O RACISMO ATRAVÉS DA HISTÓRIA: DA ANTIGUIDADE À MODERNIDADE Carlos Moore Wedderburn Copyright 2007 @ Carlos Moore Wedderburn 1 DEDICATÓRIA Para que a nação brasileira consiga se abrir para um novo caminho e uma nova direção na constituição de uma sociedade verdadeiramente democrática e inclusiva de todos, superando o “sortilégio da cor”, o fetichismo das feições e o essencialismo racial. 2 AGRADECIMENTOS Esta obra surgiu de um pedido específico, formulado por Eliane dos Santos Cavalleiro no momento em que ocupava o cargo de coordenadora da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD) do Ministério da Educação, e que, por sua vez, correspondeu à intermediação de Luiza Bairros. Com efeito, Luiza vinha me instando a produzir um trabalho de síntese sobre a questão racial na história, destinado a subsidiar a Lei 10.639/03 sobre o ensino obrigatório, no Brasil, da historia da África e dos Afrodescendentes. Agradeço-a por ter insistido e a Eliane por ter proporcionado as condições necessárias para dedicar-me exclusivamente, durante oito meses, à redação deste trabalho de introdução à problemática racial na história. Agradeço, também, a Andréia Lisboa de Sousa, do SECAD/MEC, pelos árduos esforços realizados por ela, para que este livro visse a luz. Antes de contar com o apoio material da SECAD/MEC, em 2007, e do Instituto Cultural Steve Biko, de Salvador, Bahia, que se incumbiu da gestão formal da obra, o trabalho de pesquisa inicial, começado em 2005, somente foi possível graças ao apoio financeiro da Associação Bem Comum, de São Paulo. Naquele momento, o título da obra era: Desconstruindo o Mito e Parindo a Nação. Graças a uma parceria entre a Associação Bem Comum e o Instituto Cultural Steve Biko, os direitos de publicação desta obra, no Brasil e demais países de língua portuguesa, foram repassados da Associação Bem Comum ao Instituto. A construção desta obra foi o resultado de um trabalho que envolveu os esforços de uma dúzia de pessoas, todos pesquisadores, mas, sobretudo, pessoas amigas plenamente identificadas com a luta contra o racismo, cuja elucidação é objeto deste livro. Meus ajudantes de pesquisa, todos estudantes, contribuíram quase tanto quanto eu neste livro. Menciono-os com um emocionado agradecimento: Ana Flávia Magalhães Pinto, Tatiane Cosentino Rodrigues, Vânia Maria da Silva Bonfim, Matheus Gato de Jesus, Juliana Silva Freitas e Diana Neuma Santos de Sant’Anna. Eles me ajudaram não somente com a pesquisa básica, mas também na escolha crítica de textos e na revisão destes, tendo traduzido o material sobre o qual trabalharam em língua estrangeira. Outros estudantes também se envolveram nas pesquisas secundárias, merecendo, assim, a expressão de meu carinhoso agradecimento: Trícia Calmon, Ladjane Alves Souza, Diógenes Michel de Jesus, Veluma de Azevedo, Cleifson Pereira, 3 Paulo Rogério Nunes de Jesus dos Santos, Marcio Paim, Isabela Andrade Barbosa e Rosana Silva Chagas. A utilização de uma grande quantidade de obras estrangeiras requisitou a realização de árduas traduções e elaboradas resenhas sintéticas. Sem essas traduções e resenhas, a confiabilidade da informação apresentada estaria comprometida. As traduções do Francês, Inglês e Espanhol para o Português - de excelente qualidade - foram realizadas, generosamente, por Daniela Moreau, Guilherme Neves Pinto e Maria Vitória dos Santos Monteiro. As resenhas foram obras, igualmente generosas, de Kabenguele Munanga, Silvio Humberto dos Passos Cunha e de Rita de Cássia Dias. Expresso aqui todo o meu carinho a Ivana Silva Freitas, que se ocupou da organização do manuscrito, e a Cacilda Gisele Pegado, Nelson Maca, Ana Cristina Pereira e Íris Maria da Costa Amâncio por terem revisado o texto com um espírito de generosidade solidária. Assim, ao tempo que assumo plenamente a responsabilidade pelos possíveis erros que, como em toda obra, inevitavelmente podem ocorrer, deixo registrado o meu profundo e sincero agradecimento pela ajuda à produção desta obra, a Eliane dos Santos Cavalleiro, Ricardo Henriques, Andréia Lisboa de Sousa, Daniela Moreau, Silvio Humberto dos Passos Cunha e Waldemario Alves de Oliveira, sendo os dois últimos dirigentes do Instituto Cultural Steve Biko que cuidaram diretamente, do inicio ao fim, de todos os pormenores da obra. 4 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 1.1 - RACISMO E SOCIEDADE / P.10 1.2 - A DEMOCRACIA RACIAL: MITO-IDEOLOGIA DE AUTO-ENGANO / P.11 1.3 - PARINDO A NAÇÃO / P.12 1,4 - A CRESCENTE TRIVIALIZAÇÃO E BANALIZAÇÃO DO RACISMO NO MUNDO / P.15 1.5 - AS RAZÕES PARA ESTE LIVRO / P.17 PARTE I – RACISMO E ESCRAVIDÃO: O SURGIMENTO DO SISTEMA DE ESCRAVIDÃO RACIAL CAP. 1 – ANTERIORIDADE GEOGRÁFICA DOS POVOS MELANODÉRMICOS: MITO OU REALIDADE? 1.1 - OS PRIMÓRDIOS DA HUMANIDADE / p.20 1.2 - DESVENDANDO A HISTÓRIA PARA DESCORTINAR A GÊNESE DO RACISMO / P.22 1.3 - A TESE DE GERVÁSIO FOURNIER-GONZÁLEZ / P.24 1.4 - CONSEQÜÊNCIAS DA UBIQÜIDADE NEGRA DURANTE A ALTA ANTIGUIDADE / P.27 - REFERÊNCIAS / P.33 CAP. 2 - A ESCRAVIDÃO ECONÔMICA GENERALIZADA GRECO- ROMANA: PRIMEIRA ESTRUTURAÇÃO DE UM PROTO-RACISMO? 2.1 - XENOFOBIA OU PROTO-RACISMO? / P.34 2.2 - A FORMAÇÃO DOS VALORES SOCIOCULTURAIS GRECO-ROMANOS / P.37 2.3 - ESCRAVIDÃO GREGA E PROTO-RACISMO / P.40 2.4 - PERMANÊNCIA DAS INSTITUIÇÕES BALIZADORAS DO PROTO-RACISMO GREGO NOS ESPAÇOS ROMANOS / P.49 2.5 - DESENVOLVIMENTO DE IDÉIAS PROTO-RACISTAS PELOS PENSADORES DA ANTIGUIDADE ROMANA / P.51 - REFERÊNCIAS / 55 5 CAP. 3 - O RACISMO NO MUNDO ÁRABE- SEMITA E A ORIGEM DA PRÁXIS DA ESCRAVIDÃO RACIAL 3.1 - RAÇA E ESCRAVIDÃO NO MUNDO ÁRABE / P.57 3.2 - MALDIÇÃO DE HAM: ORIGEM DA ESCRAVIDÃO RACIAL? / P.59 3.3 - A REPRESENTAÇÃO DO NEGRO NA LITERATURA POÉTICA ÁRABE / p.61 3.4 - A REPRESENTAÇÃO DO NEGRO NA LITERATURA RELIGIOSA / P.64 3.5 - O COMÉRCIO ÁRABE DE ESCRAVIZADOS NEGROS: ROTAS E COBRANÇAS DE IMPOSTO EM ESCRAVOS / P.67 3.6 - A REVOLUÇÃO ZANJ: O MAIOR LEVANTE NO MUNDO ÁRABE DE AFRO-ÁRABES ESCRAVIZADOS / P.70 3.7 - A EXPANSÃO DAS FRONTEIRAS DO IMPÉRIO PARA A ÁFRICA DO NORTE E PARA A PENÍNSULA IBÉRICA: EXTENSÃO DO MODELO SÓCIO-RACIAL ÁRABE-SEMITA / P.73 - REFERÊNCIAS / 76 PARTE II. O PAPEL DO RACISMO NA ECLOSÃO DA MODERNIDADE CAPITALISTA CAP. 4 - CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO: AS BASES RACIOLÓGICAS DO MUNDO MODERNO 4.1 - A GÊNESE DO CAPITALISMO: ACIDENTE HISTÓRICO OU INEVITABILIDADE? / P.79 4.2 - TESE DE MAX WEBER / P.79 4.3 - TESE DE JEAN BAECHLER / P.89 4.4 - TESE DE ERIC WILLIAMS / P.96 4.5 - TESE DE CHEIKH ANTA DIOP / P.98 4.6 - RITMOS DE DESENVOLVIMENTO SÓCIO-ECONÔMICO / P.105 4.7 - O RACISMO: PARTEIRO DA MODERNIDADE CAPITALISTA ? / P.108 - REFERÊNCIAS / P.115 CAP. 5 - COMO A EUROPA SUBDESENVOLVEU A ÁFRICA 5.1 - TESE DE WALTER RODNEY / P.118 5.2 - MODELO DE ORGANIZAÇÃO SOCIAL AFRICANO / P.120 5.3 - ESPECIFICIDADES DA ORGANIZAÇÃO PRODUTIVA / P.122 6 5.4 - ESPECIFICIDADES DA ORGANIZAÇÃO POLÍTICA / P.123 5.5 - AS RAÍZES DO SUBDESENVOLVIMENTO AFRICANO / P.125 5.6 - O COMÉRCIO EUROPEU DE ESCRAVIZADOS E O SUBDESENVOLVIMENTO AFRICANO / P.127 5.7 - A TESE DE JOHN THORNTON / P.131 5.8 - A ÁFRICA, BERÇO DOS “TRÁFICOS NEGREIROS”? / P.134 5.9 - QUAL A RAZÃO PARA OS “TRÁFICOS NEGREIROS”? / P.137 5.10 - O IMPACTO DAS DINÂMICAS ECONÔMICAS MUNDIAIS SOBRE A ÁFRICA / P.147 - REFERÊNCIAS / 151 CAP. 6 - A ESCRAVIDÃO NA ÁFRICA PRÉ-COLONIAL: REALIDADES ESTRUTURAIS VERSUS ARGUMENTOS IDEOLÓGICOS 6.1 - A ESCRAVATURA NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE / P.153 6.2 - A ESCRAVIDÃO NA ÁFRICA / P.157 6.3 - A ESCRAVATURA AFRICANA: MODO DE PRODUÇÃO DOMINANTE OU SUBALTERNO? / P.166 - REFERÊNCIAS / 171 PARTE III. TIPOLOGIAS DE RELAÇÕES RACIAIS DA CONTEMPORANEIDADE CAP.7. DOS PROTO-RACISMOS DA ANIGUIDADE AO RACISMO CONTEMPORÂNEO: A “MEMÓRIA ESQUECIDA” DA HUMANIDADE p. 7.1. AS TRÊS DINÂMICAS CONVERGENTES DO RACISMO / P.174 - REFERÊNCIAS / 182 CAP.8. OS MODELOS TIPOLÓGICOS DE RELAÇÕES RACIAIS PRÉ- MODERNOS 8.1- A CONSCIÊNCIA GRUPAL FENOTIPIZADA / P.183 8.2- AS TIPOLOGIAS DE RELAÇÕES RACIAIS PIGMENTOCRÁTICAS / P.189 8.3- MISCIGENAÇÃO COMPULSÓRIA E RELAÇÕES RACIAIS NA AMERICA LATINA / P.196 - REFERÊNCIAS / 200 7 CONCLUSÃO CAP.9. RACISMO: PASSADO CONFLITUOSO, PRESENTE COMPROMETIDO, FUTURO INCERTO 9.1 - A ETERNA CONFUSÃO EM TORNO DO RACISMO / P.202 9.2 - O RACISMO NO SÉCULO XXI / P.204 9.3 - RACISMO E GLOBALIZAÇÃO: A CONSTANTE METAMORFOSE DO RACISMO / P.207 ANEXO I ENTREVISTA COM CHEIKH ANTA DIOP I – RAÇA, RACISMO E O LUGAR DOS NEGROS NO DESTINO DA HUMANIDADE. / P.213 ANEXO II NA GUE DIEF, ANTA DIOP, SOU-MA-MAK?: (“COMO VAI, ANTA DIOP, MEU VELHO IRMÃO?”) / p.225 PRINCIPAIS OBRAS DE CHEIKH ANTA DIOP / p.233 BIBLIOGRAFIA / p.234 8 INTRODUÇÃO 9 1. RACISMO E SOCIEDADE A produção acadêmica voltada para o estudo e interpretação do racismo foi orientada durante o século XX por dois grandes desastres na história da humanidade: o holocausto judeu sob o III Reich e a escravidão negra africana. Embora o embate hitleriano contra os judeus tenha encontrado ampla repulsa internacional, os desdobramentos da escravização dos africanos e as repercussões contemporâneas desse evento somente começaram a ser examinados seriamente após a Segunda Guerra Mundial. Entendia-se que o racismo, especificamente a partir do século XV, era a sistematização de idéias e valores do europeu acerca da diversidade racial e cultural dos diferentes povos no momento em que a Europa entrou, pela primeira vez, em contato com eles. Nesta perspectiva, o surgimento do racismo era considerado fruto do conceito de raça, termo que, etimologicamente, vem do italiano razza, que, por sua vez, tem origem no latim ratio. Este último termo significa categoria e espécie, sentido no qual o famoso naturalista sueco Carl Van Linné (1707 a 1778) o utilizou para classificar as plantas em 24 classes ou raças. Será que existiria uma relação de causa e efeito entre a noção de raça e o fenômeno do racismo? O racismo seria somente uma produção européia? A sua gênese estaria vinculada, como pensa a maioria das pessoas, à escravização dos africanos, à expansão do capitalismo, e, enfim, à chamada modernidade? Não se trata aqui de desvalorizar a importância do surgimento da categoria raça enquanto um condicionante relativo das possíveis interpretações contemporâneas do racismo, mas de observar que o projeto científico moderno de uma compreensão sistemática e racializada da diversidade humana, operada nos séculos XVIII e XIX, apenas foi possível em função do critério fenotípico em escala planetária. As críticas reportadas às teorias evolucionistas como a teoria de Spencer, o determinismo racial de Lombroso e o darwinismo social, que apostaram em uma continuidade entre dados físicos e morais, afetam a possibilidade de uma discussão do racismo calcada na história dos conflitos entre povos decorrentes das diferenças fenotípicas. Com isso, a visão de que o racismo seja uma experiência da contemporaneidade cujas raízes se inserem na escravização dos povos africanos pelos europeus, a partir do século XVI, não é consistente historicamente. Embora seja dominante, essa premissa 10
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