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o Rio de Janeiro de Diva, Lucíola e Senhora PDF

15 Pages·2011·0.09 MB·Portuguese
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Nos caminhos da pena de um romancista do século XIX: o Rio de Janeiro de Diva, Lucíola e Senhora On the paths of a novelist in the 19th century: the Rio de Janeiro of Diva, Lucíola and Senhora Ana Carolina Eiras Coelho Soares* Resumo Abstract O presente artigo busca entender as rela- This article seeks to understand the rela- ções entre os espaços urbanos do Rio de tions between urban spaces in nine- Janeiro oitocentista e as relações de gê- teenth century Rio de Janeiro and the nero expressas na narrativa de José de gender relations expressed in José de Alencar em seus romances urbanos fe- Alencar’s narrative in his urban femi- mininos: Diva, Lucíola e Senhora. As nine novels: Diva, Lucíola and Senhora. mudanças na capital do Império no sé- Changes in the capital of the Empire in culo XIX geravam novas expectativas the nineteenth century provoked new sobre as normatizações de circulação expectations about the normatization of expressas nesses romances. José de Alen- circulation expressed in these novels. car foi romancista, dramaturgo, cronista, José de Alencar was a novelist, play- parlamentar e estadista do Império bra- wright, chronicler, parliamentarian and sileiro. Em todas essas atividades a di- statesman of the Brazilian Empire. In all mensão do político, entendido como o these activities the political dimension, espaço de articulação do social e sua re- understood as the space for the articula- presentação, esteve fortemente presente. tion of the social and its representation, Palavras-chave: José de Alencar; ro- was strongly present. mances urbanos; Rio de Janeiro. Keywords: José de Alencar; urban nov- els; Rio de Janeiro. O presente trabalho1 buscou analisar os romances urbanos femininos Di- va, Lucíola e Senhora como fontes para a compreensão de determinadas cons- truções de representações sobre as mulheres, partindo da ideia de que essa produção ficcional romântica de José de Alencar2 continha, em suas tramas, * Universidade Federal de Goiás. Campus II – Faculdade de História. Caixa Postal 131 – Sala 54. 74001-970 Goiânia – GO – Brasil. [email protected] Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 30, nº 60, p. 195-209 - 2010 Ana Carolina Eiras Coelho Soares uma tentativa pedagógica de instruir suas leitoras por intermédio dos modelos exemplares expressos pelas personagens. Os romances seriam, portanto, uma escrita voltada para a construção de um conhecimento sobre as relações entre os gêneros, na medida em que expressavam as regras sociais de uma época em relação às experiências amorosas e suas práticas moralmente aceitas. Como afirma Ribeiro, “A literatura é a expressão da índole, do caráter, da inteligência social de um povo ou de uma época”.3 Para compreender melhor os textos de José de Alencar, entendi ser neces- sário compreender o tempo histórico e o espaço urbano em que viveu o autor. Mudanças no espaço urbano geravam expectativas quanto às regras de circu- lação e de apreensão desses novos lugares. E a normatização dos comportamen- tos pode ser percebida pelas narrativas dos romances femininos de Alencar. Assim, utilizando o referencial teórico de Roger Chartier4 sobre a produ- ção do livro e de Michel de Certeau5 sobre a produção intelectual, tracei uma relação direta entre os romances e a trajetória de vida de José de Alencar. E para entender melhor essa figura, foi preciso estudar o “espírito” do século XIX e da chamada “boa sociedade”, da qual não apenas Alencar era integrante, mas também as heroínas desses três romances. Especificamente foi necessário co- nhecer o Rio de Janeiro do século XIX, cenário das tramas e cidade onde o autor residiu a maior parte de sua vida. Acredito que o trabalho intelectual literário de José de Alencar seja uma das expressões de suas crenças e posturas políticas. Ele foi um homem que viveu intensamente; defendia suas ideias com veemência e tinha a convicção, como muitos intelectuais daquele momento histórico, de que seu trabalho auxiliaria no progresso da civilização brasileira. A preocupação com os cami- nhos civilizacionais do Brasil faz parte de uma geração intelectual histórica brasileira do período pós-Independência, a qual se sentia responsável pela criação de bases morais para os novos cidadãos. É nesse momento que surgem diversas obras nacionalistas, inclusive em textos do próprio Alencar. No entanto – sem considerar a questão nacional, que não se apresenta diretamente nesses romances –, por estar imbuído desse “clima” em que tudo é novo e deve ser aprendido, a produção dos romances Diva, Lucíola e Senhora também contém algumas mensagens intencionais que, para Alencar, auxiliariam a formação das novas cidadãs. Os romances repre- sentavam as mulheres urbanas da boa sociedade de maneira idealizada e for- javam uma realidade fictícia, instruindo as leitoras mediante modelos exem- plares. Os romances urbanos de Alencar são um convite ao entendimento dos 196 Revista Brasileira de História, vol. 30, nº 60 Nos caminhos da pena de um romancista do século XIX comportamentos de homens e mulheres do século XIX. A leitura de livros como Diva, Lucíola e Senhora ajuda-nos a compreender como as pessoas de- veriam se relacionar ou, pelo menos, como se esperava que elas se relacionas- sem civilizadamente no Rio de Janeiro. Alencar foi um autor extremamente prolífero, e seus romances ambien- tados nos cenários urbanos cariocas funcionavam como modelos orientadores dos gêneros para que desejos, motivações e comportamentos estivessem em consonância com as expectativas e aspirações da elite de um país “verdadeira- mente” civilizado. Da perspectiva do autor, o homem e a mulher eram muito mais facilmen- te corrompidos na cidade, e cabia à literatura resgatar as virtudes naturais e ideais femininas e masculinas. O Rio de Janeiro moderno de meados do século XIX é retratado como o palco potencial para a encenação dos vícios mundanos como a jogatina, a prostituição e a corrupção moral dos valores familiares. Em outras palavras, José de Alencar escreveu romances femininos volta- dos para um público-alvo também feminino, buscando, dentro das estórias, ensinar às leitoras as maneiras de pensar e se comportar adequadas à nova conjuntura social e política vivida em meados do século XIX. Seus romances representavam mulheres compreendendo o mundo e a si mesmas a partir das sensações e dos sentimentos, classificando suas atitudes e comportamentos em uma escala quantitativa de felicidade. O risco da inadequação seria sempre a infelicidade da personagem. A década de 1850 pode ser considerada como o fausto e apogeu do Impé- rio de d. Pedro II. Como bem sinalizou Capistrano de Abreu,6 foi uma época marcada prioritariamente pela estabilidade política e por vários melhoramen- tos urbanos. Foram marcantes, por exemplo, os investimentos que resultaram na construção das vias férreas e a regularização da comunicação por vapor com o continente europeu, possibilitando que “obras novas, vindas a paquete” de “além do Tejo, e mesmo além do Sena” (Abreu, 1976, p.81), chegassem às terras deste império americano, demonstrando os avanços da civilização e do progresso. O panorama exposto por Capistrano é bastante ilustrativo para a com- preensão do universo público, especialmente político, sobre o período. No entanto, intentando esmiuçar um pouco mais o teor desses chamados “melho- ramentos urbanos”, encontrei uma obra que, aliada às descrições desse autor, sela uma parceria bem harmônica para a definição do “clima respirado” na Dezembro de 2010 197 Ana Carolina Eiras Coelho Soares década de 1850. Trata-se da obra de Delso Renault (1978) intitulada sugesti- vamente de Rio de Janeiro: a vida da cidade refletida nos jornais (1850-1870). Alencar viveu no Rio de Janeiro, e entre as décadas de 1850 e 1870 pro- duziu a maior parte de sua obra. Portanto, compreender as transformações dessa cidade, seus bairros e seu cotidiano constituem elementos fundamentais para a análise dos três romances. Em Lucíola encontra-se a maioria das citações de lugares e bairros da Corte, mas elas também aparecem no romance Diva. É em Senhora que se encontra uma peculiaridade interessante: a Corte aparece principalmente quando se fazem referências à localização dos logradouros, mas Aurélia – a personagem central – não circula por ela. O lugar da esposa ideal é dentro de casa. Seu divertimento é restrito ao espaço do lar, uma vez que pode e deve oferecer jantares e bailes, mas seu espaço de circulação se restringe ao âmbito privado, onde se desenrola a maior parte da obra, que tem como alicerce cen- tral as questões psicológicas e comportamentais do casal. As impressões das notícias reunidas por Renault criam o ambiente da época. A obra tem como marco inicial a abolição do tráfico negreiro e termina com a discussão intensa sobre a Guerra do Paraguai, acontecimento que mo- bilizou intensamente o país. Nas décadas de 1850 e 1860 a vida na cidade do Rio de Janeiro sofreu inúmeras mudanças, pois a administração municipal voltou-se para obras que trariam considerável evolução social, como o serviço de canalização das águas que abasteciam a cidade, o início da construção da rede de esgoto e de água encanada nas residências, além da necessária pavi- mentação, até então não realizada em algumas ruas do centro da cidade. A iluminação a gás foi, a partir de 1854, substituindo aos poucos os lam- piões de azeite do centro urbano. Nesse ano também se instalou o telégrafo elétrico, ligando inicialmente o Paço de São Cristóvão ao Ministério da Guer- ra, o prédio imediatamente ao lado, e suas proximidades. A limpeza urbana era um dos assuntos mais importantes, pois se associava à falta dela o agrava- mento das epidemias de febre amarela que periodicamente assolavam a cidade. Em Lucíola, por exemplo, essa questão será ponto fundamental da trama, pois a heroína vai relatar que, em decorrência do surto de febre amarela de 1850, seus pais caíram adoentados, o que a levou à vida de prostituição numa tentativa de salvar a família. Sua mãe, seu pai, seu irmão e a tia estavam mori- bundos, e sua irmã menor começava a apresentar os sintomas da doença. Sem recursos para cuidar de sua família, a jovem desesperada deixou-se seduzir por um vizinho, personagem que já havia aparecido na trama e fora apresentado como “Sr. Couto, capitalista”. 198 Revista Brasileira de História, vol. 30, nº 60 Nos caminhos da pena de um romancista do século XIX Os pais e a irmã salvaram-se com o dinheiro, mas a vergonha de confessar seus pecados fez que seu pai julgasse ter ela um amante, por isso expulsou-a de casa. Lúcia, cujo nome de batismo era Maria da Glória, não teve coragem de confessar como adquiriu o dinheiro para o tratamento de seus entes que- ridos. Para não envergonhar a família, mudou seu nome e forjou o próprio óbito. Sem saber como sobreviver, passou a prostituir-se, mas todo o dinheiro conseguido era guardado para o dote de Ana, descrita por Lúcia como “o anji- nho que Deus me dera por irmã”. Marcando a última reviravolta da trama, a mulher que se faz conhecer por anjo decaído, Lúcifer que já esteve no paraíso e chafurda no inferno mundano, chama-se na verdade Maria da Glória! Um nome relacionado à Santa Maria, mãe de Deus, que por amar demais a sua família seria capaz de cometer qual- quer atitude que assegurasse o seu bem-estar. Curiosa, e completamente intencional, essa escolha dos nomes feita por Alencar. Lúcia é o nome que a personagem apresenta na trama e significa Lúcifer, o anjo mais belo de Deus, porém um anjo caído e condenado ao reino do inferno por seu orgulho e pecados. É por esse nome que a personagem buscava ser tratada enquanto exercia o ofício da prostituição. Lucíola revela então a Paulo – seu amado na trama – sua estória sofrida, de pobreza e necessidades materiais, que acabaram por levá-la a esse cami- nho de vício. É nesse momento emocionante que Lúcia/Maria da Glória tam- bém afirma que vai mudar de residência, livrando-se dos males da imorali- dade de sua profissão, indo morar nos arrabaldes da cidade, no bairro tranquilo de Santa Teresa, na direção da caixa d’água, em uma casa térrea de duas janelas, com a irmã, que iria sair do colégio. Esse ponto do romance é especialmente esclarecedor do que penso ser o conjunto valorativo que Alencar determina para a mulher brasileira. Ele deixa bem claro: o vício é duplamente degradante, pois expõe a mulher à execração pública – impedindo-a até mesmo de viver com a sua família, instituição pre- ciosa a todo cidadão de bem – e ao conflito constante interno, por ter a cons- ciência de estar agindo contra a natureza. Mas para além, Alencar também valora os espaços físicos. Para que Lúcia/Maria da Glória conseguisse a sua regeneração e redenção era preciso não só que ela modificasse seu comporta- mento, mas que essa mudança estivesse expressa em todos os elementos à sua volta. O ambiente urbano era vicioso, por isso sua mudança para Santa Teresa, considerado bairro periférico. Os melhoramentos urbanos podem ser percebidos de tempos em tempos, modestamente, em toda a história da cidade do Rio de Janeiro. Porém, há uma Dezembro de 2010 199 Ana Carolina Eiras Coelho Soares considerável aceleração desse processo desde a chegada da família real, em 1808, e principalmente no período posterior a 1822, “Isto é, quando, serenadas as convulsões políticas da Independência, a aristocracia imperial se afirmava e o requinte social se impunha”.7 Santa Teresa foi um dos bairros que sofreram transformações em conse- quência desse progresso urbanístico, onde se fixaram várias residências pací- ficas e boas famílias. Local perfeito para aparentar física e externamente as novas condições internas que pautavam a conduta de regeneração da vida pecaminosa de luxos e os horrores da convivência com os males da urbanida- de desprovida de uma moral regrada. A simplicidade de seu novo lar, a maneira rígida como ela passara a trajar- -se, sem adornos e joias luxuosas, e o fato de que Lúcia passou a trabalhar nos afazeres domésticos fizeram que ela encontrasse a verdadeira felicidade de uma mulher. Isto é brilhante! Ao mostrar as situações com base em um raciocínio que considere o certo e o errado dentro do âmbito dos sentimentos, Alencar sugere às leitoras o modelo de comportamento não apenas decente, mas so- bretudo feliz! Dessa forma, quando a felicidade de toda a vida está em jogo, o melhor realmente é seguir as instruções que impeçam a desgraça. Nem mesmo a prostituta regenerada pode ser coroada com os louros da vitória, posto que seu passado a condena e pesa sobre ela como um túmulo. No instante em que Lúcia está prestes a realizar o que seria a sagração de toda mulher, ou seja, procriar, ela cai enferma e morre, justamente porque o corpo impuro não pode ser ungido com a bênção divina de um filho. Com esse des- fecho, se alguma leitora ainda pensava poder entregar-se à vida mundana e ter mais tarde a chance de redenção, deve ter concluído – como Alencar nos induz – que não há possibilidade de unir os conceitos de felicidade e prostituição. Durante as duas décadas em foco os melhoramentos urbanos foram ex- tremamente comentados, seja pela discussão acerca das soluções encontradas para os problemas da cidade, seja pela lentidão das obras que atingiam em primeira instância as ruas do centro urbano e demoravam-se muito (numa perspectiva otimista) para alcançar os bairros e freguesias mais longínquos. Ou seja, como nos dias atuais a administração preocupava-se em atender às necessidades básicas das regiões onde habitavam as camadas mais privilegiadas da população – na época bairros como Botafogo, Jardim Botânico, Cosme Velho e Laranjeiras –, e locais como o Passeio Público e as ruas do Centro, frequentados por essas pessoas a trabalho ou diversão. O transporte coletivo se organizava para tentar atender a essas novas ne- cessidades de circulação pela cidade. De acordo com a descrição feita por Los 200 Revista Brasileira de História, vol. 30, nº 60 Nos caminhos da pena de um romancista do século XIX Rios Filho (2000), ao lado dos veículos “antigos” da nobreza – como as cadei- rinhas e as liteiras – e de outros mais “modernos”, de serventia pública e pri- vada – como as caleches, as cabs, os tílburis, as vitórias, os timons-balancés, as berlindas e as caleças ligeiras –, surgiam diversos tipos de meios de locomoção voltados para o transporte coletivo, como as diligências, os ônibus (veículo de dois pavimentos puxados por quatro cavalos) e as gôndolas (carros de apenas um pavimento, puxados a cavalo, com quatro rodas, bancos laterais e capaci- dade para até nove pessoas). Com a ampliação nos transportes coletivos, os serviços de correio conse- quentemente sofreram melhoria, mas a comunicação com o interior ainda se fazia de maneira precária e os jornais publicavam os dias das partidas dos correios. O transporte em barcas a vapor já existia desde a década de 1820, tendo sido organizada a primeira linha regular apenas em 1843, mas é por volta da década de 1850 que apareceriam diversas companhias visando o apri- moramento da qualidade do serviço de comunicação. As vias férreas foram também produto desse período, em que se ressaltaram as iniciativas de Irineu Evangelista de Sousa, o visconde de Mauá, com o início da construção da fa- mosa “estrada de ferro de Mauá” ligando o Rio, Minas Gerais e São Paulo: o operoso homem de negócio opina que “o Brasil precisava de alguma indústria ... e a indústria de ferro, sendo a mãe das outras, me parecia o alicerce dessa aspiração”.8 Foi uma época de esperança e tentativa de construção de um futuro prós- pero para o país, dentro dos ideais racionais de Civilização e Progresso então em voga. Mauá, por exemplo, foi símbolo importante de empreendedor que, em sua trajetória política, mostrou-se preocupado com os rumos da nação, tomando a responsabilidade de apresentar projetos de obras que viabilizassem tais modificações. Mauá e Alencar tiveram em suas biografias um passado de trajetórias políticas. No entanto, ambos têm em comum serem recordados pela história por suas contribuições em outras áreas profissionais. O primeiro por suas rea- lizações como inventor, o segundo por sua contribuição nas trilhas da litera- tura. Mas cada um desses homens, a seu modo, importou-se com as condições do país, buscando, na ótica de seu tempo, dar-lhe feições progressivamente melhoradas. A expansão do comércio nas ruas do Centro e as reformas sucessivas do Passeio Público tornaram esses lugares espaços de circulação mais frequentes da população carioca. Mulheres e homens acostumavam-se ao hábito “civili- Dezembro de 2010 201 Ana Carolina Eiras Coelho Soares zado” de frequentar lojas, cafés e confeitarias, ou apenas saírem de casa para passear e “olhar as novas modas”. De acordo com Renault, em 1850 a cidade dispõe de 23 casas de modistas, 77 de ourives, 33 relojoeiros, 66 lojas de calçados, 25 tipografias, 24 fábricas de carruagem, 8 retratistas. Vinte e quatro confeitarias estão espalhadas pelo centro urbano, entre as quais a Castelões, a Francioni, a Fournier são as mais requintadas. (Renault, 1978, p.16) Esses números aumentariam no decorrer dos anos, mas a citação é um bom parâmetro para enfatizar como a sede da Corte Imperial alcançava um ritmo social bem mais movimentado que nos tempos coloniais. Assim, ter como hábito frequentar os teatros, as festas cívicas e religiosas, as regatas, as corridas, os passeios a cavalo ou a pé, e mesmo as atividades de âmbito priva- do como saraus, as sociedades recreativas e bailes, eram formas de entreteni- mento, incentivadas e enaltecidas pelos jornais como bons costumes da socie- dade carioca. Para tanto, deveriam os sexos saber portar-se nessas situações públicas cada vez mais rotineiras. Há uma crônica de Alencar, publicada no Correio Mercantil em 29 de outubro de 1854, na qual ele se dedicou a explicar o que seria a flânerie, indi- cada como hábito saudável para a boa sociedade, e que a inserção de tal cos- tume seria propiciada pelas obras de melhoria do Passeio Público. A cidade do Rio de Janeiro, com seu belo céu de azul e sua natura tão rica, com a beleza de seus panoramas e de seus graciosos arrabaldes, oferece muitos desses pontos de reunião, onde todas as tardes, quando quebrasse a força do sol, a boa sociedade poderia ir passar alguns instantes numa reunião agradável, num círculo de amigos e conhecidos, sem etiquetas e cerimônias, com toda a liberdade do passeio, e ao mesmo tempo com todo o encanto de uma grande reunião ... Mas entre nós ninguém dá apreço a isto ... Felizmente creio que vamos ter breve uma salutar modificação nesta maneira de pensar. As obras para a iluminação a gás do Passeio Público e alguns reparos e melhoramentos necessários já começaram e brevemente estarão concluídos.9 É bem claro que o espaço público deveria ser ocupado pelas pessoas, como demonstração de bom-tom dos habitantes da Corte. E assim como o autor apontava esses locais, também os frequentava. A Livraria Fluminense, de Bap- tiste Louis Garnier, na rua do Ouvidor; o café Á Fama do Café com Leite, co- nhecido como café do Braguinha; a frente do teatro João Caetano, no Rocio, e 202 Revista Brasileira de História, vol. 30, nº 60 Nos caminhos da pena de um romancista do século XIX a Confeitaria Carceler, que inicialmente era na rua Direita e, em 1861, mudou- -se para a rua do Ouvidor, são exemplos de lugares nos quais o escritor cea- rense gostava de passar suas horas conversando e trocando ideias com outros intelectuais. Vale contar que o primeiro contato entre Alencar e Machado de Assis se fez nas poltronas situadas na parte da frente da livraria de Garnier. É um momento de deslumbramento da sociedade com as novas atividades sociais e culturais, e inúmeros são os relatos das impressões exaltadas causadas por tais oportunidades nas pessoas das altas camadas que passavam a ocupar espaços públicos, outrora apenas expressos no domínio do privado. Essa “boa sociedade” constituía-se de um círculo restrito com sutis gradações em seu interior, mesclando-se poder econômico, político, cultura e saber. Inúmeras foram as vezes em que um encontro social acontecia como pretexto para for- talecimento de laços políticos ou econômicos dos organizadores. O cenário das sociabilidades no Segundo Reinado era, dessa forma, uma mescla de interesses e necessidades da chamada “boa sociedade”, que promo- via em seus eventos sociais e culturais, como nos passeios aos cafés ou nos bailes, um verdadeiro embate de forças políticas. As melhorias na infraestrutura da cidade propiciaram essa nova configu- ração. O aumento do comércio, aliado às inovações tecnológicas nos mais variados campos urbanos, não apenas facilitou a expansão para o subúrbio, mas também viabilizou a vivência dessas “novidades estrangeiras” – quase sempre europeias – de novas diversões, desejadas pela chamada elite aristocrá- tica da Corte. Em especial destaco a rua do Ouvidor, no Centro, por ser uma rua muito citada em Lucíola. Essa elite dirigente não era exatamente composta de uma nobiliarquia hereditária, mas forjava-se por comprovação de serviços prestados10 e, confor- me José Murilo de Carvalho (1996), tinha certa homogeneidade por ter sido educada em instituições semelhantes, e por exercer as mesmas funções profis- sionais (funcionalismo público, clero, advocacia, medicina) no cenário nacio- nal. Essas encontraram no período entre 1840 e 1870 um próspero caminho para a instauração do conceito de civilidade que na visão da época acompa- nhava tais reformas. Nos dicionários de época, civilidade significava “cortesia”, “urbanidade”, “po- lidez”, “boa educação”, “delicadeza”, “etiqueta” ... Civilização passou também a expressar o desenvolvimento artístico, tecnológico, científico e econômico da humanidade, ou ao menos uma parte dela, que se considerava superior. (Vain- fas, 2002, p.142) Dezembro de 2010 203 Ana Carolina Eiras Coelho Soares Logo, os romances de José de Alencar contextualizados em seu período de produção não apenas possibilitam uma maior reflexão sobre os desejos pessoais de um escritor apaixonado pelo Brasil mas refletem, sobretudo, a tendência histórica de estabelecimento de vínculos e relações de poder, através da disciplina dos costumes, almejado pela elite intelectual da época. Tal como afirma Gay,11 “Os homens, nem mesmo os loucos, não inventam simplesmen- te o seu mundo. Os materiais que empregam para construí-lo são todos de domínio público”. Para tanto, creio que Alencar elaborou minuciosamente seus romances no intuito de cativar a recepção do leitor, provocada emocionalmente por uma intimidade com a vida alheia, cuja experiência não era inventada, mas “relata- da” pelo escritor. O recurso literário utilizado foram as cartas usadas como prefácio das obras, as quais explicitam o que Roger Chartier (2001) chamou de novas maneiras de percepção da leitura. O gênero literário que melhor explorou essa verve de intimidade com o leitor foi o romance, o qual se popu- larizou na Europa no século XVIII e surgiu fortemente no Brasil no século XIX. As mulheres foram as principais leitoras desse novo gênero. Lucíola foi o primeiro dos três romances aqui estudados, tendo sido edi- tado em 1862. No prefácio da obra o autor redigiu um texto em forma de carta, assinado como G. M. e datado de novembro de 1861. Dirigia-se a Paulo, per- sonagem central da trama, explicando-lhe que foi a partir das cartas do amigo que surgiu a ideia de adaptar sua história de amor para compor o romance. Esse recurso é utilizado também nos prefácios dos outros dois romances. Em Diva, publicado pela primeira vez em 1864, a carta da introdução não é escrita por G. M., mas endereçada a ele por Paulo, personagem de Lucíola e supostamente amigo do autor. Ele relata a estória de amor de um amigo (Ama- ral, personagem central de Diva), e pede ao escritor que também a transforme em um romance. Senhora foi publicado bem posteriormente, em 1875, e nele a carta é as- sinada pelo próprio José de Alencar e endereçada “Ao Leitor”, mas sem perder o tom de veracidade e confidência que permeou as anteriores. A história é verdadeira, e a narração vem de pessoa que recebeu diretamente, em circunstâncias que ignoro, a confidência dos principais atores desse drama curioso. O suposto autor não passa rigorosamente de editor. É certo que tomando a si o encargo de corrigir a forma e dar-lhe um lavor literário, de algum modo apro- pria-se não da obra mas do livro.12 204 Revista Brasileira de História, vol. 30, nº 60

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