionais uma ra configuração de um novo campo e, ainda que o forma de capital simbólico singular, constituído autor não trate o tema dessa maneira, suas indaga- por visões legitimadas sobre o passado e na posse ções condizem com tal hipótese. monopólica do Estado. Tal monopólio, porém, não Em diversos textos, Pollak destacou a impor- é intransponível; Manteve-se sob certas condições, tância de analisar as condições que permitem às como no período de formação dos estados nacio- memórias invadir o espaço público. Analisando o nais ou durante as ditaduras militares. Fora isso, caso da União Soviética, por exemplo, observava o que existem são lutas por esse capital simbólico. que o XX Congresso do Partido Comunista, oca- Mas cabe destacar que só em alguns casos nacionais sião em que Nikita Kruschev denunciou pela pri- essas lutas pela memória consolidaram novos agen- meira vez os crimes do stalinismo, não provocou tes e práticas, dando lugar ao que seria um campo uma irrupção de memórias políticas antioficiais. da memória política com relativa autonomia. Porém, trinta anos depois, no âmbito da glasnost e da perestroika, a proposta de construção de um monumento em homenagem às vítimas do stali- O campo da memória política nismo motivou um amplo debate nacional. Outro exemplo foi a irrupção tardia de memórias sobre Num artigo publicado no Brasil no fim da dé- a colonização da Argélia. Seria a partir da ação de cada de 1980, Michael Pollak (1989) observava que grupos que não viveram os acontecimentos, como existia uma verdadeira inversão de perspectivas nos a segunda geração de pieds noirs na França (que estudos sobre a memória social. Estava a ser privile- sequer nasceu na Argélia), que surgirá um movi- giada a memória dos excluídos, dos marginalizados, mento anticolonialista cujas principais referências das minorias, de “memórias subterrâneas que de di- foram as memórias herdadas de outras gerações. ferentes formas confrontavam a memória oficial” Essas memórias subterrâneas passaram a exis- (Idem, p. 19). Segundo o autor, essa inversão con- tir a partir do momento de sua irrupção na esfera sistia em que a ênfase já não recaía tanto nas fun- pública, mas é de notar que essa passagem para a Anpocs85_AF3f.indd 151 8/1/14 12:46 PM 152 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 29 N° 85 ação depende de condições políticas objetivas que Políticas da memória e memória política podem tanto bloquear como facilitar a emergência de memórias. Como observara Lechner (1998) em Retomemos o tema das políticas de memória e um texto sobre a memória política no Chile depois a questão de se a memória política pode ser con- da ditadura de Pinochet, foi o Estado chileno quem siderada um campo autônomo. Bordieu (2003) o em grande parte determinou o que era dizível e in- define o campo como um espaço social com rela- dizível em termos da memória. Caberia, assim, a tiva autonomia, como um microcosmos da vida so- seguinte pergunta: a memória política é um campo cial que possui uma estrutura de relações objetivas relativamente autônomo ou é um mero reflexo do específicas. Em cada campo identifica agentes, um campo político? Regressaremos à questão. capital cultural e meios de produção simbólicos espe- Pollak (1990), embora considere essas políticas cíficos e lutas e relações de força pelo domínio do da memória o seu tema principal de reflexão são as campo cuja dinâmica também é singular. Mas um memórias que não entram na esfera pública – as cam po está sempre em articulação com sua exterio- memórias silenciadas. Em sua investigação pionei- ridade, e essas pressões também fazem parte de suas ra sobre os sobreviventes dos campos de concen- relações de força. Por isso, uma das questões que tração, ele constatou que as recordações do horror se apresentam no estudo de um campo é determi- foram transmitidas de pais para filhos, mas que nar a natureza das pressões externas e as formas em demorou muito tempo para que essas narrativas que se manifestam as resistências que caracterizam fossem transmitidas na esfera pública (idem). Isso a autonomia, ou seja, “os mecanismos que o mi- apenas ocorreu após décadas e foram poucos os que crocosmos aciona para libertar-se dessas imposições “quebraram o silêncio”. Como explicar o silêncio externas” (Idem, p. 22). de pessoas que foram submetidas a um plano mas- A questão é identificar como essas pressões ex- sivo de extermínio? A resposta de Pollak foi que o ternas se expressam conforme a lógica do próprio silêncio, principalmente no caso dos sobreviventes campo. Em outros termos, como “o campo refra- que tinham regressado à Alemanha, era uma forma ta, retraduzindo numa forma específica, as pressões de adaptação ao meio social. Para muitos era a úni- e as exigências externas” (Idem, ibidem). Assim, o ca forma de conviver com o fato de que a maioria grau de autonomia de um campo definir-se-ia em dos alemães tinha consentido com o extermínio função do seu poder de refração: quando mais au- de judeus, ciganos e homossexuais nos campos de tônomo, maior será o seu poder de refração, isto concentração. é, a capacidade de transfigurar essas imposições ex- O que o autor demonstrou foi que o não dito ternas. Inversamente, “a heteronomia de um cam- era, em realidade, um código de comunicação e, por- po manifesta-se, essencialmente, pelo fato de que tanto, podia ser interpretado. Como isso só era pos- as pressões exteriores, especialmente os problemas sível no âmbito da clínica, restava, sociologicamente políticos, se expressam ali de forma direta” (Idem, falando, indicar alguns parâmetros, os quais eram ibidem). Nesse sentido, existiriam campos mais au- verdadeiramente muito genéricos. Para Pollak, os tônomos que outros, e o campo da memória polí- silêncios eram a expressão de formas de resistência tica seria especialmente heterônomo em virtude da ante o excesso dos discursos oficiais, ou estratégias pressão que o campo político exerce. de espera, até que chegasse o momento propício No entanto, isso não nega a especificidade dos para que essas experiências trágicas pudessem ser agentes, dos meios de produção simbólicos e das lutas comunicadas: “O problema que se coloca a longo pela memória política. Comecemos pelos agentes. prazo para as memórias clandestinas e inaudíveis Todo campo tem agentes específicos e, na política, é o da sua transmissão intacta até ao dia em que são os partidos, os sindicatos e autoridades públicas possa aproveitar uma ocasião para invadir o espaço constituídas. Como considerar as testemunhas, que público e passar do não dito à contestação e reivin- tiveram e têm um papel central no julgamento aos dicação” (Idem, p. 24). militares que participaram da repressão e da desa- parição forçada de pessoas?; Em que campo deverí- Anpocs85_AF3f.indd 152 8/1/14 12:46 PM OS AGENCIAMENTOS DA MEMÓRIA POLÍTICA NA AMÉRICA LATINA 153 amos incluir os movimentos de direitos humanos, -os de atores profissionalizados, no sentido em que como as Mães da Praça de Maio, que nas suas dis- exerciam um trabalho de enquadramento dos discur- putas pela memória confrontaram o Estado e as sos em função de certas exigências de justificação, políticas de esquecimento? Como considerar essas coerência e credibilidade, necessárias para a legiti- lutas e problemáticas também específicas, como a mação desses discursos no espaço público (Idem, questão dos desaparecidos, as comissões de verdade e p. 25). O seu papel era evitar as contradições, o justiça ou os monumentos em memória das vítimas histrionismo e até relatos fantasiosos que poderiam da repressão? afetar a veracidade dos acontecimentos narrados. Esses agentes lutam pela memória e pela justi- Mas essa categoria de agentes, que recebeu diferen- ça e parecem diferenciar-se dos do campo político, tes denominações como empreendedores da memó- que lutam “pelo monopólio legitimado dos recur- ria (Jelin, 2002), agentes de memória, militantes da sos políticos objetivados” – como os ministérios, memória (Rousso, 1990), tinha um alcance de ação secretarias, cargos públicos, etc. (Idem). Também os muito mais amplo. A especificidade destes agentes agentes da memória emergem de acontecimentos era a de organizar a atuação de grupos ou movi- absolutamente singulares. As ditaduras da América mentos em torno à memória política, portanto Latina representaram uma ruptura de época, como não só exerciam funções de enquadramento co- a grande guerra, mas os testemunhos não emude- municativo, mas também de gestão, mobilização ceram apesar do medo e das ameaças e, já durante e organização. a transição democrática, demonstraram ser indis- pensáveis para a restauração de uma esfera pública [O empreendedor da memória] envolve-se pes- (Sarlo, 2006). soalmente no seu projeto mas também com- O testemunho – de torturas, assassínios e de- promete outros, gerando participação e uma saparecimentos – é um narrador implicado nos fei- tarefa organizada de caráter coletivo. [...] o tos que não persegue uma verdade exterior no mo- empreendedor é um gerador de projetos, de mento em que ela se enuncia. Trata-se de um novo novas ideias e expressões, de criatividade –mais ator político que opera nas fronteiras da política, do que repetições-. A noção remete também porque fala do Estado como planificador do hu- à existência de uma organização social ligada manamente execrável e por isso, ocupa o lugar da a um projeto de memória, que pode implicar enunciação dessa realidade que os agentes do campo hierarquias sociais, mecanismos de controlo e político tendem a transferir ao ocaso do tempo, que divisão de trabalho, sob o comando dos em- tudo apaga. Nas suas narrações em primeira pessoa, preendedores (Jelin, 2002, p. 48). trazem o horror ao cotidiano da cena política ao mesmo tempo que instauram o anacronismo. Não Esses agenciamentos estão diretamente rela- se poderia dizer o mesmo do agente político, que cionados com conflitos, com outros grupos sociais tem o futuro como marco da sua ação. O núcleo e com o Estado, em torno de um capital cultural do testemunho é o passado, mas o seu lugar de singular que chamamos de memória.4 No entanto, enunciação é o presente, e essa clivagem temporal a dimensão conflituosa da memória política tam- é inerente à sua condição de agente da memória bém inclui os próprios agentes, vítimas, familiares política. O anacronismo é o seu motivo de ser e a e militantes. Longe de serem monolíticos, esses sua vitalidade. agenciamentos não ocorrem sem tensões e confli- Mas os testemunhos, enquanto participantes tos internos. Mas entre os agentes da memória e os ativos da esfera pública partilham algumas cara- agentes do campo político também há diferenças terísticas com os agentes do campo político. Nos que foram menos contempladas pelos autores. Os seus estudos com os sobreviventes do Holocausto, agentes parecem ser análogos aos intelectuais orgâ- Pollak (1992) observava que os seus interlocutores nicos pelo seu papel organizativo e propositivo no geralmente eram pessoas que representavam insti- plano estratégico. Porém, os agentes da memória tuições ou eram indicados por estas. Denominou- não respondem necessariamente a essa lógica. Em Anpocs85_AF3f.indd 153 8/1/14 12:46 PM 154 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 29 N° 85 alguns casos, como no das Mães da Praça de Maio, res são o nosso momento de história nacional está presente a questão organizativa e estratégica; (Pollak,1992, p. 122). em outros, trata-se de ações “espontâneas” e, in- clusivamente, de ações individuais. Na Colômbia, Os lugares uniam a nação em torno de uma por exemplo, o Programa de Atenção às Vítimas do ilusão de eternidade. Nada mais distante dos pro- Conflito Armado, da Prefeitura de Medellín,5 regis- cessos recentes de monumentalização da memória trou mais de oitenta ações desse tipo entre home- (Schindel, 2009) presentes na América Latina, cuja nagens, exposições fotográficas, vídeos, campanhas, evidência se torna palpável na própria pluralida- obras de teatro, murais, obras efêmeras e outras, de de termos com os quais se tenta denominá-los: incentivadas por familiares, vizinhos etc. suportes materiais da memória, monumentos da me- Portanto, esses agenciamentos não são necessa- mória, contramonumentos, artefatos de memória, ma- riamente coletivos. A vivência de um único indiví- terialização da memória, entre outros. Na mesma duo pode constituir-se num agenciamento – como direção em que temos vindo a caracterizar o cam- no caso do Primo cujo relato sobre o Holocausto po da memória política, Schindel (Idem) observa impactou a esfera pública. Ainda o próprio prota- que a monumentalização da memória integra o que gonismo dos testemunhos sobre o período de ter- Hannah Arendt (1997) denominava de “o âmbito rorismo do Estado na América Latina mostra que a da ação”: iniciativas que põem algo em movimen- memória política é uma passagem à ação e que não to na esfera pública e cujos efeitos, imprevisíveis e necessariamente pressupõe a existência de institui- irreversíveis, criam as condições para a história fu- ções ou aparelhos de representação. tura. Trata-se de suportes materiais que remetem a lutas e conflitos, a genocídios ou a acontecimentos de violência política que causaram mortes ou de- Memória política e suportes materiais saparecimentos e que, ao identificar seus mentores ou executores, provocaram e continuam a provocar Vimos que Halbwachs inscrevia a memória debates e ameaças. Por isso, não são lugares de uni- histórica no registro textual dos manuais pedagó- ficação e de amálgama. Os novos lugares da me- gicos. Já os lugares de memória, aos quais se referia mória política confrontam memórias; expressam Nora, ampliavam as referências: a memória política memórias em conflito (Vezzetti, 2001). Em alguns da nação inscrevia-se também em monumentos, casos, os monumentos aos mortos ou desaparecidos bandeiras, homenagens, placas comemorativas, edi- por ditaduras ou conflitos armados foram constru- fícios históricos, bibliotecas, cemitérios, santuários, ídos pelo Estado; noutros, são iniciativas de gru- ou seja, uma lista extensa na qual o autor chegava pos. Mas, independentemente da característica dos a incluir ironicamente as “memórias portáteis, cujo agentes, invariavelmente o conflito se transfiere aos antecedente mais ilustre são as tábuas de Moisés” proprios monumentos. (Nora, 1993, p. 116). No entanto, o interesse de Na América Latina, um dos monumentos mais Nora não era mostrar a diversidade das formas de ex- significativos construídos pelo Estado, em termos pressão da memória nacional, mas sublinhar a sua da dimensão, é o Parque pela Paz Villa Grimaldi, unicidade: no Chile, implantado durante a gestão da ex-pre- sidente Michelle Bachelet e localizado no mesmo O interesse desse esboço de tipologia não está lugar em que, durante a ditadura de Pinochet, no seu rigor nem no seu caráter exaustivo. funcionava um dos oitenta centros de detenção e Tampouco na sua riqueza evocadora. Ela mos- tortura em Santiago. O edifício tinha sido vendi- tra que um fio invisível liga objetos sem uma do a uma empresa de construção que propunha relação evidente. [...] Há uma rede articulada construir um conjunto moderno de condomínios dessas identidades diferentes, uma organiza- naquele local. Essa ação adicionava-se a outras, ins- ção inconsciente da memória coletiva que nos tauradas pelo poder público, a fim de apagar ma- cabe tornar consciente de si mesma. Os luga- terialmente da cidade todo o vestígio do passado Anpocs85_AF3f.indd 154 8/1/14 12:46 PM

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O termo “memória política” remete à ideia de que todos os povos têm diferentes graus de memó- ria em relação aos acontecimentos políticos vivi-.
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