O sábio-aprendiz e o efêmero lugar da escrita: para uma ética da inventividade acadêmica Tomás ValleraI Ana Luísa PazI Resumo Este texto procura abrir a possibilidade de se discutir, em conjunto, os processos próprios da escrita, vividos individualmente, mas partilhados na condição comum de alunos de doutoramento. Trata- se de promover uma discussão intensiva em torno dos bloqueios históricos que atingem a produção e a circulação dos textos acadêmicos, a partir de conceitos emanados de duas teses em história da educação. Nomeadamente, identificou-se em cada uma delas instrumentos singulares que realizam essa ligação entre o passado e o presente da ontologia da aprendizagem, a saber, os conceitos de polícia e de gênio. Apresenta-se a desnaturalização dessas noções do presente como solução local, artesanal e inteiramente irrepetível destinada a suspender a permanência histórica de figuras incapacitadas pela posição de autoridade e de ingenuidade em que se instalaram no processo de escrita inventiva. Em primeiro lugar, procurou-se pensar um conceito de polícia que permitisse analisar o problema da autoridade no sábio. Em segundo lugar, pretendeu- se identificar no gênio um aprendiz ingênuo. A partir desse duplo deslocamento, extraímos generalizações imputáveis à nossa escrita, contornando a segurança de quem fala (sábio) e o medo de quem escreve (aprendiz) com a personagem ambivalente do sábio- aprendiz, imagem do estatuto efêmero do pesquisador e do escritor recém-legitimado ainda por consagrar. O debate apoia-se no convite lançado pela literatura pós-estruturalista ao equacionar a vida enquanto obra de arte, traduzido aqui na possibilidade de refletir criticamente a respeito da virtualidade de se ser, simultaneamente, o sujeito e o objeto do seu próprio texto. Palavras-chave Pós-graduação — Escrita acadêmica — Inventividade. I- Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal. Contatos: [email protected]; [email protected] Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 2, p. 483-498, abr./jun., 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014061415 483 The scholar-apprentice and the ephemeral locus of writing: for an ethics of academic inventiveness Tomás ValleraI Ana Luísa PazI Abstract This article attempts to open up the possibility of debating the writing process as both an individual and shared academic experience. It proposes a discussion on the historically contingent hindrances that affect the production and circulation of academic texts, based on specific concepts drawn from two dissertations in the field of history of education. Both provide conceptual tools aimed at displaying the connection between past and present ontology of education: the notions of police and genius. The denaturalization of these contemporary notions is used as a topical, tailor-made solution devised to temporarily suspend the historical endurance of two familiar characters: the scholar and the apprentice. It is further argued that these polarized and complementary personae are incapacitated by the positions of authority and ingenuity in which they have been cast in relation to the creative process. First, a particular concept of police is devised to analyze the subject of the scholar’s authority. Secondly, the genius is identified as a naïve apprentice. As a result of this exercise, it became possible to circumvent both the certainty of the scholar’s prescriptive discourse and the inexperienced student’s fear of writing by resorting to the ambivalent image of the scholar-apprentice: the ephemeral status of the writer when conducting his research. This dialog is rooted in the post-structural perception of life as a work of art, interpreted as the ability to critically ponder the possibility of simultaneously embodying the subject and the object of one’s own writing. Keywords Graduate studies — Academic research — Inventiveness. I- Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal. Contacts: [email protected]; [email protected] 484 http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014061415 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 2, p. 483-498, abr./jun., 2014. Somos ao mesmo tempo o sábio e o para analisar traços concretos do escolar, aprendiz da tese que escrevemos: espera-se de experimentamos, afinal, um mesmo olhar. nós a produção de um saber, mas não conhecemos Trata-se sempre de mostrar, com essa ainda esse saber, é necessário partir em busca dele. tribo teórica, que a historiografia é menos a Este texto presume que a construção de uma tese demonstração de uma verdade a desocultar e mais implica um gesto de afastamento em relação ao a criação de novas esferas para o pensamento. que já é conhecido, o esboço de um movimento No limite, o próprio tempo histórico apresenta- de sentido contrário a um dizer banal e recidivo. se como criação e suspensão. Todo esse modo Assim, o sábio-aprendiz – alguém que estuda de escrita vive do princípio do encontro e do um problema específico e só em nome dele se auxílio mútuo entre pensamentos, interligados autoriza a falar – depara-se na escrita da sua tese por um artesanato delicado que não sobrevive com dificuldades comuns a sábios e aprendizes. ao finalizar de cada texto. Longe de tentar sistematizar aquilo que deve A confluência com os autores eleitos distinguir essas duas personagens entre as quais convida à criação de grupos de trabalho tecidos vai oscilando, o investigador permite-se apenas de raiz para enfrentar os bloqueios do processo discorrer a respeito daquilo que inevitavelmente criativo. Numa dobra dessa inspiração, instala- as aproxima: o desejo de escrita. Tomando como mos uma célula combativa que vive do diálogo ideia fundadora a vontade de escrita, para tornar a quatro mãos em tempo limitado. Partimos, mais presente tanto aquilo que o aflige como cada um de sua investigação, esperando que as aquilo a que almeja, vê-se impelido a formular fragilidades singulares potenciem uma comum um problema universal do gesto criativo. produtividade reflexiva. Aqui, o consolo de não Esse sábio-aprendiz convoca outras pensar sozinho participa numa pragmática e figuras concetuais quando elas mesmas aludem numa ética do processo de construção da escri- à peculiar condição de sujeito da escrita. Vê- ta. Por todas essas razões, propomos um percur- se acompanhado nessas questões por uma so em que a exigência do conclusivo dá lugar à série de autores que lhe permitem imaginar experiência vívida do tangencial. formas inventivas de combate aos problemas da escrita acadêmica – Espinosa, Nietzsche, A polícia da opinião: reflexões acerca Kafka, Blanchot, Deleuze, Barthes, Foucault. da improdutividade na escrita acadêmica No encontro com eles, numa apropriação assumidamente parcial e utilitária, o próprio O que se segue é uma reflexão em torno pensamento vai-se fazendo mais potente e de duas interrogações que, emparelhadas, inclinado à problematização. configuram um mesmo problema: Como ter Acompanhados de uma utensilagem uma ideia? Como esquivar-se a um dizer banal? teórico-metodológica que pensa a escrita no Sugere-se, em primeiro lugar, uma interpelação seu exercício mesmo, ensaiamos um gesto de ao desejo de escrita a partir da construção de problematização unívoco, traçado a partir de uma ideia. Em segundo lugar, propõe-se uma pesquisas diferentes. Embora uma – A polícia abordagem à rarefação da escrita a partir do como engenharia social da vida (1780-1834): problema do dizer banal. a Casa Pia de Lisboa e a escolarização do A composição de uma ideia a respeito órfão desvalido (VALLERA, 2012) – parta do da escola e de sua origem policial pressupôs o esmiuçamento do conceito de polícia para o deslocamento a um tempo antes do nosso, onde dilatar numa teorização geral e outra – Ensino o conceito de polícia se encontrava na fronteira da música em Portugal (1868-1930): uma entre o adjetivo e a função. A Intendência- história de pedagogia e do imaginário musical Geral da Polícia, fundadora da Casa Pia de (PAZ, 2013) – use a ideia abstrata de gênio Lisboa – estabelecimento criado em 1780 por Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 2, p. 483-498, abr./jun., 2014. 485 Pina Manique como um misto de prisão, casas órfão desvalido (1780-1834), o objeto de de correção e oficinas de lavores para órfãos, estudo foi-se constituindo como estratégia de prostitutas e jovens delinquentes – marca o aproximação a um conjunto de temas exógenos momento histórico em que o conceito de polícia a uma historiografia tradicional da polícia. foi definitivamente institucionalizado. Até ao Essa historiografia pressupõe certos pontos de século XVIII, em Portugal, esse conceito não partida inquestionados, que formam desde logo definia um sujeito único, um objeto exclusivo a antecâmara de qualquer pesquisa: a cidade ou uma área de conhecimento delimitada. Pela e a segurança pública; o Estado moderno e a diversidade de campos em que era aplicado, formação do seu aparelho administrativo; o devolve-nos apenas a ideia geral de uma relação progresso histórico em direção a uma força harmoniosa entre os ditames da autoridade e os policial moderna e razoável. modos de se conduzir dos sujeitos ou grupos A operação consistiria em observar a sobre os quais ela se exercia. Tínhamos, assim, polícia como tecnologia, o que significa que não a polícia das nações, a polícia cristã, a polícia se definiria a partir de um sujeito, uma função dos mosteiros, a polícia da escrita (de cartas e específica ou um saber especializado, mas que missivas), a polícia do trato (na corte). estaria ela própria envolvida nas lutas, nas Quando Camões (2000, p. 463), no canto regulamentações e nos processos de naturalização X dos Lusíadas, alude a uma Europa cristã “mais que constituem o próprio solo de onde brotam alta e clara que as outras em polícia”, refere-se esses mesmos sujeitos, funções e saberes. não tanto às leis dos soberanos ou à conduta Para tornar mais claro esse campo de um bom cristão, mas, sobretudo, a um tecnológico, foi necessário proceder às avessas, bom casamento entre determinadas formas de descrevendo o modo como se constituíram governar e determinados modos de se conduzir: historicamente esses três vetores que enformam a isso se chamará mais tarde civilidade. a nossa relação com o gesto policial: 1) a A Intendência-Geral da Polícia permite- segurança pública como necessidade natural e -nos refletir não tanto a propósito do nascimen- intemporal de defender a sociedade combatendo to da polícia enquanto força do Estado moderno os flagelos sociais; 2) o princípio segundo o ou, no inverso, a respeito de um modo absoluto qual o poder de policiar advém do Estado e é de policiar que desapareceria definitivamente determinado pela estrutura e pelas caraterísticas sob o regime liberal, mas acerca da institucio- desse Estado; e 3) a noção de que o bem, a nalização desses modos múltiplos de produzir civilização, as luzes, triunfam sobre o mal, a a homogeneidade em determinados grupos po- libertinagem e a ignorância, numa trajetória pulacionais. Incidir sobre o conceito de polícia virtuosa e linear. Isso acontece por via de dois tornar-se-ia, desse modo, uma perspetiva com grandes conjuntos discursivos: i) o que se vista a desinstitucionalizar e dessubjetivar uma insurge contra a fraqueza moral, a ociosidade história profundamente marcada pelo traçado e as más inclinações naturais do homem; ii) evolutivo do problema da segurança pública e a o que protesta contra um regime de verdade tornar mais presentes, na sua estranheza, alguns alternativo, errado nas suas premissas, deletério dos mecanismos que aproximam o gesto educa- para os homens e para a vida em sociedade. tivo moderno – a escolarização – das estratégias Daqui emergem duas figuras: o policial, que se de produção da conformidade. Construir uma dá por tarefa defrontar a transgressão na cidade ideia, por essa via, seria consentâneo com um independentemente da natureza dos regimes exercício de autorreflexividade. políticos; o homem de Estado e o revolucionário, Na hipótese de investigação da tese figura dúplice que trava o combate às ideias A polícia como engenharia social da vida: perniciosas do adversário de acordo com uma a Casa Pia de Lisboa e a escolarização do lógica oposicional do poder. 448866 Leila Giandoni OLLAIK e Henrique Moraes ZILLER. Concepções de validade em pesquisas qualitativas. Poderíamos imaginar Diogo Inácio de decreto real, com o estabelecimento de uma Pina Manique, intendente-geral da polícia força policial profissional na cidade de Lisboa: o durante o reinado de D. Maria I (entre 1780 e fim do sistema de quadrilheiros, a implantação 1805), como a figura que reúne historicamente da Intendência-Geral da Polícia (1760). os dois primeiros princípios da polícia: a Está assim feita a articulação: ali onde luta contra o flagelo social e a polícia como se formam poderes de vocação pública, nasce derivação natural da autoridade e soberania do a necessidade de garantir a tranquilidade de Estado moderno. O mais célebre intendente foi todos, e ali onde um Estado com caraterísticas simultaneamente rigoroso defensor do ethos modernas se constitui, cria-se a polícia como monárquico e minucioso detetor das condutas instituição independente, dotada de poderes desviantes na cidade. específicos, formando um corpo de agentes Não seria desacertado afirmar que que tem por função assegurar a segurança dos o governo josefino foi o primeiro grande indivíduos integrados na coletividade. O devir historiador da polícia, o fundador dessa narrativa polícia vem por arrasto ou como consequência diacrónica do desassossego público e das suas de um devir moderno do Estado. respostas institucionais. A compilação intitulada Um terceiro princípio vem juntar-se a Leis a que se refere a da polícia, reunida no esses dois. O seu período de gestação inicia- rescaldo do terremoto de 1755 como referência -se no seguimento da revolta liberal do Porto para um conjunto de medidas de emergência e da guerra miguelista (1820 e 1828-1834), tomadas em contexto de catástrofe, seria assim embora se constitua como discurso historio- o primeiro repositório dessa relação dialética gráfico apenas na passagem para o século XX. da criminalidade com os poderes públicos. Determina essa interpretação que “a institui- Esse compêndio seria de seguida anexado à ção da Intendência-Geral da Polícia [entra] em Lei da Polícia de 1760, formando com ela – e contradição com o sistema de governo consti- fazendo nela culminar – uma história contínua tucional da monarquia portuguesa”, devendo do desregramento social e da insuficiência do ser abolida, para que as comissões de que se sistema de quadrilheiros para o combater. encarregava fossem entregues a um serviço Desde essa pesquisa do Estado sobre si público “regularmente desempenhado por au- mesmo que a segunda metade do século XVIII toridades constitucionalmente estabelecidas” nos legou – indo ao fundo dos arquivos recuperar (SARMENTO, 1822, p. 50). uma narrativa de sucessivas frustrações e A imperfeita polícia é o produto e a tornando, nesse mesmo gesto, legítima e marca de um Estado mal governado. Sob uma sequencialmente lógica uma nova abordagem organização do Estado fundamentalmente errada da arte de governar – que a história da polícia nas suas premissas, a polícia não poderia senão não mais se libertou desses dois princípios representar uma modalidade injusta de governo: que a animam: 1) uma progressão linear que o braço armado de uma vontade de poder. desde a Idade Média se faz em direção a um Porém, inserido numa lógica liberal- objetivo que, no entanto, nunca se consegue -constitucional, o gesto policial irá, natural- alcançar; 2) o momento de consumação, onde mente, significar uma outra coisa. Um servi- a emergência de estruturas fundamentais ço público sob escrutínio de representantes do Estado moderno possibilita a eclosão da eleitos não poderia ser análogo a uma força verdadeira polícia, que havia sempre estado que, a pretexto de garantir a segurança pú- presente em condição embrionária, impedida blica, servia os interesses privados do prínci- de se desenvolver pela confusão própria das pe. Desvirtuamento do Estado, lenda negra de antigas leis. Desenvolvimento da administração Pina Manique. Nasce, em consequência, a ini- da coroa no espaço urbano que culmina, por ciativa legislativa com vista a desmontar todo Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 2, p. 483-498, abr./jun., 2014. 487 o aparelho megalômano da Intendência-Geral afloração na lei e no discurso historiográfico. da Polícia1. As suas diversas competências se- Descrita essa homogeneização da narrativa rão descentralizadas e distribuídas por dife- histórica, importa compreender de que forma rentes instituições (SARMENTO, 1822, p. 51). é que a ideia de polícia enquanto construção A designação de polícia iria, nesse pro- da conformidade poderia ser aplicada à escola. cesso, ganhar o seu sentido contemporâneo. Essa noção abstrata, de cariz tecnológico, vai Perdendo alguns dos seus atributos para di- tomar a polícia não como instituição, sujeito ferentes órgãos administrativos, conservaria coletivo ou modo de governar o Estado, mas aquilo que, daí em diante, se viria a confun- como adjetivo designando a qualidade daquilo dir com a sua própria identidade: o não insti- que é bem governado. tucionalizado, o gesto proibitivo devidamente Esse efeito observável de um bom enquadrado no organograma do Estado demo- governo caraterizar-se-ia pela harmonia crático. Não mais o Estado de polícia, onde as decorrente da conformidade entre a conduta atividades dos homens eram submetidas a um dos governados e os objetivos de quem governa. policiamento superestrutural, mas uma polícia Assim, a Intendência-Geral da Polícia não que serve o Estado na área específica e bem de- se confundiria com a polícia em si, mas limitada da segurança pública. configuraria um modelo institucional ativado Mas esse princípio da rejeição da polícia no sentido de a alcançar. A polícia não mais absolutista é complementado por um discurso como uma coisa que age, mas como algo que se de sentido inverso. Se é certo que o regime persegue. Nessa persecução, vão ser reclamados liberal condena com veemência o despotismo, para as práticas de governo instrumentos na realidade, dispõe-se a elogiá-lo quando múltiplos de produção da homogeneidade. se trata de valores considerados absolutos, Desse ponto de vista, o que podemos observar exógenos ao enfrentamento ideológico, como com uma história da polícia é uma narrativa seja a ordem pública, a questão educativa ou a que associa a estratégia de enfrentamento da profilaxia urbana2. coroa contra os seus concorrentes na cidade Assim, à naturalidade da função e à ori- (clero, nobreza, senado de Lisboa) – pregando ginalidade do Estado viria aglutinar-se a ideia as virtudes da segurança pública em detrimento de que o destino da nação estaria indissociavel- dos males da jurisdição privativa – aos primeiros mente irmanado ao afloramento do progresso escritos referentes a uma engenharia social da e da liberdade. E que, mesmo no caso extremo vida (tratados de polícia do século XVIII) e do déspota, era ainda assim possível ver a parte aos modernos processos de escolarização. Três elucidada do seu espírito escapar-se em direção momentos de homogeneização que confluem a um futuro promissor, seguindo o caminho das na ação da Intendência-Geral da Polícia. luzes, enquanto o velho edifício gótico se desmo- A Casa Pia de Lisboa foi sem dúvida o ronava na escuridão circundante. primeiro local privilegiado dessa experimen- Foram identificadas as traves-mestras tação orientada para um devir-escola em solo que compõem a nossa ideia contemporânea de nacional. A escolarização da Casa Pia de Lisboa polícia, com os seus respectivos momentos de durante as suas primeiras décadas de existên- cia constituiria, nesse sentido, não apenas um 1- “Semelhante estabelecimento [Intendência-Geral da Polícia] sempre me pareceu um monstro e um instituto perigosíssimo porque, debaixo exemplo excepcional, como também um acon- de formas e aparências de legalidade, se opunha à justiça e à razão”. tecimento pragmático em todos os níveis. (SARMENTO, 1822, p. 327) Não obstantes as dificuldades de 2- “[…] [o] Intendente da Polícia Pina Manique, que tantos serviços prestou à cidade de Lisboa.” (MARGIOCHI, 1898, p. 268); “Mande S. Exa. financiamento de que sempre havia sofrido e […] a dotação do material de ensino às escolas industriais, para que não se os problemas logísticos que reiteradamente a levante contra S. Exa. a memória de Pina Manique […] que foi um grande homem…” (NOGUEIRA, 1903, p. 19) assolavam – tendo sido desmantelada pelas tropas 448888 Leila Giandoni OLLAIK e Henrique Moraes ZILLER. Concepções de validade em pesquisas qualitativas. francesas quando da ocupação do Castelo de São autores, uma das caraterísticas da consciência é Jorge, deficientemente realocada em 1811 no a de produzir formas de reflexão desajustadas: Convento do Desterro e, finalmente, refundada no Mosteiro dos Jerônimos em 1834 – essa instituição, as condições sob as quais conhecemos e temos originalmente pensada e tutelada por um organismo consciência de nós próprios condenam-nos do Estado entretanto extinto e frequentemente a ter ideias inadequadas, ideias confusas e vilipendiado, manteve-se obstinadamente de mutiladas, efeitos separados das suas causas pé. O caráter tecnológico dos jogos de poder (DELEUZE, 1988, p. 19). assegurou a esse modelo – o modelo escolar – uma absoluta impermeabilidade em relação às lógicas Imaginemos por um instante que essa adversariais da trama política. ideia de consciência pudesse ser usada como Os três princípios a que se submete ferramenta para diagosticar alguns aspectos o historiador da polícia – a polícia como da nossa contemporaneidade. Um dos aspectos necessidade ou emanação natural da sociedade, que ela poderia iluminar seria a distribuição e a polícia institucionalizada a partir da o posicionamento de indivíduos ou grupos no centralidade do Estado e o lugar privilegiado e debate público acerca de realidades institucionais. moral do sujeito da narrativa – são os mesmos Como formamos opinião sobre instituições preconceitos que entram em jogo no debate como o Estado, a escola, a polícia, e as defendemos público sobre as nossas instituições. Dentre em público? Que ideias são essas trazidas a debate essas instituições, destaca-se a escola. pelo legislador, pelo especialista ou pelo intelectual A escola seria aquele objeto de estudo que, a respeito de assuntos que dizem respeito a todos por há quase dois séculos nos ter vindo a fabri- nós? E de que modo nos identificamos com essas car enquanto sujeitos de conhecimento, teria se mesmas opiniões que versamos, em sintonia ou tornado ininteligível do ponto de vista cognitivo. desacordo com um fazedor de opinião? Nas palavras de Nietzsche, é precisamente aqui- O que mais nos impacta nessa lo que conhecemos e que vivemos com a natu- interrogação – como formamos as opiniões ralidade do que é vulgar que mais se obnubila que tomamos como nossas? – é o fato de ela a qualquer proposta de conhecimento: “o que é ser tão pertinente na contemporaneidade de conhecido é habitual; e o habitual é o mais di- Espinosa, como o foi na de Deleuze e continua fícil de conhecer: isto é, de ver como problema a ser hoje. É sempre possível indagar-se sobre [...] de ver como estranho, afastado, ‘fora de nós’” esse assunto, independentemente da época ou (NIETZSCHE, 2000, p. 242). da instituição em causa. A escolarização aparece, então, como um Nesse ponto, retomemos os dois processo duplamente policial, não só porque pensadores. Como age, então, a consciência? investe esforços na produção de populações A consciência vê os efeitos que sobre ela agem crescentemente homogêneas, mas também como causas da situação em que se encontra. porque, pela sua proximidade à experiência Em vez de partir em busca das causas, “satisfaz de vida do sujeito, talvez seja a instituição a a sua ignorância invertendo a ordem das coisas, propósito da qual proferimos, quotidianamente, tomando os efeitos por causas” (DELEUZE, 1988, o maior número de asserções impensadas. p. 20; trad. nossa). Que significa isso? Significa Espinosa, enquanto personagem que, por exemplo, nas discussões a respeito da concetual invocada na escrita de Deleuze, escola pública, o especialista educacional, o oferece-nos uma possível chave de leitura para intelectual – o cidadão – tendem a confundir compreender a correlação entre o dizer trivial os efeitos da instituição com as causas do seu e a rarefação da escrita: a distinção entre atraso ou da sua ineficiência. No debate, muitas consciência e pensamento. De acordo com esses vezes acirrado, entre reformistas – que prometem Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 2, p. 483-498, abr./jun., 2014. 489 um futuro melhor à escola e às necessidades de poder policial. Registre-se, enfim, nessa mesma cada aluno, apoiando inovações nos métodos polêmica, a existência de campos simétricos de ensino-aprendizagem – e críticos da escola inamovíveis, inquietados com a eventualidade afetiva e não-diretiva, geralmente associada do desmoronamento moral e social e ao termo pejorativo de “eduquês” – nostálgicos envolvidos numa disputa infindável pela alma que idealizam a escola que frequentaram como do Estado a partir de posições de privilégio em inteiramente diferente; mais erudita e disciplinada que o lugar do sujeito na discussão se encontra do que a do presente – os dois campos digladiam antecipadamente determinado. Novamente: argumentos que, tendo-se complementado a fatalidade da desordem, a centralidade do durante gerações, estão de fato na base do sucesso Estado, o lugar privilegiado e moral do sujeito. e da expansão da instituição ao longo dos últimos Como se pode compreender, uma contenda dois séculos (Ó, 2003, p. 17-19). levada a cabo nesses termos dificilmente No universo do debate de opiniões, origina um campo fértil para o pensamento, da consciência espinosista, ou na sociedade onde seja possível conjeturar novas conversas dos adultos orientada para a ação eficaz – a sobre a realidade educativa. que Kafka, segundo Bataille (1998, p. 136), Esse universo dual é o nosso: falamos a opunha a puerilidade da escrita – as causas da linguagem da simetria. Perante essa esterilidade decadência, da degenerescência, da ineficácia discursiva, uma das tarefas do pensamento e da incompetência encontram-se sempre nos seria justamente a de tentar descortinar, para outros; no erro, na falta, na incapacidade dos lá daquilo que em consciência já dizemos, outros. Será a partir desse efeito de incômodo da os pontos de proveniência e constituição da ação perniciosa dos outros sobre a consciência atmosfera altamente rarefeita que habitamos na de quem a sofre que se determinará a causa ilusão da completude e da universalidade. ou a origem dos males que afetam a sociedade Num texto recente a respeito da violência como um todo. Para os nostálgicos, é com a escolar, publicado numa coluna de opinião, infeliz aliança entre educadores afetivos e não- o filósofo José Gil (2010, p. 26) denuncia o diretivos e uma infância sem rumo que nasce “contexto geral de indisciplina” nas escolas, a crise da educação. Simetricamente, é com onde regularmente se assiste ao “desrespeito e uma ideia de escola disciplinadora e autoritária, violação das regras que devem assegurar uma aliada a uma infância naturalmente ingênua e aula normal e das regras tácitas de conduta de carenciada de luzes, que, para alguma expertise um ser em sociedade”. Acrescenta que o clima educativa, compromete-se qualquer processo de “bárbaro” não permite muitas vezes “a mínima aprendizagem e se hipoteca irremediavelmente aprendizagem”. As razões: a “demissão dos o futuro. pais”, a “violência que atrai os adolescentes” e Reencontramos aqui o polícia, o homem a “desagregação da autoridade dos professores”. de Estado autocrático e o revolucionário A causa profunda: operando conjuntamente no interior do mesmo sujeito, denunciando nos alunos as uma política laxista e ignorante do que é perniciosas inclinações naturais dos homens ensinar e educar, feita mais para reduzir sem rumo e nos adversários políticos o as despesas do Estado e facilitar a vida potencial devastador das ideias erradas e dos aos pais do que para formar e transmitir maus princípios educativos. Assim se tem conhecimento aos filhos. (GIL, 2010, p. 26) vindo a conduzir o debate público nas nossas sociedades liberais-republicanas, onde uma Alerta-nos igualmente para o risco de nova personagem democrática veio ocupar profanação dos saberes que toda essa situação o lugar dessas outras figuras arquetípicas do deixa adivinhar: 449900 Leila Giandoni OLLAIK e Henrique Moraes ZILLER. Concepções de validade em pesquisas qualitativas. Uma política que tanto deseja uma da autoridade conferida pela identidade: filósofo. “sociedade do conhecimento” [...] pouco No entanto, o que ele nos diz é tão facilmente ou nada faz para impedir a desdignificação reconhecível por todos como o conteúdo de uma ou dessacralização do conhecimento. conversa corriqueira sobre a atualidade. Por que A violência que circula livremente nas aceitamos ouvir o que já sabemos na fala dos escolas deriva também da ignorância dos nossos intelectuais? E como é que essa fixação do alunos e da negligência (ignorância) dos intelectual a um lugar identitário e de autoridade responsáveis. (GIL, 2010, p. 26) faz parte, muito para além dele próprio, de um problema geral de rarefação da escrita? Sem dúvida que se trata de uma opinião Tudo se passa como se convivessem comum, de vasta circulação, da qual nós pró- pacificamente a dimensão do pensador como prios somos muitas vezes agentes e locutores. O criador, ou sujeito de um ato de criação escrita, e a que persiste no horizonte do pensável é, ainda, dimensão do sábio enquanto autoridade que tem o sonho iluminista de uma escola pacificada, algo a dizer sobre e pelos outros. Como se existisse transmissora de um conhecimento imperturba- uma ponte, pouco discutida na academia, entre o do, onde a autoridade dos professores se exerce medo de errar do aprendiz e a segurança de si na justa medida em que, diante dela, se manifes- mesmo daquele que ocupa o lugar de autoridade. ta a disciplina dos alunos – transitando, por fim, Em situações distintas, ambos tendem a contornar entre uns e outros, um conhecimento dignificado a escrita a favor da escrevência: por todos. O problema, que está longe de ser ex- clusivo do nosso tempo, é o fato de a escola per- A escrevência seria o estilo daquele que sistir tal como é independentemente de qualquer escreve julgando que a linguagem não é mais opinião que sobre ela se tenha: não será por se do que um instrumento e que não tem que imaginar que ela se foi desvirtuando a partir de se debater com a sua própria enunciação; uma origem imaculada, e que por isso terá hoje a escrevência é o estilo daquele que recusa menos capacidade de produzir filósofos como o propor o problema da enunciação e julga que assina o texto, que a sua estrutura ou utili- que escrever é apenas encadear enunciados. dade serão postas em causa. Essa constância da [...] Nesse caso não há, evidentemente, instituição parece assentar precisamente no fato texto. (BARTHES, 1974, p. 31) de ela mesma produzir as condições para que, ge- ração após geração, os livres-pensadores repro- O escrevente de Barthes seria aquele duzam o discurso da sua inexorável decadência. que não põe em risco a solidez da sua própria Existe aqui um paradoxo suplementar: condição de sujeito pleno; aquele cujo nunca se tem a certeza absoluta se o filósofo movimento de escrita não desloca consigo o deseja uma escola onde se produzam pensadores sujeito e as suas mais empedernidas convicções: como ele, tornando assim o seu estado de exceção aquele que não está, no fim de contas, envolvido e de denúncia uma coisa obsoleta; ou se prefere no ato de escrita. esse mesmo estado de privilégio a partir do qual Ao confrontar-se com a imensidão de um pode civicamente denunciar as imperfeições de projeto de escrita que o assusta, o investigador uma instituição sempre em crise porque sempre de pós-graduação desorganiza-se, aflige-se, em em falta. O que acontece no referido artigo é muitos casos, desiste. Mas, quando não o faz, algo que se verifica periodicamente no espaço sente-se logicamente atraído pela segurança de público: solicitar-se, a quem tenha por ofício dizer a coisa certa: é nos autores que lê e que uma atividade intelectual, uma intervenção de foram já reconhecidos, autorizados, ou até mes- cariz cívico sobre problemas que nos afetam a mo no orientador de tese, que espera ouvir a voz todos. Estamos, nesse caso, perante todo o peso da ordem que organize finalmente a sua escrita. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 2, p. 483-498, abr./jun., 2014. 491 Mas também o filósofo ecoa a coisa O conceito de gênio como revelia à certa, porque também ele pede emprestado à instituição escolar instituiu-se algures nos escola o discurso que há quase dois séculos a finais do século XVIII. Difundido a partir do propaga e fortalece: o discurso decadentista, romantismo alemão, vigora ainda hoje. Mas a voz da sua própria idealização. Também ele vinculação entre o gênio e o escolar exprime-se contorna a escrita, embarcando na reiteração numa falsa relação de confronto, uma vez que de um diagnóstico que não mais cessou de esse gênio que parece escapar à formalidade das reverberar no debate público desde que as elites aprendizagens não existiria como fenômeno intelectuais do século XIX o formularam, na fora da linguagem escolar. mesma centúria em que se fundou e delegou Quando se analisa historicamente o o projeto da escola pública para a posteridade. conceito e se almeja reconstituir a sua semântica, Julgamos que o único refúgio entre a em particular no Portugal dos finais do século angústia da solidão de quem está a começar e a XIX a inícios do século XX, recupera-se um certeza do sábio que se autoriza e é autorizado núcleo de significados onde cada gênio musical a falar de tudo no espaço público – exceto da foi sendo construído numa sobreposição de sua condição enquanto autoridade ou das justificativas dessa genialidade. Escapar a uma suas dificuldades de escrita – é a aceitação do historiografia secular que mais não faz senão jogo do erro e da errância de escrever, essa reificar, sem questionamento, a galeria de aventura difícil para a qual precisamos mais de gênios implica desde logo ver o gênio atribuído companheiros e ouvidos críticos do que de donos a cada indivíduo como uma modalidade de da verdade. Entendemos que o investigador expressão, entre outras possíveis. Desse modo, carece disso mesmo – dessa concentração nos olhar para o gênio como uma discursividade aspectos propriamente artesanais da escrita: ter obriga a desocultar o produto acabado em coragem de abandonar uma ideia, experimentar que se tornou e apreender os modos como foi diferentes abordagens a um problema, deixar os produzido. Assim se descobre no gênio o mais problemas transitarem para o interior de outros, perfeito aprendiz, aquele que dispensa a escola não ter medo de dizer qualquer coisa ao lado – porque já incorporou a sua gramática. para se conseguir proteger; para não fracassar Esse segundo exercício de escrita perante os desafios de uma experiência que ainda interroga a formação do escolar a partir do caso não deixou de ser, na essência, uma experiência do ensino especializado de música e procura as da solidão. Porque, precisamente, não existe um regras implícitas no jogo discursivo a partir da fora dessa escola que faz de todos nós aprendizes construção de um suplemento da realidade, o angustiados e filósofos da banalidade. gênio. A investigação genealógica de Ensino da música em Portugal (1868-1930): uma história O medo do gênio: para um combate de pedagogia e do imaginário musical incide, à solidão na escrita acadêmica desse modo, em contraluz sobre o ideário comum a toda a pedagogia moderna, verificando que Nessa reflexão, configuram-se duas novas essa encontrou formas altamente eficazes de interrogações que se acoplam aos mesmos proble- rarefazer a excelência educativa. mas de escrita enunciados anteriormente: De que Por meio dessa imagem do gênio é feito o nosso medo da escrita? Como enfrentar a – polissêmica, difusa, modelar – articula- sua solidão? A partir de uma investigação a respei- se um quadro orgânico do todo do ensino to da ideia de gênio no ensino musical, interpela-se musical, estabelecido entre dois aparentes a vontade de escrever do ponto de vista dos impe- contrários, onde se estipendiam, de um lado, o dimentos causados pelo medo de ser incapaz e pela pensamento científico sobre o ensino musical, solidão a que remete a escrita acadêmica. traduzido pela psicopedagogia, e, de outro, o 449922 Leila Giandoni OLLAIK e Henrique Moraes ZILLER. Concepções de validade em pesquisas qualitativas.
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