O sentido e o alcance do princípio da igualdade como meio de controle da constitucionalidade das normas jurídicas na jurisprudência do Tribunal Constitucional de Portugal e do Supremo Tribunal Federal do Brasil Cláudio Petrini Belmonte Sumário 1. Introdução. Exposição do trabalho. 2. O princípio constitucional da igualdade em Por- tugal e no Brasil. 2.1. Breve nota histórica sobre os direitos fundamentais e o princípio da igual- dade. 2.2. Conceito de igualdade. 2.3 O princí- pio da igualdade nos direitos positivos de Por- tugal e Brasil. 2. 4. O princípio da igualdade nas doutrinas de Portugal e Brasil. 3. Aplicação prá- tica do princípio da igualdade. Análise de acór- dãos. 3.1. Introdução. 3.2. Análise dos acórdãos. 4. Conclusão. 1. Introdução. Exposição do trabalho O presente estudo tem por escopo mag- no a análise de manifestações dos tribunais “guardiães da Constituição”1 nos ordena- mentos jurídicos de Portugal e Brasil – Tri- bunal Constitucional e Supremo Tribunal Federal, respectivamente –, acerca do prin- cípio da igualdade no controle da constitu- cionalidade de normas jurídicas. Destarte, foram destacados alguns acór- dãos proferidos por esses tribunais para serem ora analisados, selecionados de modo a obter uma abordagem variada da matéria, sem a pretensão de exauri-la, haja vista a inesgotável diversidade de situações do cotidiano que podem dar azo, direta ou indiretamente, à violação do princípio cons- titucional em questão, o que é comprova- do pela vasta jurisprudência existente. Cláudio Petrini Belmonte é advogado e mes- Foi enfatizada a jurisprudência do Tri- trando em Ciências Jurídico-Civilísticas. bunal de Portugal pelo fato de o autor ser Brasília a. 36 n. 144 out./dez. 1999 157 aluno de curso de Mestrado junto a uma Os direitos fundamentais passaram a universidade portuguesa, contudo, devido ser considerados conditio sine qua non do a sua nacionalidade, não se pôde deixar de Estado constitucional democrático. E mais, fazer menção, ainda que perfunctória, a al- esses direitos passaram a espraiar sua gumas decisões do Supremo Tribunal Fe- abrangência para além de sua função ori- deral do Brasil. ginária de instrumentos de defesa da liber- Antes de partirmos diretamente à aná- dade individual – elementos da ordem ju- lise jurisprudencial, mister tecermos algu- rídica objetiva –, integrando um sistema mas breves considerações doutrinárias so- axiológico que atua como fundamento bre o princípio da igualdade, a fim de pos- material de todo o ordenamento jurídico3. sibilitar melhores compreensão e aprovei- O professor Gomes Canotilho refere que “o tamento daquela e, bem assim, ao fim e ao fundamento de validade da constituição (= cabo, verificar-se se tais Cortes ratificam na legitimidade) é a dignidade do seu reconhe- prática o que é asseverado pela doutrina. cimento como ordem justa (Habermas) e a convicção, por parte da coletividade, da sua 2. O princípio constitucional da bondade intrínseca”. Podemos dizer que é nesse contexto que os direitos fundamen- igualdade em Portugal e no Brasil tais, entre os quais o da igualdade, são con- 2.1. Breve nota histórica sobre os direitos siderados atualmente. Com efeito, o vulto fundamentais e o princípio da igualdade valorativo dos direitos fundamentais cons- titui noção intimamente agregada à com- Os chamados direitos fundamentais de preensão de suas funções e relevâncias primeira dimensão (direito à vida, à liber- num Estado Democrático de Direito que dade, à propriedade e à igualdade perante efetivamente mereça ostentar esse título4. a lei) encontram suas raízes especialmente No tocante especificamente ao princípio na doutrina iluminista e jusnaturalista dos da igualdade, sabe-se que não é recente a séculos XVII e XVIII (Hobbes, Locke, Rous- atenção despendida por filósofos, políticos seau e Kant), segundo a qual a finalidade e juristas acerca de noções de igualdade. precípua do Estado consiste na realização Esse tema já pautava discussões desde o da efetiva liberdade do indivíduo. As re- tempo dos primeiros filósofos gregos, ob- voluções políticas do final do século XVIII viamente que com as características contex- marcaram o início da positivação das rei- tuais pertinentes a cada época5 – vide Pla- vindicações burguesas nas primeiras Cons- tão, “Diálogos. A República”, tradução de tituições escritas do mundo ocidental. Leonel Vallandro, Rio de Janeiro, Ediouro Assim, os direitos fundamentais, no Publicações, 1996, 24. ed. âmbito de seu reconhecimento nas primei- A noção de igualdade aparece inicial- ras Constituições escritas, são o produto do mente na história do pensamento jurídico- pensamento liberal-burguês do século político ocidental como norma de justiça. XVIII, de marcado cunho individualista, É com o constitucionalismo moderno que surgindo e afirmando-se como direitos de se torna, ao lado da legalidade, princípio defesa, demarcando uma zona de não-in- estruturante da ordem jurídica, abarcando tervenção do Estado e uma esfera de auto- as idéias de igualdade perante a lei e igualda- nomia individual em face de seu poder. de na lei. São, destarte, apresentados como direitos A idéia de que todos os homens são de cunho negativo, pois dirigidos a uma iguais independentemente de sua origem abstenção e não a uma conduta positiva étnica, posição social, idade, etc. – pedra por parte dos poderes públicos, sendo, nes- angular da ética cristã – só recebeu formu- se sentido, direitos de resistência ou de lação concreta, em termos jurídico-políti- oposição perante o Estado2. cos, na era das grandes revoluções liberais, 158 Revista de Informação Legislativa mais precisamente com o “Virginia Bill of prio”. Para detectar-se uma igualdade, é Rights”, de 12 de junho de 1776, e, ainda imprescindível a comparação entre dois ou assim, não se tratava de igualdade política mais objetos, de modo a fazer sobressair plena, pois não se reconhecia direito de os elementos que lhes sejam comuns. sufrágio às mulheres e trabalhadores, evi- Uma questão de suma importância é a denciando que todos eram apenas alguns: escolha do critério de diferenciação (tertium os burgueses proprietários, pais de famí- comparationis) – antecedente ao ato jurídico lia. Em seguida, a igualdade dos homens de avaliação –, uma vez que é aquele que foi também levada em consideração nas determina, para o avaliador, quais os pon- Constituições de Massachussets (2 de mar- tos de comparação entre os objetos e, após ço de 1780) e na francesa de 1791. tal cotejo, se os mesmos são ou não iguais Hodiernamente, o princípio da igualda- e, conseqüentemente, se reclamam ou não de perante a lei é reconhecido como um um mesmo tratamento jurídico9. Na esco- valor fundamental nas Constituições de lha de tal critério, o órgão decisor deve le- diferentes países, na Declaração Universal var em consideração valores objetivos e dos Direitos do Homem e na Convenção não-subjetivos, o que significa dizer que Européia dos Direitos do Homem e das deva basear-se no quadro de valores vigen- Liberdades Fundamentais, estas, as duas tes na sociedade, interpretados objetiva- mais importantes declarações de direitos. mente. Como visto, o princípio da igualdade Mister salientar, outrossim, que a igual- tem seu sentido e alcance relacionado dade em questão será sempre relativa, nun- com o respectivo contexto histórico. Nes- ca absoluta. Isso porque a igualdade pres- se sentido, importa mencionar a lição de supõe também necessariamente diferença Castanheira Neves, na qual refere que tal de objetos; igualdade é sempre a abstração princípio de uma desigualdade existente, sob um “é um daqueles que, pela densa car- determinado ponto de vista. A igualdade ga ideológica e axiológica que lhes vai absoluta seria aquela em que há concordân- imanente, não permanecem inaltera- cia de todos os pontos (características) dos dos no seu sentido autêntico ao lon- objetos comparados, além da supressão de go do tempo, apesar da constância toda e qualquer diferença entre eles, fatos das fórmulas, e antes terão de ser que seriam quase absurdos10. sempre compreendidos no contexto 2.3. O princípio da igualdade nos direitos histórico e social em que se procla- positivos de Portugal e Brasil mem”6. Esse princípio, em sua forma genérica, 2.2. Conceito de igualdade encontra-se positivado nos artigos 13º11 e Igualdade significa a possibilidade de 5º, caput, respectivamente, das Leis Fun- comparação entre dois ou mais objetos, de damentais de Portugal e Brasil. modo a fazer sobressair elementos que lhes Desde já, convém destacar três simili- sejam comuns7. tudes dos ordenamentos jurídicos em ques- A igualdade é diferente da identidade. tão: a) em ambos o princípio da igualdade Aquela possui como pressuposto lógico consiste num dos princípios estruturantes fundamental a pluralidade de objetos (tan- do regime geral dos direitos fundamentais; to podendo referir-se a pessoas, coisas ou b) os enunciados semânticos dos dispositi- situações), e esta tem como pressuposto vos constitucionais condensam hoje uma somente um objeto. Como bem ensina o vasta riqueza de conteúdo; c) as enume- professor Alves Correia8, “um objeto não rações feitas nos mencionados dispositivos pode ser simultaneamente igual a si pró- constitucionais não são exaustivas12. Brasília a. 36 n. 144 out./dez. 1999 159 2.4. O princípio da igualdade nas doutrinas prida uma lei, todos os abrangidos por ela de Portugal e Brasil hão de receber tratamento parificado. Ocorre que esse entendimento formal Na medida em que as Constituições de do princípio da igualdade, respaldando Portugal e Brasil recepcionaram o princí- apenas uma igualdade perante a lei, não é, pio da igualdade (criando a figura da de per si, garantidor de um tratamento jus- igualdade jurídica) da mesma forma, é to e adequado aos cidadãos, tendo em con- natural, e efetivamente acontece, que se- ta as diversas situações vislumbradas no jam as mesmas as questões abarcadas pela cotidiano das pessoas. Ou seja, se o legis- doutrina dos dois países. Assim sendo, em lador, ao criar a norma legal, o fizer ape- face dessa paridade no tratamento do alu- nas com base num critério universalista de dido princípio, continuaremos no mesmo igualdade dos cidadãos, como se todos es- rumo até agora seguido, qual seja, de não tivessem nas mesmas condições culturais, analisarmos separadamente as manifes- econômicas, saudáveis, etc., mesmo que no tações doutrinárias desses dois países, próprio preceito legal não faça nenhuma levando em conta as opiniões de cada distinção espontânea, efetiva e faticamen- doutrinador ora considerado, indepen- te poderá estar desrespeitando o princípio dente de sua nacionalidade. da igualdade, pois é sabido que, na práti- A fim de ratificar essa paridade no tra- ca, as pessoas não se encontram todas nas tamento do princípio da igualdade, e so- mesmas situações e condições. mente a título de exemplificação, vale di- É certo que para todos os indivíduos zer que, em ambos os ordenamentos, cor- com as mesmas características devem pre- roborados pelos respectivos doutrinadores, ver-se, por meio da norma jurídica, iguais tem-se que o princípio da igualdade é per- situações ou resultados jurídicos. Contu- tinente a todas as funções estatais: legisla- do, o princípio da igualdade, reduzido a ção, administração e jurisdição13; um outro um postulado de universalização, pouco ponto de encontro é o entendimento de que adianta, uma vez que permitirá discrimi- o princípio da igualdade deve ser conside- nações quanto ao conteúdo (por exem- rado tanto na aplicação do direito, quanto plo, discriminações de pessoas de uma na criação do direito. determinada raça ou de uma determi- nada origem étnica). 2.4.a. Igualdade perante a lei e igualdade na Mais uma vez merece destaque a lição lei de Celso Antônio Bandeira de Mello16, pois, Nas disposições constitucionais dos ao referir o entendimento de Hans Kelsen, dois países em apreço, surge a afirmação espelha com brilhantismo a matéria: “todos são iguais perante a lei”, o que sig- “Com efeito, Kelsen bem demons- nifica, mantida ainda sua significação tra- trou que a igualdade perante a lei não dicional, a exigência de igualdade na apli- possuiria significação peculiar algu- cação da lei (direito). Seria a aplicação ma. O sentido relevante do princípio igual da lei, independentemente das pes- isonômico está na obrigação da igual- soas envolvidas. A igualdade na aplicação dade na própria lei, vale dizer, enten- do direito consiste ainda numa das dimen- dida como limite para a lei. Por isso sões básicas do princípio da igualdade, as- averbou o que segue: ‘Colocar (o pro- sumindo particular relevância no âmbito blema) da igualdade perante a lei é da aplicação igual da lei (direito) pelos colocar simplesmente que os órgãos órgãos da administração e pelos tribu- de aplicação do direito não têm o di- nais14. A esse respeito, Celso Antônio Ban- reito de tomar em consideração se- deira de Mello15 leciona que, ao ser cum- não as distinções feitas nas próprias 160 Revista de Informação Legislativa leis a aplicar, o que se reduz a afir- A igualdade material pode oferecer o mar simplesmente o princípio da re- critério justificativo da derrogação da gularidade da aplicação do direito igualdade formal. Mas essa derrogação é em geral; princípio que é imanente somente aparente, uma vez que a inter- a toda ordem jurídica e o princípio venção do legislador a favor de grupos da legalidade da aplicação das leis, menos favorecidos regula diversamente que é imanente a todas as leis – em situações diversas surgidas em face de um outros termos, o princípio de que as desequilíbrio econômico e social. Como normas devem ser aplicadas confor- visto, se há discriminações que a igualda- me as normas’“ (Teoria Pura do Di- de repudia, também existem outras que ela reito, tradução francesa da 2ª edição postula. O tratamento díspare fere o prin- alemã, por Ch. Einsenmann, Paris, cípio da igualdade se as situações são Dalloz, 1962, p. 190). iguais, mas, se diferentes, não é censurá- No mesmo sentido, Castanheira Neves17 vel. É o que se chama de discriminação po- leciona que “a igualdade perante a lei ofe- sitiva, conceito que a jurisprudência tem recerá uma garantia bem insuficiente se não utilizado freqüentemente19. for acompanhada (ou não tiver também a O professor Alves Correia20 nos ensina natureza) de uma igualdade na própria lei, que, “numa fórmula curta, a obrigação da isto é, exigida ao próprio legislador relati- igualdade de tratamento exige que aquilo vamente ao conteúdo da lei”. que é igual seja tratado igualmente, de acor- Isso não significa a irrelevância ou a in- do com o critério da sua igualdade, e aqui- correção do princípio da igualdade nesse lo que é desigual seja tratado desigualmen- sentido formal, uma vez que, na abrangên- te, segundo o critério da sua desigualda- cia total do sentido e alcance desse princí- de.” pio, é importante. Mas é evidente que me- Daí que o princípio da igualdade é di- rece atenção a questão de diferenciar-se, na rigido (imposto) também ao legislador, prática, quem são os cidadãos iguais e vinculando-o à criação de um direito quem são os desiguais, tornando necessá- (norma jurídica) que trate por iguais to- dos os cidadãos. ria a análise do referido princípio também em sentido material. 2.4.b. Conteúdo do princípio da igualdade. Assim, passou-se a buscar uma igualda- Vinculações do legislador. Proibição do de na lei, impondo também ao legislador, arbítrio, da discriminação e obrigação de ao criar a norma jurídica, o respeito ao prin- diferenciação cípio da igualdade. Com efeito, passou-se O conteúdo jurídico-constitucional do a exigir do legislador que a lei, ela própria, princípio da igualdade consiste num tema deva tratar por igual todos os cidadãos, muito discutido na literatura jurídica ho- vinculando-o à criação de um direito igual dierna, do que fazem prova as diferentes a estes18. Em outras palavras, passou-se a posições doutrinárias acerca do mesmo. buscar uma igualdade material, sendo essa Contudo, parece claro que esse conteúdo no sentido de, se for o caso, reconhecer di- tem vindo progressivamente a alargar-se reitos àqueles que se encontram numa si- de acordo com os respectivos contextos li- tuação de inferioridade (podendo ser de- berais, democráticos e sociais. vido ao meio, condições de vida ou situa- Assim, as considerações que serão teci- ção pessoal, por exemplo) para, concreta das a seguir baseiam-se em nossa convic- e efetivamente, transporem essa inferio- ção pessoal, sabendo-se que não há unani- ridade de modo a garantir-lhes uma igual- midade sobre o tema. dade de oportunidades ou de chances. Ou seja, O âmbito de proteção do princípio da se for o caso, agir discriminadamente. igualdade na criação do direito (lei) con- Brasília a. 36 n. 144 out./dez. 1999 161 siste na proibição do legislador de agir do princípio da igualdade, apenas expres- arbitrariamente, discriminativamente e sa e limita a competência do controle ju- na obrigação deste atuar quando for ne- dicial – a proibição do arbítrio encerra uma cessário. norma de competência e uma delimitação do poder do tribunal23. 2.4.b.1. Proibição do arbítrio A nosso sentir, uma situação não exclui O legislador terá agido arbitrariamente necessariamente a outra. A proibição do quando a lei por ele criada não possuir um arbítrio faz parte, junto com a proibição de fundamento objetivamente razoável, quer no discriminação e a obrigação de legislar, do que diz respeito à natureza das coisas, quer conjunto de imposições às quais o legisla- na falta de justificativa para a diferencia- dor resta vinculado, determinantes para a ção legal ou para o tratamento igual21. É delimitação do conteúdo do princípio da claro que não se exige do legislador que, igualdade. Da mesma forma, a proibição na disciplina de determinada matéria, ele do arbítrio também é relevante para a deli- tenha em conta todas as possíveis e even- mitação da competência do tribunal res- tuais diferenças fáticas. No entanto, numa ponsável pela verificação da constituciona- perspectiva pautada na idéia de justiça, se lidade da norma. as desigualdades fáticas são de tal modo 2.4.b.2. Proibição de discriminação significativas, o legislador deve atendê-las na regulamentação por ele criada. Está relacionada com uma diferenciação O princípio da igualdade não proíbe que subjetiva dos cidadãos. a norma jurídica estabeleça distinções; pro- As Constituições de Portugal e do Bra- íbe somente o arbítrio. No rumo do que sil indicam expressamente um conjunto de dissemos acima, proíbe as diferenciações de fatores de discriminação ilegítimos – aque- tratamento sem fundamento material bas- la, no seu item nº 2, e esta no corpo dos tante (sem qualquer justificação razoável), seus incisos. Contudo, tais fatores são ape- segundo critérios de valor objetivo consti- nas os mais freqüentes e historicamente os tucionalmente relevantes; a norma será ar- mais significativos elementos fundadores bitrária se não se basear num fundamento de diferenças de tratamento jurídico, não sério, se for sem sentido e sem um fim ou sendo, pois, exaustivos esses elencos, po- se criar diferenciações jurídicas em relação dendo haver outras situações de igual ili- às quais não é evidente um fundamento citude em face de diferenciações de trata- razoável22. Não é permitido, outrossim, que mento fundadas em outros motivos, basta se tratem por iguais situações essencial- que também sejam contrárias à dignidade mente desiguais. humana, incompatíveis com o princípio do Muitas críticas têm surgido à formula- Estado Democrático de Direito ou simples- ção do princípio da igualdade como proi- mente arbitrárias e impertinentes24. bição do arbítrio. Não aprofundaremos a O legislador fere o princípio da igual- matéria para não nos distanciarmos por dade quando proporciona quaisquer dife- demais do plano proposto ao presente tra- renciações de tratamento entre os cidadãos balho; contudo, importa referir que tais baseadas em categorias meramente subje- posicionamentos são uníssonos em criticar tivas ou em razão dessas categorias. Não a definição do conteúdo do princípio da se exige uma igualdade absoluta em todas igualdade por meio da proibição do arbí- as situações, nem se proíbe diferenciações trio. Entretanto, outra corrente doutrinária de tratamento; o que se exige é que as me- aponta contrariamente a tais posicionamen- didas de diferenciação sejam materialmen- tos críticos, esclarecendo que o conceito de te fundadas sob o ponto de vista da segu- arbítrio não define o conteúdo de validade rança jurídica, da proporcionalidade, da 162 Revista de Informação Legislativa justiça, da solidariedade e não se baseiem princípio da igualdade adquire uma di- em qualquer motivo constitucionalmente mensão impositiva concreta27 – ou seja, impróprio. nas situações em que se faz necessária a Mesmo sendo mais detalhadamente criação de uma norma que dê efetividade analisado no item seguinte, por ser perti- a um princípio já expressamente tutelado. nente também a este, convém salientar que De qualquer forma, trata-se de um dever nem sempre as diferenciações de tratamen- jurídico-constitucional imposto ao legisla- to ferem o princípio da igualdade; são legí- dor, que, não o cumprindo, legitima a timas a) quando se baseiam numa distin- censura da inconstitucionalidade por ção objetiva de situações; b) quando tenham omissão. um fim legítimo segundo o ordenamento De nossa parte, concordamos com a per- constitucional positivo; c) quando se reve- tinência de tal imposição legiferante, pois lem necessárias, adequadas e proporciona- esta faz parte, juntamente com as proibi- das à satisfação do seu objetivo25. ções a que nos referimos anteriormente, na direção das demais considerações já expos- 2.4.b.3. Obrigação de diferenciação tas, de um conjunto de posicionamentos em Trata-se de uma concepção “expansio- que se busca o que se entende por igualda- nista” da intensidade vinculativa do legis- de num Estado de Direito Social, cuja mis- lador com relação ao princípio da igualda- são fundamental é realizar a justiça so- de material. Consiste numa dimensão jurí- cial28. Todavia, existe sempre a ressalva de dico-social do princípio em análise, em que que o legislador não deve extrapolar esse se busca uma “efetiva igualdade de chan- seu dever-poder, no sentido de buscar que ces para todos, nas condições ou nas possi- todos sejam iguais, porque efetivamente não bilidades de realização da personalidade o são. E isso se dá porque em Estados De- ético-social de cada um”26. Nessa corrente mocráticos de Direito as pessoas, em tese, doutrinária, acompanhada também pelo têm livre arbítrio de optar pelo estilo de professor Gomes Canotilho, reconhece-se vida que preferem (com mais ou menos uma força vinculativa ao legislador de não estudo, mais ou menos esporte, mais ou somente ter a obrigação de impor tratamen- menos saudável...) e devem assumir tal es- to igual às situações fáticas iguais e desi- colha. O legislador deve atuar na extinção gual às desiguais (mera função normativa, de diferenciações surgidas em face de de- na forma já antes mencionada), mas tam- sigualdades sociais, financeiras, culturais, bém de efetivamente transformar a situa- etc., enquanto originárias de um Estado ção fática de modo a superar as desigual- Social que não atinge adequadamente seus dades reais existentes entre os cidadãos (so- fins; no entanto, quando for o caso das pró- ciais, econômicas e culturais), alcançando- prias pessoas serem desiguais por sua li- se, assim, uma igualdade fática efetiva, que vre e espontânea vontade, entendemos que legitime um tratamento igual sob o ponto nenhum favorecimento destas mesmas de vista jurídico (imposição legiferante). deva haver. Destarte, o princípio da igualdade é tido Por derradeiro, não se deve olvidar que também como uma imposição constitucio- a efetivação da igualdade social, real ou nal dirigida ao legislador de atuar na cria- fática dos cidadãos está intimamente rela- ção de uma efetiva igualdade de oportuni- cionada com o nível de desenvolvimento dades ou de chances entre os cidadãos. econômico-social de um país e, mesmo que A obrigação em questão tem caráter re- o legislador atue adequadamente median- lativo, ou seja, somente quando o legisla- te as imposições que lhe cabem, é certo que dor tiver iniciado a concretização da igual- os cidadãos não possuem uma justiciabili- dade real e efetiva dos cidadãos é que o dade imediata, pois, em sendo ineficiente Brasília a. 36 n. 144 out./dez. 1999 163 o sistema econômico e produtivo do res- 3. Aplicação prática do princípio da pectivo país, por exemplo, não há garantia igualdade. Análise de acórdãos de justiça social prática e efetiva. 3.1. Introdução 2.4.b.4. Princípio negativo de controle Tal como é evidente também em outros Mediante a chamada “função negativa países, os Tribunais Constitucionais de de princípio de controle”, perquire-se se o Portugal e Brasil têm-se ocupado numero- legislador agiu respeitando os limites da síssimas vezes de problemas relacionados sua liberdade conformadora ou constituti- com o princípio da igualdade. À jurispru- va (discricionariedade legislativa), que se dência coube, e cabe, precisar os contornos, traduz na idéia geral de proibição do arbí- fixar o preciso alcance ou valor do princí- trio e da discriminação. Em outras palavras: pio da igualdade (no caso específico deste no caso concreto, o tribunal deverá anali- trabalho, como meio a controlar a consti- sar se essa atitude se revela como discrimi- tucionalidade das normas jurídicas) no caso natória e/ou arbitrária, por desprovida de concreto29. fundamento racional ou material, de acor- Devido à impossibilidade de esgotar a do com a natureza e a situação específica, matéria em face de sua ampla aplicação além dos efeitos visados pelo legislador, prática, optamos por analisar os seguintes cotejados com o conjunto de valores e fins arestos não de uma forma sucinta, de modo constitucionais. a fornecer ao leitor, sobretudo brasileiro, o O conceito de arbítrio é utilizado para máximo possível de informações, não só no expressar o limite do poder e da compe- que diz com o tema específico deste traba- tência do controle judicial. Ou seja, os tri- lho, mas buscando noticiar algumas parti- bunais responsáveis pelo controle da cons- cularidades do regime jurídico português, titucionalidade das normas jurídicas (in tais como a tramitação processual de ques- casu, Tribunal Constitucional de Portugal tões concernentes ao princípio da igualda- e Supremo Tribunal Federal do Brasil) são de, capacidade ativa para pleitear a incons- competentes para tornar as respectivas titucionalidade de determinada norma ju- Constituições efetivas em face de uma eventual violação intolerável do direito. rídica, nomenclatura dos tribunais, etc. Contudo, é vedada qualquer redução na 3.2. Análise dos acórdãos liberdade de conformação do legislador ou na sua discricionariedade legislativa. 3.2.a. Acórdãos do Tribunal Constitucional de Constitui um critério meramente negati- Portugal vo, com base no qual são censurados ape- nas os casos de flagrante e intolerável de- 3.2.a.1. Ac.30 nº 263/98 – Proc. nº 373/95 sigualdade. Significa uma autolimitação (DR31, II série, nº 157, p. 9576) do poder do juiz, o qual não controla se o Em sentença proferida pelo Tribunal da legislador, no caso concreto, seguiu a so- Comarca de Felgueiras, foi fixado um mon- lução mais razoável ou mais adequada tante a ser pago pelo Estado a determina- (sentido lato); a proibição do arbítrio e da dos cidadãos, a título de indenização por discriminação exprime apenas os casos li- expropriação. mite de violação do princípio da igualda- de que merecem censura do tribunal. Com Como a entidade expropriante ainda isso, busca-se evitar a substituição do le- não havia pago o que lhe era exigível, os gislador pelo tribunal, o que transforma- expropriados intentaram junto ao mesmo ria este último em mais um legislador ou Tribunal uma ação de execução de senten- num “superlegislador”. ça visando à cobrança coercitiva desse mon- 164 Revista de Informação Legislativa tante, somado com os respectivos juros de Porto e pelo Supremo Tribunal de Justiça, mora, à taxa de 15% (sendo invocado o ar- infringe vários dispositivos constitucionais, tigo 829º-A, nº 4, do Código Civil). entre eles o princípio da igualdade. Nota- Foram opostos embargos à execução damente acerca desse princípio, diziam os sustentando-se, em síntese, que o proces- recorrentes que um dos seus corolários ló- so de liquidação dos juros não estava cor- gicos é o da igualdade dos cidadãos peran- reto, pois os mesmos somente deveriam ser te os encargos públicos, que foi desrespei- contados desde o termo do prazo a que tado pela interpretação efetuada por esses alude o artigo 100º, nº 1, do Código de Ex- Tribunais, fazendo recair unicamente sobre propriações de 1976, ou seja, após o trân- os ombros dos expropriados o encargo de sito em julgado do acórdão proferido pelo suportar o custo da demora no pagamento Tribunal da Relação do Porto (para onde da indenização em face da expropriação de haviam apelado o município de Felguei- seus bens. ras, na condição de diretamente prejudi- Na fundamentação do acórdão, o Tri- cado pela sentença, e os expropriados, bunal Constitucional menciona que a nor- ambos sem sucesso), e mais, para o efeito, ma expressa no Código de Expropriações deveria ser utilizada a taxa indicada no situa-se no núcleo do conceito constitucio- artigo 86º, nº 2, do mesmo Código. nal de justa indenização por expropriação, Ante a improcedência desses embargos, condensado no artigo 62º, nº 2, da Lei Fun- foi interposto recurso ao Tribunal de Rela- damental. Esse Tribunal manifestou-se no ção do Porto, ao qual foi dado parcial pro- sentido de que o montante da indenização vimento, ratificando a decisão no concer- tem a ver com o conceito de justa indeniza- nente ao início da constituição em mora, ção e que por esse conceito, em casos de sendo os juros devidos apenas após o ter- expropriação, entende-se uma indenização mo do prazo a que alude o nº 1 do artigo total ou integral do sacrifício patrimonial 100º do referido Código de Expropriações. expropriado ou uma compensação plena Tal decisão foi objeto de recurso inter- da perda patrimonial suportada, que res- posto junto ao Supremo Tribunal de Justi- peite o princípio da igualdade, na sua ma- ça, invocando-se a inconstitucionalidade da nifestação de igualdade dos cidadãos pe- norma do artigo 100º, nº 1, do Código das rante os encargos públicos, não apenas dos Expropriações de 1976, na interpretação expropriados entre si, mas também destes dada pelo acórdão da Relação do Porto, por com os não-expropriados. Uma indeniza- violar o artigo 62º, nº 2, da Lei Fundamen- ção justa (na perspectiva do expropriado) tal. Esta Suprema Corte negou a revista ao será aquela que, repondo a observância do recurso dos exeqüentes. princípio da igualdade violado com a ex- Com base nesse decisum, foi interposto propriação, compense plenamente o sacri- pelos exeqüentes recurso junto ao colendo fício especial suportado pelo expropriado, Tribunal Constitucional, tendo como obje- de tal modo que a perda patrimonial que to a constitucionalidade da norma expres- lhe foi imposta seja eqüitativamente repar- sa no aludido artigo do Código de Expro- tida entre todos os cidadãos. priações, na interpretação de que a indeni- Disse ainda o Tribunal Constitucional zação por sentença exarada num processo que de expropriação litigioso só vence juros “o problema do ressarcimento dos após o termo do prazo de 10 dias subse- prejuízos suportados pelo expropri- qüentes à notificação a que esse mesmo ado em conseqüência do atraso do preceito alude. Segundo os recorrentes-exe- pagamento da indenização por parte qüentes, a mencionada norma, na interpre- da entidade expropriante não apre- tação exarada pelo Tribunal da Relação do senta quaisquer especificidades rela- Brasília a. 36 n. 144 out./dez. 1999 165 tivamente às conseqüências jurídi- A/90, efetuada na decisão recorrida que, cas do não cumprimento pontual de por restritiva, teria violado (entre outros qualquer outra obrigação de conteú- dispositivos constitucionais) o estatuído no do patrimonial. Não se vê, na reali- artigo 13º, nº 2, da Constituição Federal. dade, qualquer razão válida para, Novamente, foi negado provimento ao re- com fundamento nos princípios cons- curso. titucionais da justa indenização por Com base nesse último aresto, a recor- expropriação e de igualdade, privi- rente interpôs, então, recurso para o Tri- legiar o expropriado no que toca ao bunal Constitucional com fundamento na eventual atraso na satisfação pontual inconstitucionalidade da interpretação da indenização relativamente ao re- dada pelo acórdão recorrido ao já mencio- gime que, no direito civil, vigora re- nado dispositivo do Decreto-Lei nº 139-A, lativamente a qualquer outra preten- notadamente ao referir que a expressão são creditória insatisfeita”. “provas de exame de Estado previstas no Destarte, o Tribunal entendeu que a Decreto nº 36.508, de 17 de setembro de norma do artigo 100º, nº 1, do Código de 1947, e legislação subseqüente” constante Expropriações de 1976 não viola os artigos daquele normativo não abrangia à situação constitucionais invocados pelos recorren- da recorrente (que à mesma não se aplica- tes, entre os quais o 13º, nº 1, nem qual- va a progressão prevista nesse dispositivo), quer outra norma ou princípio da Carta apesar de a mesma ter realizado todos os Magna. concursos de habilitação para professores de Canto Coral previstos nos artigos 249º 3.2.a.2. Ac. nº 1186/96 – Proc. nº 130/95 e seguintes deste último decreto mencio- (DR, II série, nº 36, p. 1833). nado como forma de integração na carrei- Determinada professora aposentada ra docente. Interpretação restritiva essa de Canto Coral interpôs, junto ao Tribu- que estaria, entre outras violações consti- nal Administrativo do Círculo de Lisboa, tucionais, estabelecendo tratamentos dife- recurso contencioso de anulação da reso- renciados e discriminatórios, em afronta lução da Direção dos Serviços de Previdên- ao disposto no artigo 13º, nº 2, da Carta cia da Caixa Geral de Depósitos, do dia 27 Magna. de julho de 1992, que fixou sua pensão de O Tribunal Constitucional entendeu aposentadoria com base no vencimento do que a interpretação da norma constante 7º escalão, índice 226, da estrutura de car- no aludido artigo 129º, nº 3, efetuada no reira docente instituída pelo Decreto-Lei aresto atacado, não havia sido restritiva, nº 409/89, de 18 de novembro. Alegou que, mas sim declarativa, uma vez que, ao in- com base nos termos do artigo 129º, nº 3, terpretar no sentido de que os concursos do Decreto-Lei nº 139-A/90, de 28 de abril, de habilitação referidos nos artigos 249º e deveria ter progredido ao 9º escalão, com seguintes do Decreto nº 36.508 não são dispensa de candidatura, uma vez que idênticos aos exames de Estado regulados havia realizado com sucesso o concurso nos artigos 238º e seguintes deste mesmo de habilitação para professora de Canto diploma, tal como o tinha feito o ato ad- Coral. ministrativo que foi objeto de impugnação Foi negado provimento a esse recurso, contenciosa, a extrair daquela norma um o que ensejou a interposição de um recur- sentido correspondente à letra e ao espíri- so jurisdicional para o Supremo Tribunal to da lei, não foi feita qualquer restrição à Administrativo, invocando a inconstituci- letra da lei, antes declararam o sentido onalidade da interpretação dada à norma lingüístico coincidente com o pensar le- do artigo 129º, nº 3, do Decreto-Lei nº 139- gislativo. 166 Revista de Informação Legislativa
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