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O VALOR DOS POBRES: a aposta no dinheiro como mediação para o conflito social contemporâneo PDF

19 Pages·2015·0.23 MB·Portuguese
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Caderno CRH ISSN: 0103-4979 [email protected] Universidade Federal da Bahia Brasil de Santis Feltran, Gabriel O VALOR DOS POBRES: a aposta no dinheiro como mediação para o conflito social contemporâneo Caderno CRH, vol. 27, núm. 72, septiembre-diciembre, 2014, pp. 495-512 Universidade Federal da Bahia Salvador, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=347639244004 Como citar este artigo Número completo Sistema de Informação Científica Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto Gabriel de Santis Feltran O VALOR DOS POBRES: a aposta no dinheiro como Ê mediação para o confl ito social contemporâneo I S S O Gabriel de Santis Feltran* D No Brasil, as periferias são o centro de duas figurações recentes e dicotômicas: a da violência urbana que pede mais repressão e a do desenvolvimento social, que transformaria pobres em “Classe C”. Este ensaio argumenta que a representação da “violência urbana” retirou o centro da “questão social” con- temporânea dos “trabalhadores”, deslocando-o aos “marginais”. A derrocada do universalismo inscrito nesse deslocamento enseja um governo seletivo que recorta a população em distintos graus de “vulne- rabilidade” e níveis de “complexidade” da intervenção estatal; como efeito colateral, emergem distintos regimes normativos nas periferias – por exemplo: estatal, do “crime” e religioso – que embora estejam sempre em tensão, encontram coesão no fato de regularem mercados monetarizados. O dinheiro passa a mediar a relação entre os grupos recortados e suas formas de vida que, sob outras perspectivas – a lei ou a moral – estariam em alteridade radical; o consumo emerge como forma de vida comum e a expansão mercantil, aposta de todos, conecta mercados legais e ilegais, inclusive fomentando a violência urbana que pretensamente controlaria. PALAVRAS-CHAVE: Periferias. Violência. Desenvolvimento. Dinheiro. Valor. INTRODUÇÃO grafia brasileira especializada nesses grupos,2 recentemente suas vertentes pendularam entre Em São Paulo, Deus é uma nota de cem. argumentos tão consistentes, quanto divergen- Racionais MC’s, 2002 tes. De um lado, enfatizou-se a expansão da Nos últimos anos, foi intenso o debate cidadania, comprovada pela maior cobertura entre cientistas sociais que estudam a pobreza, das políticas e melhoria dos indicadores so- a “questão social” e as políticas voltadas para ciais (inclusive desigualdade de renda), mas a proteção social ou para a repressão da mar- também pela manutenção de marcos legais ginalidade, bem como a criminalidade e a vio- progressistas, consolidação da participação so- lência.1 Se nunca houve consenso na biblio- cial em conselhos, estabilidade da democracia 4 1 institucional, além da enorme expansão das 0 2 1 Refiro-me às discussões que travamos entre colegas e capacidades de consumo e crédito populares.3 ez. eesstsue deannstaeiso, ,a mcuijgaoss ied epiaarsc eniãroo ss dãoe ttrãaob amlhino hqause qeumanbatos aoms et./D ereqsu ídvoo cNoas Mquaerg aesm a,c oCmEMpa,n NhEamU-. CAEgBraRdAePç,o C aEoVs IpSe,s qNuEiCsaVdUo-, 2c iOda lduegsa rb rqausiel eoirsa ps,o basresism o ccuopmaori aam r enlaaç dãoe menoctrrea cpiao ber enzaas, 2, S 1 NACI, PAGU e GEVAC, além de Ernesto Isunza, Neiva desenvolvimento e cidadania, sempre foi tema central à 5 Vieira, Cibele Rizek, Carly Machado, Vera Telles, Adria- bibliografia especializada, seja a de influência marxista 5- 9 na Vianna, Daniel Hirata, Derek Pardue, Angelo Martins, (Kowarick, 1975; Oliveira, 1982), incluindo suas vertentes 4 Isabel Georges, Jacob Lima, Heitor Frugoli, Mariana Caval- gramsciana (Dagnino, 1994, 2002; Silva, 1993) e thompso- p. canti, Bela Feldman Bianco, Leonardo Sá e Mariana Cor- niana (Telles&Paoli, 2000; Sader, 1988), seja a mais cultu- 2, tMesa,r aielé Mmo dreel Dlea, nSiaellv Cadefoarï ,M Gaalbdroienla Kdeos es lNeri,c Poalatrsi cBka Luete Gs apleèlsa, raarleinstdat i(aDnuar (hTaemlle, s2, 020050;1 C) ael dheaibrear, m20a0si0a)n oau ( Zaa dluea irn, f2l0u0ê4n)c.ia n. 7 intensidade das trocas intelectuais desses últimos anos. 3 Exemplar dessa vertente é a intensa produção do Centro 27, de Estudos da Metrópole, dedicada a embasar, questionar, v. contrapor ou oferecer hipóteses alternativas, sempre am- r, * Doutor em Ciências Sociais. Professor do Departamen- paradas em pesquisa empírica e utilizando métodos que do to de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos vão da demografia à etnografia, uma série de argumentos va (UFSCar). Coordenador Científico do Centro de Estudos correntes na bibliografia sobre o tema das desigualdades al dfiaa sM Uetrrbóapnoalse d(CoE CME)B eR pAePs.q Auigsraaddoerç do oo N fúincalenoc idaem Eetnntoog rdaa- (qAurerse,t c2h0e1,0 2, 021041)2, ;p Koolíwticaarisc ks&ocMiaairsq u(Aesrr, e2tc0h1e1,; 2M0a1r0q; uMesa&r-- H, S Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo Bichir, 2011), relações de trabalho (Guimarães, 2009; CR (FAPESP), através do processo nº 2013/07616-7 (CEPID- 2012b), território, cidade e pobreza (Marques, 2012), para O CEM), bem como da bolsa de produtividade PQ2 do CNPq. além das estratégias estatais de governo do social (Feltran, RN Rodovia Washington Luis, km235. Cep: 13565-905. São 2011; 2012; Marques, 2014) e relações raciais (Guimarães, DE A Carlos – São Paulo – Brasil. [email protected] 2012a), entre diversos outros temas. C 495 O VALOR DOS POBRES: a aposta no dinheiro... De outro, denunciou-se o recrudescimento da vendedor ambulante nigeriano; de uma Agen- insegurança e a militarização da ordem urba- te Comunitária de Saúde evangélica a um pe- na, a criminalização da pobreza e sua instru- queno empreendedor do ramo de automóveis, mentalização pelos mercados imobiliários e de participante do Rotary Club; de um seguran- segurança privada, a ampliação do encarcera- ça privado “preto” de 60 anos, nordestino, a mento e a tendência à internação compulsória um presidiário “pardo” de 19, favelado; de um de usuários de drogas, bem como a incrimina- policial, um mecânico desempregado ou um ção do protesto social, atentados aos direitos dono de desmanches clandestinos. Sabemos, civis.4 Os mesmos fenômenos empíricos – por entretanto, que todos esses sujeitos poderiam, exemplo, os debates em torno de mudanças no hoje, morar em uma mesma rua num bairro Estatuto da Criança e do Adolescente, legaliza- considerado de periferia e, tomadas as catego- ção das drogas, ações afirmativas, funk osten- rias ocupacionais ou de renda, todos poderiam tação ou mesmo a queda de homicídios em São ser considerados “integrantes das classes tra- Paulo – podem ser tomados como indicadores balhadoras”. As perspectivas de vida de cada de diagnósticos dos mais aos menos otimistas, um, seus pertencimentos territoriais, familiares tendo por base a consolidação da democracia e religiosos, seus códigos de conduta e os pro- ou o desenvolvimento econômico. gramas sociais que chegam até eles, vindos de Sem dúvida, as perspectivas teóricas, os ONGs, governos ou igrejas, bem como os tipos locais de observação e métodos empregados de inscrição nos mercados e os modos como a em cada vertente analítica conduzem a parte “violência urbana” toca suas vidas, sendo por das divergências em pauta, no mais das vezes eles administrada, são muito divergentes. muito saudáveis ao amadurecimento do de- Participando de uma série de debates bate. Entretanto, sugiro que uma das causas sobre as periferias, os pobres, a violência, os centrais desse desentendimento é a demasiada movimentos sociais ou as transformações ur- agregação analítica, que pressupõe homoge- banas nos últimos anos, dei-me conta de que neidade empírica ainda que afirmemos o con- nossos argumentos, vindos de diferentes áreas trário, que categorias como “pobreza”, “perife- e enfoques são, quase sempre, baseados em re- ria” ou “classes populares” carregam consigo. presentações totalizantes sobre a “periferia” ou Essas palavras abrangem hoje, sem nos darmos a “pobreza”. Mais recentemente, tenho perce- conta, da vida de um catador de material reci- bido que quase sempre tomamos uma imagem 4 1 0 clável à de um taxista; de uma travesti que faz particular – a do integrante do Primeiro Coman- 2 ez. programa na rua a um pedreiro com três carros do da Capital – PCC, do usuário de crack, do D et./ na garagem; de meninas do interior trabalhan- presidiário, ou a das famílias endividadas que S 2, do no Hooter’s para pagar faculdade na capital compram carros ou apartamentos da MRV En- 1 5 a um estudante secundarista cumprindo Liber- genharia, financiados pela Caixa – como a par- 5- 9 4 dade Assistida; de uma ingressante por Ação te que representaria o todo das periferias, suas p. 2, Afirmativa em uma boa universidade pública tendências violentas ou de inserção mercantil. 7 n. a um morador de rua, ex-presidiário e usuário Este artigo não toma como pressuposto 7, radical de crack; de um interno de Comunida- da análise, mas como objeto de reflexão esse 2 v. de Terapêutica que busca livrar-se da cocaína modo totalizante e quase sempre dicotômico r, o d a um operário têxtil boliviano, quando não um de perceber os pobres como recortados entre a v al as perspectivas da “violência urbana” e do S H, 4v eDirea m(2o0d0o7s) ;d Cisatbinatnoess,, TGeelloersg&eCs,a Rbaizneeks, (&2 0T0e6ll)e; sR (i2z0ek1&1)O oliu- “desenvolvimento econômico”. Assim, escre- R C Vieira&Feltran (2013), além da produção recente do NE- vo a partir da minha experiência situada, ao O CVU-UFRJ, do CEVIS-IESP/UERJ ou do Núcleo de Etno- RN grafias Urbanas do CEBRAP, sobretudo Rui, 2012; Fiore, mesmo tempo intelectual e política, vivida DE 2013; Malvasi, 2012, são exemplares dessa vertente da CA bibliografia. nos últimos anos em inúmeros debates sobre 496 Gabriel de Santis Feltran as “periferias” – sigo utilizando o termo como por todos, centrada na expansão do consumo. uma representação a compreender. A hetero- Se são figurados como vivendo em universos geneidade dos setores populares e os recortes morais distintos, trabalhadores e bandidos tro- populacionais neles produzidos pelos progra- cam bens e serviços monetarizados entre si, mas sociais, pelas igrejas, pelo “mundo do cri- na medida em que os mercados que operam me”, são aqui pontos de partida da reflexão. encontram-se profundamente vinculados; po- A minha pesquisa nas periferias de São Paulo, liciais e traficantes também têm seus acertos, portanto, não é sua única fonte de dados; a et- e só podem ser financeiros, para que o tráfi- nografia (tradução de uma experiência vivida co possa operar com benefício para ambos; em texto) segue sendo, entretanto, o modo de playboys e manos adoram as mesmas motos conhecimento que a embasa. e carros, submetendo-se a inúmeras relações A argumentação pressupõe fronteiras diretas nas distintas posições dos mercados de tensas entre setores populacionais das “perife- trabalho e consumo que ocupam. Todos res- rias”, classificados como “Classe C” ou “mar- peitam a riqueza como signo de status. O di- ginais”, mas, sobretudo, entre eles e grupos nheiro é objetivamente elevado ao estatuto de sociais mais abastados (entendidos por todos forma mediadora entre grupos populacionais esses como “playboys”, “madames” ou “ba- em conflito, suplantando em muito a legitimi- canas”). São essas as duas linhas de conflito dade da lei e da moral, que invariavelmente os social que me interessa estudar, na base dos afastariam. recortes populacionais. Os modos de gover- Esquadrinhar a “população” e essencia- no desse conflito, que produz ordem social e lizar os recortes produzidos, objetivando-os, urbana, tornam-se então objetos privilegiados seria a função primeira da maquinaria de go- para a análise. Como hipótese, penso que hoje verno; a partir dessa classificação, pode-se pro- o conflito social não seria apenas mediado pe- duzir valoração seletiva e desigual de recortes los valores cristãos, pilar da coesão entre de- populacionais produzidos. O valor atribuído a siguais no Brasil, ou pela ascensão do direito cada recorte, devidamente objetivado nessas como mediador privilegiado (a lei, a ordem, a classificações, pode, em seguida, ser moneta- cidadania); tampouco seria redimido apenas rizado (Simmel, 1900).5 Lógica de mercado, no coração da lógica punitiva, exemplar do en- portanto – assim se faz com o solo urbano, que carceramento massivo e da criminalização da se recortam os “nichos de mercado”; assim 4 1 pobreza que tenta assujeitar à força os descon- também se deve agora recortar as populações, 0 2 tentes. As estratégias governamentais contem- tornadas ao mesmo tempo “público-alvo” de ez. D porâneas parecem estar baseadas, justamente, marqueteiros e programas de governo.6 Daí o et./ S na variação situacional de um repertório de nexo constitutivo entre o governo seletivo da 2, 1 regimes de governo realmente existentes e re- pobreza e o desenvolvimento mercantil, daí 5 5- 9 lativamente autônomos (Silva, 1993; Feltran o ideal de expansão de consumo aos pobres e 4 p. 2010, 2011, 2012; Grillo, 2013), que incluem sua integração aos mercados como projeto po- 2, 7 essas estratégias e tantas outras, organizadas a lítico fundamental. É a ampliação da circula- n. partir de recortes populacionais tão mais pre- 7, 5 A reflexão é inspirada pelas reflexões de Simmel (2014) e 2 cisos quanto possível. Entre esses recortes es- Arendt (2001) sobre a monetarização dos objetos culturais, v. precedida pelo trabalho de tornar plausível a pergunta r, o sencializados em corpos e palavras, figura-se “quanto custa?”, até então impensável para esses objetos, d a como hoje seria perguntar “quanto custa seu filho?”. v a ideia de que apartação nos planos da moral al S ou da lei. Entretanto, é nítido que todos eles 6g uSrianntoçma, áetimco c, oanssviemrs, aq upee susmoa lS, etcernehtáar isoe Mreufenriicdipo apl odre tSrêes- H, R estão submetidos à uma lógica mercantil for- vezes ao “Crack, é possível vencer” como o “nome fanta- C sia” de um programa nacional de Segurança Pública. Há O malmente integrada pela monetarização, o que muito os programas públicos têm slogans formulados por RN marqueteiros, obedecendo às lógicas de fragmentação por DE produz uma forma de vida comum, desejável nichos mercantis. CA 497 O VALOR DOS POBRES: a aposta no dinheiro... ção de dinheiro, agora também relevante nas isso, também media os “acertos” entre eles, que margens do social, a finalidade fundamental fazem os mercados ilícitos e de mercadorias po- do repertório variável de regimes de governo líticas (Misse, 2006a) crescerem. Assim, a mes- da pobreza que recorta os pobres a partir da ma mão que fomenta a expansão do consumo intensidade potencial do conflito que podem da nova “Classe C” fomenta a violência urbana causar à ordem mercantil. que pretensamente controlaria. Para lançar essa perspectiva em debate, o artigo argumenta em três sessões que: 1) a representação da “violência urbana” retirou o A “QUESTÃO SOCIAL” NA ÓRBITA centro irradiador da “questão social” contem- DA “SEGURANÇA PÚBLICA” porânea dos “trabalhadores”, deslocando-o aos “marginais”; as políticas sociais afastaram-se Há um relativo consenso, na literatura, do universalismo do direito social e, hoje, pen- de que a questão social contemporânea inci- sam a proteção social sobretudo tendo como de sobre um deslocamento decisivo, operado pano de fundo a prevenção à violência; torna- desde as revoluções na França e nos Estados se plausível, então, a representação moral de Unidos (Arendt, 1959, 1977), mas tornado vi- um continuum entre os pobres, que tem, num sível sobretudo ao longo das últimas décadas, polo, o “bandido” a encarcerar e, no outro, o no centro da narrativa moderna que teve por “consumidor” ou o “empreendedor” a inserir norma a extensão universal da democracia via mercado; 2) nas práticas de governo, essa (Rancière, 1995; Agamben, 1998). Na socieda- essencialização produz diferentes cortes no de salarial, a questão social teria sido pautada nível da população, objetivando distintas “vul- pelo esforço de mediação pública e estatal dos nerabilidades sociais” e ensejando graus varia- efeitos desiguais da acumulação capitalista, dos de “complexidade” da intervenção; 3) esse centrados na extensão nacional dos direitos ci- modo de governo seletivo – que associa técnicas vis, políticos e sociais (Marshall, 1950) e com- tão díspares quanto transferência condicionada preendidos como a contrapartida universal do de renda e encarceramento, para não falar de assalariamento (Donzelot, 1984; Silva, 1993; extermínio – acabaria por favorecer, como efei- Rosanvallon, 1995). O “trabalhador” era a figu- to colateral, a emergência de um repertório de ra central a partir da qual se erigia o problema regimes normativos nas periferias urbanas – es- social e suas tentativas de solução. Ainda que 4 1 0 tatal, do “crime” e religioso – todos regulando essa contrapartida não se universalizasse de 2 ez. mercados monetarizados; é a monetarização, fato, o horizonte normativo (cognitivo e polí- D et./ portanto, que passa a mediar centralmente a tico) da resolução da “questão social” era for- S 2, relação entre os grupos recortados, que, sob ou- mulado nos termos do bem estar social, dos li- 1 5 tras perspectivas mediadoras – a lei, a ordem, a mites à mercantilização das formas de vida, da 5- 9 4 moral – estariam em alteridade radical; o “de- internalização do conflito de classe nos modos p. 2, senvolvimento” centrado no consumo, portan- de conceber e administrar o Estado e na produ- 7 n. to, é alçado a forma de vida comum. Um tra- ção de comunidades nacionais que visassem 7, balhador não se confunde moralmente com um homogeneidade interna. A alteridade radical, 2 v. bandido, tampouco um policial tem a mesma que justificava inclusive as guerras, passou a r, o d posição frente à lei, se comparado a um trafi- ser figurada no estrangeiro. O Estado protege a v al cante; ambos, entretanto, têm posições relativas seus cidadãos da ameaça externa.7 Integração, S H, muito próximas frente aos mercados de consu- 7 Se a noção de questão social havia se notabilizado, so- R C mo. Como o dinheiro circula indiferenciada- bretudo, no debate francês acerca do Estado de bem-estar O (Ewald, 1986), o índice das contradições da modernidade RN mente por mercados legais, ilegais ou ilícitos, a política e econômica (Telles, 1999) nos levava a um hori- DE zonte crítico, ainda que paradoxal, na medida em que os CA expansão mercantil conecta estes sujeitos e, por problemas advindos da modernidade deveriam ser supera- 498 Gabriel de Santis Feltran inserção ou inclusão social, portanto, pauta- ção crítica da questão social. vam o problema social e os modos da inter- O conflito social imanente às transfor- venção estatal na pobreza de modo a produzir mações recentes, que frustram esse ideal de uma comunidade, ainda que remetessem a um cidadania, é mais radical que outrora, seja por redesenho evidente das tecnologias do poder vivenciarmos um momento de repactuação so- (Foucault, 1976). cial ampla, seja porque – e essa é a hipótese Castel (1999) demonstrou como essa central aqui – esse conflito não emana apenas, equação foi desafiada nos países europeus, so- nem mais fundamentalmente, dos setores tra- bretudo na França, a partir dos anos 1980. Em balhadores, integráveis pela narrativa da ex- novo cenário, caudatário da “reestruturação pansão dos mercados e dos direitos. Embora o produtiva” e da “reforma neoliberal do Esta- trabalho e os direitos sigam exercendo papéis do”, instalava-se o desmanche, pela base, das centrais no mundo das práticas sociais, o con- mediações estatais que garantiam a efetivação flito social se situa hoje representado central- de direitos, jogando para a defensiva a figura mente na expansão e progressiva tematização do “trabalhador formal”, antes referência a da “violência urbana”, das “drogas” e da “mar- atingir. A ascensão do “precariado”, em sua ginalidade”,8 que constroem sujeitos por defi- informalidade, fazia do “desempregado estru- nição não integráveis. Se a “luta por direitos tural” o signo da “vulnerabilidade” dos novos do trabalhador”, hegemônica nos anos 1980 tempos. Se o cenário descrito por Castel, no fi- e início dos 1990, lançava a questão social a nal dos anos 1990, seguiu metamorfoseando-se um plano político (Paoli, 1995), a oposição até os dias de hoje, isso se deu, sem dúvida por central na qual parece situar-se o conflito so- radicalização do mesmo vetor de transforma- cial contemporâneo é, justamente, a clivagem ção da questão social por ele descrito. Os mer- moral que opõe a figura do trabalhador, com- cados informais e os postos de trabalho precá- preendido então como um “homem de bem”, rio expandiram-se por todo o mundo, mesmo partícipe da comunidade em seus anseios de em cenários de desenvolvimento econômico e progresso, daquela do “bandido” ou do “droga- baixíssimo desemprego, como o brasileiro dos do”, do “noia”, do “presidiário”, enfim, do ini- anos 2000. Mas também expandiram-se nota- migo que, em sua simples existência, ameaça velmente nas economias centrais (Ruggiero & essa mesma comunidade. Nas diferentes figu- South, 1997). rações do outro a combater, o conflito inscrito 4 1 No Brasil, a regulação da cidadania (San- na questão social se plasma agora em torno de 0 2 tos, 1979) também apostou nessa chave e, no uma ameaça essencial à ordem pública, subje- ez. D plano das práticas, mal chegou a lugares e pes- tivada em corpos, territórios e palavras clara- et./ S soas marcados por sociabilidade, linguagem e mente definidos e internos aos territórios onde 2, 1 códigos de conduta consideradas informais. se vive. Não mais os inimigos estrangeiros: a 5 5- 9 Os classificados como pobres estariam imer- ameaça vem de dentro, vem de perto, o inimi- 4 p. sos nas franjas da incompletude de processos go é interno. 2, 7 estruturais da modernidade, daí a atribuição Já não se trataria, apenas, de admitir n. de “atraso” que permeia as leituras, do senso a “vulnerabilidade social” de moradores de 7, 2 comum às universidades, acerca dos setores rua, presidiários ou usuários de crack, para, v. r, o populares. As próprias noções de exclusão ou em seguida, pautar sua necessária “reintegra- d a v desfiliação, atestariam, assim, essa espécie de 8 Não é, por exemplo, a estética do trabalhador aquela que al S evolucionismo inscrito mesmo nessa formula- dçõiteas, ajotuveanlms ednatse , poesr icfreirtiéarsi oaso d me puenrdteon scoimcieanl;t oe xdparse sgseõreas- H, R estéticas muitíssimo difundidas ali nas últimas décadas, C como o rap ou o funk, demonstram uma partilha do sen- O dos nos marcos da própria teleologia moderna, pela criação sível (Rancière, 1995) centrada em alteridade bastante RN e progressiva extensão dos direitos da cidadania. Cidadania mais radical que outrora (Bertelli, 2012; Feltran, 2013; DE A seria, então, uma medida nas relações sociais (Telles, 1994). Takahashi, 2013). C 499 O VALOR DOS POBRES: a aposta no dinheiro... ção” (Melo, 2014). Trata-se de equacionar essa dade, drogas e pobreza. Mas há descompasso “vulnerabilidade” ao potencial risco que eles entre essa grade e o próprio plano das práticas representam. Como contrapartida, a depender que ela pretenderia descrever, o que força as da performance moral de cada sujeito ou gru- reclassificações, oriunda da desconfiança fren- po, oferecem-se doses (sempre tentativas, tra- te a estatutos previamente bem estabelecidos, ta-se de um momento de transição) da mistura como a própria cisão trabalhador versus ban- proteção social e controle, expandindo direitos dido. Há muito mais tons de cinza entre eles e privações, atendimentos e disciplinarização, quando se nota que o “mundo do crime” nas postos de saúde e criminalização, autoridade periferias também têm legitimidade para res- legítima e repressão violenta.9 guardar valores como paz, justiça, liberdade e Por isso, verifica-se a proliferação con- igualdade; que gera renda e produz postos de comitante dos serviços sociais, sempre focali- trabalho e pertencimento, quando não novas zados, e das estratégias de segurança pública famílias (Feltran, 2011; 2013). Publicamente, e e privada, vigilância e militarização dos ter- sobretudo entre as elites, a reclassificação do ritórios urbanos, igualmente focalizados. No mundo é muito mais lenta que nos cotidianos Brasil, a expansão do acesso à casa própria populares. Assim, na figuração pública traba- pelo Programa Minha Casa Minha Vida, por lhadores e bandidos seguem sendo opostos isso, está em plena sintonia com a retomada pelo vértice, e a normativa política fundamen- dos deslocamentos forçados de indesejáveis tal se desloca da integração dos trabalhadores urbanos, seja às periferias longínquas, seja a à comunidade, em direção ao debate sobre prisões, unidades e clínicas de internação, que segurança pessoal e patrimonial, calcada no incluem controle químico pela psiquiatriza- controle de espaços e populações de risco, que ção. Oferece-se suporte para a “Nova Classe produziriam as ameaças evidentes (usuários C” que expande mercados e preconiza-se seu de drogas, marginais, ladrões, traficantes). Já isolamento das fatias populacionais que de- não se trataria da extensão universal dos di- sarranjariam seu avanço. O problema aparece, reitos da cidadania (não se oferecem direitos apenas, quando se descobre que os empreen- a inimigos), tampouco da validade universal dimentos em que a “Nova Classe C” vai viver das garantias democráticas (a exceção é tole- estão situados em territórios nos quais não é rada, pode mesmo se tornar regra, quando se apenas a lei do mercado a que existe, e quando trata de “defender a sociedade”). A conflitivi- 4 1 0 se vislumbra que essa nova classe não está as- dade social brasileira exige, portanto, recortes 2 ez. sim tão “segregada” do “crime”, do PCC ou de populacionais aos quais se vai dirigir um re- D et./ suas dinâmicas, mas habita nos mesmos bair- pertório de modos de governo, que variam hoje S 2, ros. Quando se percebe que o outro a combater da democracia substantiva ao extermínio. Esse 1 5 materializa-se, não poucas vezes, no próprio mosaico de modos de gerir os pobres é radical- 5- 9 4 pai, irmão, marido, parente. mente distinto daquele ancorado no mito da p. 2, A grade de inteligibilidade do problema democracia racial, da primeira metade do sé- 7 n. social se desloca, explicitamente, da questão culo XX, ou nas subsequentes tentativas de in- 7, social ao problema da violência, compreendi- serção social do trabalhador migrante nas cida- 2 v. do como problema associado entre criminali- des, integração regional ou extensão regulada r, o d dos direitos sociais aos excluídos. Nos últimos va 9 A lógica vitoriosa dos governos de coalização desde a al “transição democrática” brasileira no plano nacional, fi- anos, o conflito social se expressa em cenário S H, gcaupraitnadl of icnoamncoe isríon tee see cao ncoom-pirae sseonlçidaá rdiea , Saamrnbeiye net aMlisStaTs, aparentemente contraditório: aumento das ta- R C e agronegócio, terceiro setor e evangélicos, por exemplo, xas da criminalidade acompanham aumento O favorece o tipo de esquizofrenia – em sentido teórico – ca- RN racterístico dessas ações sociais (mas também ambientais, das taxas de emprego formal; políticas massi- DE políticas, econômicas). É sob esse signo que o governo CA contemporâneo parece ser melhor compreendido. vas de encarceramento são coetâneas à maior 500 Gabriel de Santis Feltran provisão de serviços sociais; megaoperações de É nos termos morais da representação da “vio- requalificação urbana estão sintonizadas com a lência urbana”, entretanto, que ela tem sido internação compulsória de usuários de crack; difundida. ocupação militar de territórios de favela acom- panha consolidação de facções criminais. Esse cenário paradoxal, portanto, asso- A ‘VIOLÊNCIA URBANA’ E AS POLÍ- cia o desenvolvimento econômico e a moder- TICAS SOCIAIS10 nização de mercados à altíssima conflitividade social. Desagregar as populações em que cada Luiz Antonio Machado da Silva já nos um desses regimes atua é, portanto, funda- alertou, há duas décadas, para o erro de utili- mental. zar a noção de “violência urbana” como uma No Brasil, traficantes, presidiários, mo- categoria de análise. Seria preciso, ao contrá- radores de rua e usuários de crack estão no cen- rio, tomar essa representação como parte do tro da tematização pública do problema social problema a compreender, na medida em que contemporâneo – nas capas de jornais e revis- é construção histórica e que constitui, em seu tas, em todos os meios. Não se pede que sejam uso rotineiro, o que pretensamente descreve tratados como cidadãos. Seu encarceramento, (Silva, 1993). Michel Misse já verificou a cen- ou mesmo seu extermínio, são legitimados por tralidade dessa afirmação para todo o campo parcelas consideradas incluídas e conectam-se de estudos sobre o crime e a violência, bem diretamente, no plano dos debates públicos, à como os supostos que ela evidencia e os desdo- validação dominante das noções instrumen- bramentos analíticos que ela propõe, válidos tais de estado democrático e desenvolvimento. também para quem estuda as periferias (Misse, Diferentes trabalhos vêm demonstrando que 2006a). Além disso, ensinou-nos que a primei- bandidos, favelados, drogados e traficantes, ra das “cinco teses equivocadas sobre crimina- pontos de gravitação do problema social bra- lidade urbana no Brasil” é a de que “a pobreza sileiro hoje, há muito já são figurados publica- é a causa da criminalidade, ou do aumento da mente nos termos da alteridade radical (Misse, violência urbana” (Misse, 2006b, 2010). 2010; Grillo, 2013; Lyra, 2012; Biondi, 2010); Para dialogar com essa produção com o a bibliografia internacional demonstra proces- mínimo de rigor, parece-me ser preciso, cen- sos correlatos em diferentes países (Das; Poole, tralmente, evitar a reificação dos conceitos 4 1 2002; Jensen, 2008; Bourgois, 2012). Tendo os em pauta, que os figura como dados da “rea- 0 2 “inimigos” no seu centro, e desmoralizadas as lidade”. Não existe uma violência urbana em ez. D narrativas de integração social universal, ou si mesma. A representação da “violência ur- et./ S mesmo de luta política legítima em torno dos bana” constitui-se fundamentalmente de um 2, 1 direitos comuns, o social passa a ser concebi- processo de associação arbitrária entre concei- 5 5- 9 do como cerceado por um conflito irredutível, tos e fenômenos distintos, ao longo do tempo, 4 p. que o restringe e lhe reforça as fronteiras: há que só comporiam um único fenômeno que, 2, 7 sempre um lado de dentro e um lado de fora ao se reificar – por mecanismos diversos de n. da vida social, que portanto já não se confun- objetivação – é apreendido como realidade e, 7, 2 de com vida nacional. Essa figuração choca-se por isso, se torna realidade.11 Em nosso caso, v. r, o com o centro da modernidade política inscrita d a 10 Esta seção sintetiza e desenvolve argumentos já publica- v na fórmula democrática. É em termos políti- dos, separadamente, em Feltran (2013a, 2014). Sal cos, portanto, que a questão social mereceria 11 “Assim, nossas relações vão se desenvolvendo sobre a H, R ser recolocada: trata-se de uma redefinição do base de um saber mútuo, e esse saber sobre a base da rela- C ção real, como dois elementos indissociavelmente entrela- O que é a vida da nação, da comunidade política. çados que, pela sua alternância dentro da interação, fazem RN com que essa apareça como um dos pontos em que o ser e DE A a representação fazem empiricamente perceptível sua uni- C 501 O VALOR DOS POBRES: a aposta no dinheiro... nessa representação estão conectados fenôme- jam hoje interdependentes; crê-se, porque seria nos e conceitos tão díspares quanto criminali- implausível pensar fora da chave bipolar legal dade, drogas ilegais, mercados ilícitos, armas versus ilegal contida nessa representação, que de fogo, facções, quadrilhas, corpos pardos e o crescimento econômico formal diminuiria os pretos, territórios urbanos e pobreza. Se o rigor mercados globais da informalidade e da ilegali- analítico pede que cada um desses conceitos dade. Não é o que acontece em termos transna- seja tratado considerando-se as distinções evi- cionais, menos ainda o que aconteceu no Bra- dentes que carregam, nessa representação, ao sil, nas últimas décadas (Telles, 2011). contrário, eles são umbilicalmente indiferen- Se conceitos e fenômenos tão díspares ciados. Cada um e a totalidade deles poderia, aparecem nesse regime discursivo como na- além do mais, significar uma faceta do nexo turalmente conectados, os sujeitos e espaços mais amplo, quando não tomado simplesmente que materializariam esta conexão, conferindo- como um sinônimo, da “violência urbana”. As lhe concretude inquestionável, serão alçados palavras chegam mesmo a se indiferenciar: em a “típicos” da representação da “violência ur- São Paulo, durante minha pesquisa de campo bana”. Sua existência física seria a demonstra- foram muitas as situações em que dizer “violên- ção empírica de como todos os elementos ar- cia” era o mesmo que dizer “tráfico”, “crime” rolados efetivamente se combinam na prática. ou “PCC” , bem como a ideia de que qualquer Sabotage, um rapper com muita melanina na programa social que se dedique a um jovem pele e muita história na favela, cantou o que favelado seria, evidentemente, de “prevenção Michel Misse (2010) descreveu nos termos da à violência”. sujeição criminal: “Já não sei qual que é/ Se me Não importa se as “drogas” atravessam vêem, dão ré!”. A figura do “noia”, habitante as classes e se o “tráfico” é transnacional; nos das “cracolândias”, é igualmente relevante para significados da “violência urbana” ambos se se notar como os dispositivos da “droga” (Fiore, corporificam em morros e favelas, numa cor de 2012; 2014) e da violência se reificam em cone- pele, numa idade, numa estética que pede para xão. Mesmo sendo empiricamente uma parcela ser contida. Não importa se países como a Índia muito minoritária dos usuários da substância tenham imensa pobreza e taxas de homicídio (Rui, 2012) aquela que faz dela um uso tão radi- muitíssimo mais baixas que países como os Es- cal que chega ao ponto de viver nas ruas, ela é tados Unidos. Nem importa que os trabalhado- imediatamente acionada como imagem públi- 4 1 0 res do tráfico nas favelas estivessem desarma- ca indelével ao se pronunciar a palavra crack. 2 ez. dos durante os anos 2000, em São Paulo. O ne- Toma-se a parte pelo todo, mas não por acaso: D et./ gócio do tráfico segue sendo representado como essa pequena parte permite, justamente, a na- S 2, algo tão violento que pôde equivaler legalmente turalização imediata de todos os elementos nos 1 5 a crimes hediondos, numa escalada de deman- quais a representação da violência se baseia 5- 9 4 da por punição. Não importa, ainda, que o cri- – indignidade, sujeira, desordem, crime, vio- p. 2, me dependa da lei que o tipifique, e seja sempre lência, maldade, abjeção, imoralidade, risco, 7 n. muito mais amplo do que o conjunto de atos ameaça. Se a imensa maioria dos jovens de pe- 7, que se utilizam de violência; o dispositivo da riferia não está “no crime”, e se a imensa maio- 2 v. “violência urbana” faz com que “crime” seja ria dos que está no “crime” não comete crimes r, o d reduzido ao ato violento, cometido por tão so- violentos, é, da mesma forma, essa minúscula a v al mente uma raça (aquela construída pela racia- parcela criminal e violenta a que representará S H, lização dos pobres), definida agora com base na toda a periferia quando se toma a “violência ur- R C estética dos jovens das periferias. Não importa, bana” como grade de inteligibilidade. O N R tampouco, que as economias legal e ilegal se- Essa representação compõe, assim, uma E D CA dade misteriosa” (Simmel, 2010, p.30-31). fronteira cognitiva que define os limites até 502 Gabriel de Santis Feltran os quais os significados das palavras podem me” foi ganhando significados outros ao longo ser distendidos. No interior desse dispositivo das últimas quatro décadas. A acumulação do a palavra “crime” não pode, por exemplo, ser conflito em torno do sentido dessas palavras esticada a ponto de se considerar que nele ha- fez do “crime”, em situações determinadas das bitem sujeitos com fala e ação legítimas. Nesta “periferias”, um contraponto normativo e figu- representação, a lei define o crime como seu rativo relevante à representação da “violência oposto e, como ela pressupõe-se como válida urbana”. A função dessas duas representações “para todos”, em dado território, não é plausí- me parece, hoje, centrada na tentativa de pro- vel pensar de outro modo. O fundo valorativo duzir cortes precisos na população, de modo que acompanha a expressão “violência” é sem- a distribuir no tecido social um repertório de pre negativo (Misse, 2006b). A representação regimes governamentais diferentes a depender da “violência urbana” opera, então, nos limi- de “com quem se está falando”. tes dos sentidos previamente determinados da A “nova geração de políticas sociais” já apreensão de sujeitos e territórios que expres- foi concebida sob a égide da “violência urba- sariam, nas suas essências, manifestas univo- na”. Atua recortando o social em diferentes camente em suas ações, a violência que a sig- grupos, que solicitam diferentes estratégias de nifica. Não é plausível, no interior dessa repre- intervenção. Em pesquisa de campo, a mesma sentação, romper com essa valoração central travesti classificada como “trabalhadora do que passa, então, a significar os conceitos do sexo” pelas políticas de saúde se tornou “mo- entorno, reificáveis a cada nova situação em radora de rua” quando atendida pelo Centro que são mobilizados. A palavra “crime”, entre- de Referência Especializado para População tanto, mesmo negativada na significação domi- em Situação de Rua – CREAS Pop, e “usuá- nante pautada pela lei e ordem estatais, pode ria de drogas” quando internada em uma clí- significar fonte de normatividade altamente nica evangélica de recuperação (Martinez et. positiva entre parcelas bastante relevantes da al., 2014). Suas “identidades”, em cada caso, população brasileira (Hirata, 2010; Malvasi, pediram doses muito distintas da equação as- 2012). Isso implica que se devem considerar sistência e repressão, que, no entanto, sempre esses enunciados nas situações potenciais de estiveram presentes. Assim ocorreu em mui- palavra, absolutamente dissensuais, em que tíssimos outros casos que temos estudado: os aparecem usualmente. Dissenso que não reme- programas voltados aos marginalizados distri- 4 1 te apenas a argumentos, mas ao argumentável, buem essa equação a partir de um continuum 0 2 ou seja, aos distintos parâmetros pelos quais se imagético que tem, num polo, a figura do “pe- ez. D pode conceber o mundo. rigo” a ser francamente controlado e, no outro, et./ S A tematização pública da “violência ur- a do novo consumidor ávido por mercados em 2, 1 bana” representaria, assim, um modo ativo de expansão, seja pelo crédito, seja pelo aumento 5 5- 9 produzir realidade e lhe ofertar conteúdos, o da renda; entre esses polos, há distintos níveis 4 p. que, ao mesmo tempo, oculta aquilo que existe de “vulnerabilidades” que indicariam diferen- 2, 7 no mundo, formulado de modo alheio aos seus tes “complexidades” de casos (Breda, 2013), n. próprios termos. O que não é plausível nos ter- esquadrinhados pelos cadastros, reuniões de 7, 2 mos desta representação só pode, portanto, ser assistentes sociais, psicólogos, educadores, v. r, o considerado inexistente: o “mundo do crime” terapeutas ocupacionais, às vezes advogados d a v fazer homicídios diminuírem nas periferias de (Matsushita, 2012). Em todos os casos, bus- al S São Paulo, nos anos 2000, por exemplo. O que ca-se “encaminhar” o adolescente em conflito H, R não se fala publicamente, entretanto, se comen- com a lei, a família “desestruturada”, o vicia- C O N ta em privado. Entre os muito pobres, sobretu- do, o portador de necessidades especiais, o R E D do, mas não apenas em São Paulo, o termo “cri- morador de rua, aquele que tem “distúrbios CA 503

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Gabriel de Santis Feltran*. No Brasil, as periferias são o centro de duas figurações recentes e dicotômicas: a da violência urbana que pede mais
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