O QUE É A VIDA INTRODUÇÃO A CONCEITOS FILOSÓFICOS E METAFÍSICOS FUNDAMENTAIS [versão 21 provisória e parcial] I. INTRODUÇÃO 1. Objetivo do presente texto. Entre os gregos chamou-se de Filosofia ao estudo da essência de cada uma das realidades, da ordenação de todas estas realidades entre si em um todo através de uma rede de causalidades e da dependência desta rede de causalidades a uma primeira causa à qual se subordinam todas as demais causas. Este estudo também pode chamar-se de Sabedoria e aqueles que, seguindo o exemplo de Tomás de Aquino, com humildade e confiança na divina piedade, assumem este ofício, trilham pelo mais perfeito, sublime, útil e feliz de todos os estudos que é concedido realizar ao homem. O filósofo ou o sábio é, portanto, em primeiro lugar, alguém que é capaz de determinar precisamente o que cada coisa é, e que tenha feito isto com todas as principais realidades do mundo que nos cerca, sem ter deixado de considerar nenhuma realidade significativa. Note que, embora esta seja uma tarefa árdua e que exija extremo rigor, ela difere da exigência impossível de conhecer todos os detalhes ou mesmo todas as propriedades de cada uma das coisas existentes. Não se exige de um filósofo que ele conheça tudo. Embora dificilmente alguém se torne um filósofo sem um grande cabedal de conhecimentos prévios, não é a quantidade de conhecimento que faz o filósofo, mas a capacidade de conhecer exatamente o que cada coisa é. Neste sentido, mais do que pela erudição ou pela quantidade de conhecimento, uma das caracteristicas pelas quais um filósofo poderia ser reconhecido por aqueles que não o são seria a extrema dificuldade em ser enganado em assuntos de transcendência. A propaganda comercial ou política, por exemplo, dificilmente teria sucesso em um mundo constituído por filósofos, e o autêntico filósofo seria, entre os homens, o indivíduo menos manipulável por qualquer tipo de ideologia. Diante da maioria dos problemas que parecem perenemente dividir a humanidade, o filósofo já deveria ter meditado profundamente sobre o conjunto de todos os principais dentre eles e ter identificado medianamente sua verdadeira natureza. A maioria dos homens não possui uma noção clara do que é cada coisa. Uma das provas deste fato é a facilidade com que a propaganda e a ideologia podem facilmente modificar os conceitos de uma sociedade sobre a maioria dos assuntos. Mas mesmo que alguém conhecesse a natureza de cada uma das coisas, isto não revelaria a trama última da 2 natureza. O universo não é um amontoado desordenado de entes que possuem uma natureza exata, assim como a história não é um conjunto de fatos que se sucedem, nem a soma dos personagens que a compõe. Uma rede de relações de causalidade, invisível aos aparelhos científicos e aos computadores, somente apreensíveis pela mente humana, interliga todos estes entes em uma ordem comum. Ainda que um homem conhecesse todas as coisas, se não penetrasse nesta ordem, pouco conheceria da realidade. O estudo da ordenação de todas as coisas é o segundo objeto de estudo do filósofo. Neste sentido, compete ao filósofo não apenas conhecer de cada coisa o que ela é, mas também ordenar em sua mente todo o universo à sua volta. Uma vez feito isto, ele poderá ordenar sua vida, sua escola, sua sociedade, cada uma das realidades sobre a qual ele possui alguma influência, ao conjunto de todas as coisas. E, neste sentido, o filósofo deveria ser a figura mais necessária à missão de governar. Nenhum rei, nenhum presidente, nenhum Papa, nenhum bispo, nenhum ministro, nenhum legislador, nenhum juiz, nenhum educador, nenhum pai de família poderia dispensar responsavelmente o conhecimento filosófico. Sem o conhecimento filosófico somos como cegos que somente apreendemos o que imediatamente podemos tocar; se o resto do mundo quisesse reunir-se para nos destruir, nada compreenderíamos até que o golpe final tivesse sido dado. Finalmente, em terceiro lugar, toda ordem enquanto tal deve possuir uma ordenação a um princípio último do qual depende toda a ordem. Sem o conhecimento deste princípio não se pode dizer que seja conhecida a verdadeira natureza da ordem. O conhecimento do primeiro princípio do qual depende a ordem de todas as coisas é o que em filosofia se chama simplesmente de o conhecimento da verdade. Filosoficamente o conhecimento da verdade é muito difícil. Ele supõe o conhecimento da ordenação de todas as coisas, pressupondo que esta ordenação realmente exista, o qual conhecimento por sua vez supõe o conhecimento da natureza exata de cada uma das coisas, pressupondo que cada coisa tenha uma natureza cognoscível. Neste texto não iremos nos ocupar nem com o conhecimento da verdade, nem com o conhecimento da ordem universal, nem com o conhecimento da natureza de todas as coisas. Vamos preocupar-nos apenas em compreender, exata e filosoficamente, a essência do que é uma única coisa, e esta será a vida. Vamos buscar compreender, de modo introdutório para um estudo de Filosofia, o que é exatamente a vida. Para os que supõem que seja um objetivo muito ambicioso, vale notar que trata-se apenas de um dos muitos entes que o filósofo deve conhecer exatamente, antes de tentar empreender em sua alma a construção de uma reprodução da ordem cósmica. 2. O que é a vida. A filosofia grega chegou a uma definição exata e final do que seja a vida, na qual no correr dos séculos a meditação dos sábios não mais encontrou o que corrigir. Nos escritos da Filosofia Perene os seres vivos são apresentados como aqueles entes que são, pela sua própria natureza, capazes de produzir movimentos imanentes. Entende-se 3 por movimentos imanentes os movimentos que, por contraposição, não são transeuntes. Um movimento transeunte é aquele que passa de um ente a outro, ou aquele pelo qual um ente move a outro ente. Um movimento imanente é aquele que permanece no próprio ente, ou aquele pelo qual um ente é capaz de mover a si mesmo. São seres vivos aqueles que são, pela sua própria natureza, capazes de moverem a si mesmos. São seres inanimados aqueles que somente são capazes de mover a outros e são incapazes de se moverem a si próprios. Neste sentido, vida é a capacidade de mover-se a si mesmo ou a capacidade de produzir um movimento imanente. Note que, conforme será discutido mais adiante, há um princípio metafísico segundo o qual nada pode mover-se a si próprio e tudo o que é movido deve ser movido por outro. Este princípio parece contradizer a definição da vida, pois afirmamos que a vida é a capacidade de produzir um movimento imanente ou a capacidade de que algo mova a si próprio. Os dois princípios reconciliam-se compreendendo-se os seguintes dois pontos, que serão explicados no decorrer do presente texto: A. O movimento de cada ser vivo possui uma causa externa. O fato do ser vivo mover a si próprio não significa que algo externo não cause o movimento interno do ser vivo. O ser vivo não se move a si próprio no sentido de que ele seja a causa última de seu movimento e que este movimento não tenha uma origem externa. Se tudo o que se move deve ser movido por outro, para que um ser vivo mova a si mesmo, uma causa externa deve desencadear o movimento do ser vivo de tal maneira, porém, que o próprio ser vivo cause a partir disto um movimento interno a si mesmo. Se não se tratasse de um ser vivo, a causa externa faria com que o ente movido produzisse um movimento transeunte, e não imanente. B. Todo ser vivo, apesar de sua unidade que, conforme veremos, deriva de sua forma substancial única, deve ser composto de partes não homogêneas. Quando dizemos que um ser vivo move-se a si mesmo, queremos dizer que o ser vivo é composto de partes heterogêneas e que uma parte do ser vivo move a outra parte. Portanto, em cada ser vivo existem uma parte que move e outra distinta que é movida. Se um ser vivo fosse constituído por uma única parte indistinta haveria contradição com o princípio segundo o qual tudo o que é movido movido por um outro pois, neste caso, a mesma única parte que move também deveria ser movida. As partes que constituem um ser vivo ademais não podem ser homogêneas porque a parte motora deve estar em ato para o movimento e a parte movida deve estar em potência para o movimento e, portanto, devem ser necessariamente partes distintas e não homogêneas. Um ser vivo, por conseguinte, se deve ser algo capaz de mover-se a si mesmo, deverá ser constituído necessariamente por partes heterogêneas. Uma gota de água, ou mesmo uma grande quantidade de água, jamais poderia ser viva. 4 3. A alma como forma substancial do corpo. Colocadas as coisas desta maneira, para que algo possa estar vivo ele deve poder, por sua própria natureza, mover a si mesmo. Isto implica, em primeiro lugar, que tanto a parte movente como a parte movida do ser vivo devem compartilhar a mesma natureza, pois se assim não fosse o movimento não seria imanente mas transeunte. Isto é, se a parte movente e a parte movida tivessem naturezas diferentes, ambas constituiriam dois entes diversos e o movimento estaria passando de um ente a outro, em vez de permanecer no mesmo ente. A unidade de natureza entre as partes do ser vivo, porém, implica em uma unidade de forma substancial. Logo mais adiante veremos o que significa isto. Fica, porém, a conclusão de que não pode haver movimento imanente se não houver unidade de forma substancial entre as partes movente e movida. Mas isto implica também, em segundo lugar, que o movimento imanente pelo qual se define a vida deve provir também, como de seu princípio formal, da própria forma substancial que dá unidade ao ser vivo, caso contrário não seria por sua própria natureza que ele seria capaz de mover a si mesmo. O que determina a natureza de cada ser é a sua forma substancial. Portanto, se o ser vivo é o ente capaz de, por sua própria natureza, mover a si mesmo, esta capacidade deve provir de sua forma substancial. Logo mais adiante veremos mais claramente o que significa a forma substancial de cada coisa. Mas assumindo por enquanto que se cada coisa possui uma natureza específica por causa de sua forma substancial, algo somente poderá mover a si mesmo por sua própria natureza se possuir uma única forma substancial e se esta capacidade de mover a si mesmo provier desta forma substancial como de sua causa formal. Portanto uma coisa somente poderá estar viva, ou animada, se esta vida ou animação provier de sua forma substancial como de seu primeiro princípio. Daí que chamamos à forma substancial dos seres vivos de seu princípio vital, de seu princípio animador, ou simplesmente de alma, aquilo que anima os seres animados. Para que um ente possa ser vivo, ele deverá ser formalmente animado pela sua própria forma substancial. Se não for assim ele não moverá, por sua própria natureza, a si mesmo. É por este motivo que nos escritos de Aristóteles e de Santo Tomás de Aquino define-se a alma como sendo "a forma substancial do corpo físico que tem potência à vida". Muitas vezes diz-se também, abreviadamente, apenas que a alma é a forma substancial do corpo, subentendendo-se nestas palavras o restante da definição. 5 Condensada na aparente simplicidade destas palavras esconde-se uma das apreensões mais elaboradas e luminosas da história do pensamento humano. No texto a seguir, teremos que explicar primeiro o que significa esta definição, para o que teremos primeiramente de explicar o quanto ela é o produto de uma concepção da natureza e da realidade extraordinariamente sofisticada. Em seguida teremos de explicar as conseqüências que esta definição terá para as realidades básicas dos seres vivos e em particular do homem, introduzindo assim o estudante de filosofia nas questões fundamentais da psicologia. 6 II. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA FILOSOFIA 1. As três sínteses filosóficas da história humana. Se chamarmos de Filosofia aos procedimentos do espírito humano pelos quais, partindo da observação da natureza, estabelecem-se princípios pelos quais é possível elaborar uma síntese da ordenação de todo o cosmos, então a história humana conheceu três sistemas filosóficos, ou três grandes tentativas, independentes entre si, de construção de tais sínteses. A última destas três tentativas é proveniente da ciência experimental moderna. Embora a esta seja anterior à época de Isaac Newton, famoso cientista britânico nascido em 1642 e falecido em 1727, pode-se dizer que a construção de uma síntese da estrutura do cosmos através da ciência experimental somente iniciou-se com a publicação, em 1683, da obra "Princípios Matemáticos da Filosofia Natural", de autoria de Newton. Esta obra é constituída de duas introduções intituladas, respectivamente, de "Definições" e "Axiomas ou Leis do Movimento", seguidas de três Livros e um Escólio Geral. As "definições" são, de fato, princípios que estabelecem a realidade de certos conceitos: A. A matéria, ou mais exatamente, a quantidade de matéria, resultante de sua densidade e volume (Definição 1). B. O movimento, ou mais exatamente, a quantidade de movimento, definida em termos da velocidade em relação ao lugar, como sendo o produto da velocidade pela quantidade de matéria (Definição 2). C. A força, definida como uma ação exercida sobre um corpo capaz de mudar o seu estado de repouso ou movimento. Ou, o que é o mesmo, a ação capaz de modificar a quantidade de movimento (Definição 4). A definição 5 estabelece a existência de "forças pelas quais os corpos são impelidos em direção a um ponto como a um centro", para em seguida afirmar que pertencem a este tipo a "força da gravidade, pela qual os corpos tendem para o centro da Terra", e a força, mais tarde demonstrada ser a mesma que a da gravidade, "pela qual os planetas são obrigados a girar em órbitas curvilíneas". 7 Pode-se dizer, simplificando, que os primeiros princípios da ciência inaugurada por Newton são, deste modo, a matéria, o movimento, definido este em termos da velocidade em relação ao lugar, a força e a força da gravidade. A estes a obra acrescenta, na seção seguinte, intitulada "Axiomas ou Leis do Movimento", os seguintes três outros princípios: A. Todo corpo continua em repouso ou em movimento uniforme a menos que seja obrigado a mudar este estado por meio de uma força. Esta lei não é conseqüência do conceito de força, mas uma restrição dele. Nas definições Newton havia definido força como "uma ação capaz de modificar a quantidade de movimento". Esta definição, porém, não exigia que a quantidade de movimento não pudesse ser modificada por si mesma sem ter uma força como causa. A primeira lei do movimento passa a exigir que sempre que uma força age, a quantidade de movimento tenha que ser modificada e, inversamente, sempre que a quantidade de movimento é modificada, uma força necessariamente teve que agir. B. A mudança do movimento, (ou da quantidade de movimento), é proporcional à força empregada. C. A cada ação [de uma força] existirá sempre uma reação [de outra força] igual e contrária. A partir da existência da massa, do movimento, da força gravitacional e das três leis do movimento, a seqüência dos "Principia Mathematica" empreende a descrição da ordem cósmica. No princípio do primeiro livro demonstra-se que se um corpo move-se girando ao longo de uma elipse e se este movimento for provocado por uma força cujo centro for o foco da elipse, esta força deverá ser inversamente proporcional ao quadrado da distância do corpo ao foco da elipse (Livro I, Seção III, Proposição 11). Esta demonstração, situada ainda no início da obra, é de notável importância para todo o desenvolvimento restante, porque à época de Newton a observação astronômica já havia mostrado que os planetas giram em torno do Sol em órbitas elípticas em que o Sol ocupa um dos focos. A conclusão que Newton deixa em suspenso nesta passagem do livro, mas que já se prenuncia, é que se supusermos que seja o Sol quem exerce a força gravitacional que obriga os planetas a se moverem em torno do Sol, uma vez que já sabemos que estas órbitas são elípticas e que o Sol ocupa um de seus focos, a força gravitacional deverá ser proporcional ao inverso do quadrado da distância entre o Sol e os planetas. 8 Daí para a frente, ao longo do primeiro livro, Newton passa a demonstrar como a força gravitacional pode produzir diversos tipos de movimentos e, no Livro II, estuda o movimento dos corpos submetidos às forças de atrito. Finalmente, no Livro III, deduz o que ele chamou de "Esquema do Sistema do Mundo", em que mostra como, partindo dos princípios estabelecidos, podem ser descritas as órbitas dos planetas e dos cometas em torno do Sol, dos satélites em torno dos planetas e os movimentos das marés sobre a Terra. Segundo suas palavras: "A partir destes princípios da Filosofia, que são as leis e as condições dos movimentos e das forças, e de outros sobre os quais a Filosofia parece baseada, como o espaço vazio dos corpos, pode- se demonstrar o Esquema do Sistema do Mundo, os fenômenos do céu e do mar". Livro III, Introdução e Escólio Geral No último parágrafo de sua obra, Isaac Newton advertiu que, para que a Filosofia Natural fosse completa, seria necessário acrescentar à matéria e à força gravitacional, esta tão exaustivamente estudada nos Principia Mathematica, aquilo que posteriormente veio a ser conhecido como carga elétrica e a força eletromagnética, "um espírito mais sutil que pervade e permanece oculto em todos os corpos espessos, pela força do qual os corpos se atraem uns aos outros em pequenas distâncias e permanecem unidos, se contíguos; pelo qual a luz é emitida, refletida e refratada e se movem os membros dos animais, mas que não podemos explicar agora por falta da suficiente experimentação que seria necessária para a determinação das leis pelas quais este espírito elétrico atua". Principia Mathematica, Livro III, Escólio Geral Assim podemos dizer que as ciências experimentais foram concebidas como um sistema de Filosofia que postula como realidades fundamentais do cosmos entidades tais como a massa e a carga elétrica, a força gravitacional e a força eletromagnética e, a partir destas realidades tomadas como princípios, elaboraram uma impressionante síntese do Universo. Os desenvolvimentos recentes das ciências experimentais não alteraram substancialmente o sistema original. Acrescentaram à massa, à carga elétrica e às forças gravitacionais e eletromagnéticas novos elementos e modificaram a metodologia com que estas entidades fundamentais deveriam ser descritas, mas conservaram a mesma concepção básica pela qual o cosmos é descrito. 9 Antes de passar adiante, é necessário chamar a atenção para duas grandes lacunas que as ciências experimentais, por terem sido idealizadas, desde o início, como sistema de Filosofia, apresentam. A primeira lacuna das ciências experimentais enquanto Filosofia consiste em que a síntese da ordem cósmica por elas obtida não pode explicar, ou chega mesmo a negar, pelo menos enquanto tais, realidades tais como a consciência humana, a ética, o direito e a própria sociedade. A lacuna explica-se deste modo. Se a massa, a força gravitacional e todas as demais realidades fundamentais do Universo de que as ciências experimentais fazem uso, não são entes dotados de consciência, qualquer outro ente que em última análise seja constituído apenas destes elementos também não poderá ser dotado de consciência. Um cientista pode crer que ele mesmo seja um ser dotado de consciência, e ele não poderia estudar a criar a ciência se não o fosse e se não cresse que o fosse, mas não existirá nada em sua ciência que possa explicar como no Universo possa ter surgido a consciência capaz de produzir a ciência. Devemos ir mais além e dizer que se a realidade última do Universo é de fato constituída por aquilo que é postulado pela ciência que este homens construíram, não somente a ciência não poderá explicar a consciência do cientista, como também ela teria que sustentar que o próprio cientista não poderia ser dotado da consciência necessária para a criação da ciência. E se a consciência não existe, a ética, que se baseia na consciência, e o direito, que se baseia na ética, e a sociedade, que se baseia no direito, também não poderiam existir, não pelo menos enquanto tais. Isaac Newton percebeu o paradoxo, e parece não ter-lhe dado maior importância. E parece assim ter agido porque no final do Livro III dos Principia Mathematica, onde vai descrito o "Esquema da Ordem do Mundo", apresenta-se um simples e único argumento segundo o qual, para o autor, ficaria clara a necessidade da existência de Deus. Ora, se é possível que a Física demonstre a existência de Deus, realidades tais como a da consciência humana e as suas derivações teriam ao menos a possibilidade de sua existência garantida pela mesma ciência, já que, ainda que em grau maior, este modo de realidade estaria necessariamente presente em Deus, cuja existência seria inegável. A existência da consciência humana não seria mais um problema, restaria o mistério de como explicá-la, não porém alguma dúvida quanto à sua realidade. O problema, porém, é que o argumento de Newton para demonstrar a necessidade da existência de Deus, apesar de sua inegável beleza e, não sem razão colocado na última página do livro, apesar do fascínio arrebatador que é capaz de produzir nos poucos privilegiados que, como o próprio autor, tiverem sido capazes de acompanhar a descrição do movimento dos corpos celestes através das complexas páginas dos Principia Mathematica, não tem força probatória alguma. Com isto, retornamos ao paradoxo de partida. Nas palavras de Newton, a demonstração, que nada prova, é a seguinte: "[Mostramos que] os seis planetas primários giram em torno do Sol em círculos concêntricos com o Sol, e com movimentos de mesmo sentido e praticamente no mesmo plano. Dez luas giram em torno da Terra, Júpiter e Saturno, em círculos concêntricos 10 com eles, com a mesma direção do movimento, e aproximadamente nos planos das órbitas destes mesmos planetas. [Se, por um lado, as leis da mecânica explicam como se dão estes movimentos, por outro lado] não é possível conceber que causas puramente mecânicas deram origem a tão grande quantidade de movimentos regulares, já que vemos os cometas procederem de todas as partes dos céus em órbitas tão excêntricas. Este belíssimo sistema do Sol, planetas e cometas somente pode ter sua origem a partir do conselho e do domínio de um ser inteligente e poderoso. Este Ser governa todas as coisas, não como a alma do mundo, mas como o senhor de todas as coisas. É o domínio de um ser espiritual o que constitui um deus e, deste verdadeiro domínio, segue-se que um verdadeiro Deus é um ser vivo, inteligente e poderoso". Principia Mathematica, Livro III, Escólio Geral A segunda lacuna das ciências experimentais como Filosofia consiste em que os princípios que aí são tomados como primeiros não parecem ser primeiros de um modo absoluto. Em vez disso parece claro que deva haver princípios anteriores aos que são tomados como primeiros, ao mesmo tempo em que parece não haver modo de identificá-los. O problema foi claramente apontado por Newton e persiste substancialmente inalterado até hoje, o que sugere a possibilidade de ser causado não pela carência de um maior número de dados experimentais, mas por uma limitação do próprio sistema, ou a dependência do sistema de algum outro baseado em princípios mais elementares. Segundo as palavras do próprio autor, "até aqui explicamos os fenômenos dos céus e do mar pela força da gravidade, mas não assinalamos ainda a causa desta força. Mas até aqui eu não fui capaz de descobrir a causa das propriedades da gravidade a partir dos fenômenos, e não tenho nenhuma hipótese. Para nós será suficiente que a gravidade realmente existe e atua de acordo com as regras que explicamos, servindo com abundância para descrever todos os movimentos dos corpos celestes e do mar". Principia Mathematica, Livro III, Escólio Geral Antes das ciências experimentais, houve uma segunda tentativa de construção de uma síntese da estrutura do cosmos. Ficou conhecida na história como a Filosofia Moderna. O sistema teve início em 1637, com a publicação da obra "Discurso do Método", de René