UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA POLÍTICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA Alexandra Ozorio de Almeida O Programa Nuclear Brasileiro e o Acordo com a Alemanha: da ambição compartilhada aos interesses fragmentados (1975-1978) VERSÃO CORRIGIDA São Paulo 2015 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA POLÍTICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA O Programa Nuclear Brasileiro e o Acordo com a Alemanha: da ambição compartilhada aos interesses fragmentados (1975-1978) VERSÃO CORRIGIDA Alexandra Ozorio de Almeida Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciência Política do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor em Ciência Política. Orientador: Prof. Dr. André Vitor Singer São Paulo 2015 A Gildo Marçal Brandão AGRADECIMENTOS Pelas conversas, sugestões, referências, ideias e generosidade, agradeço especialmente a Carlo Patti, Celso Lafer, Elio Gaspari, Glenda Mezarobba, Maria Ligia Prado, Monica Hirst, Silvio Salinas e Tullo Vigevani. A todas as pessoas que se dispuseram a ser entrevistadas para este trabalho: Geraldo de Holanda Cavalcanti, João Paulo dos Reis Velloso, John Forman, Luiz Felipe de Seixas Corrêa, Maurício Grinberg (in memoriam) e Odilon Tavares. Aos funcionários dos arquivos e bibliotecas em que pesquisei, especialmente CPDOC/ FGV, Arquivo Nacional de Brasília, Centro de Memória da Eletricidade e IPEN, pela ajuda na obtenção de documentos e publicações. Ao Arquivo Histórico do IF/USP, na pessoa da Walkiria Chassot. E à Estante Virtual, pelo acesso a livros esgotados. Ao Wanderson Felício de Souza, dedicado auxiliar de pesquisa, agradeço pelo tempo empenhado, pelas conversas produtivas e pela capacidade de organização. Agradeço também à Laura Arnt pela ajuda no levantamento dos arquivos do jornal O Globo. À Cátia Almeida, pela revisão atenta e criteriosa. Aos membros da banca de qualificação, Oliveiros Ferreira e Elizabeth Balbachevsky, cujas observações foram essenciais para definir os rumos desta pesquisa. Ao Departamento de Ciência Política, FFLCH/USP, minha casa acadêmica desde a graduação. Ao meu orientador, André Vitor Singer, por aceitar essa orientação pouco convencional. Aprendi muito nas reuniões do grupo de pesquisa e nas nossas conversas. A meu chefe, Carlos Henrique de Brito Cruz, por ter permitido meu afastamento parcial para cursar as disciplinas e redigir a tese, pelas conversas e referências bibliográficas. À equipe da FAPESP, em especial à Diretoria Científica, que cobriu a minha ausência neste período. A Cássio Leite Vieira, pelo incentivo e ajuda. (Cumpri seus dois desafios.) i A Alvaro Ancona de Faria, que mais uma vez me ajudou a contornar os percalços que uma empreitada desse tipo impõe. Aos meus irmãos, Anna e Fernando Ozorio de Almeida, pelo incentivo, companheirismo e ajuda. Anna: suas sugestões foram pertinentes e precisas, importantes para o desenvolvimento do trabalho. Nando: muito obrigada pela ajuda nos arquivos da Folha – 1977 e 1978 ficarão para sempre como os anos que não terminavam nunca. Aos meus pais, Alfredo M. Ozorio de Almeida e Susan Pyne, e ao meu padrasto, Fernando Cerdeira, por todos os apoios e ajudas. Aos meus avós, Miguel Ozorio (como foi conhecido), que apareceu diversas vezes nas entrevistas e questões desta tese, e Dennis Pyne, cuja máxima norteou esse trabalho: “If a job is worth doing, it is worth doing well”. As falhas são inúmeras, mas o princípio esteve sempre presente. Ao Martim, o menino mais lindo do mundo; e ao seu pai, João Furtado, meu leitor mais entusiasmado e meu crítico mais gentil. Ao meu primeiro orientador, Gildo Marçal Brandão. Na sua ausência, a pesquisa não seguiu o caminho originalmente proposto, mas sei que se orgulharia de vê-la terminada. ii RESUMO O programa nuclear brasileiro, materializado pelo do Acordo com a Alemanha, é o objeto do presente trabalho. O programa foi um dos grandes projetos do governo Geisel (1974- 79), inserido em um conjunto mais amplo de investimentos que representava uma resposta à crise deflagrada pelo choque de petróleo de 1973 e que pretendia mudar a orientação do desenvolvimento brasileiro. Mostrando que o debate sobre a questão nuclear sempre esteve ligado à discussão sobre os caminhos para o desenvolvimento nacional, a pesquisa investiga o programa nuclear como parte integrante do II Plano Nacional de Desenvolvimento (1975-1979), proposto pelo governo Geisel. Ao lado de outros grandes projetos energéticos e de setores básicos da indústria, o programa nuclear contribuiria para impulsionar o crescimento brasileiro, alçar o desenvolvimento nacional a novo patamar e reduzir de modo significativo a dependência externa. Na primeira parte o trabalho debruça-se sobre as motivações e a racionalidade do programa, depois de uma recapitulação dos seus antecedentes e das negociações que resultaram no Acordo. A ideia difusa que os vários atores acalentaram por mais de um quarto de século materializou-se como um programa que inicialmente gerou grande entusiasmo. Aprovado por unanimidade pelo Congresso em 1975, três anos depois o programa era objeto de uma Comissão Parlamentar de Inquérito aberta no Senado. Para compreender por que e como atores específicos, centrais para o programa, abandonaram o entusiasmo e deixaram em curto intervalo de tempo de apoiá-lo, a segunda parte da pesquisa dedica-se à análise de três atores relevantes: os empresários, sobretudo os do setor de equipamentos pesados, que seriam beneficiados por um grande pacote de encomendas; os dois segmentos da burocracia estatal diretamente afeitos ao programa, os nucleocratas e o segmento mais tradicional do setor elétrico; e os cientistas, titulares históricos do tema, secundarizados pelo programa. Palavras-chave: Política nuclear; Acordo Nuclear Teuto-Brasileiro; Política Industrial; II Plano Nacional de Desenvolvimento; Governo Geisel; Empresariado; Cientistas. iii ABSTRACT The Brazilian Nuclear Program, brought into being by the Brazil-Germany Nuclear Agreement, is the object of this study. The program was one of the great projects of the Geisel administration (1974-1979), within a wider set of investments that comprised a reply to the crisis triggered by the 1973 oil shock and aimed to change the direction of Brazilian development. Showing how the debate on the nuclear question was always closely linked to the discussion as to the paths of national development, the present work investigates the nuclear program as an integral part of the II Plano Nacional de Desenvolvimento (2nd National Development Plan), proposed by the Geisel administration. Alongside other major energy projects and projects directed towards basic industrial sectors, the nuclear program contributed to boost Brazilian growth, to raise national development to a new level and significantly reduce dependence on external sources. In the first part of this work, we discuss the motivations and rationale of this program, after a review of its history and of the negotiations that resulted in the Agreement. The vague idea that various actors entertained for more than a quarter of a century took shape as a project within the new national development plan. This project initially generated widespread enthusiasm. In order to understand why and how specific actors, central to the program, became disenchanted and, in a short period of time, withdrew their support, the second part of this work is dedicated to the analysis of three relevant actors: the business sector linked to heavy equipment, who would have benefitted from a large amount of orders; the two segments of state bureaucracy more directly linked to the program (the nucleocrats) and the more traditional ones from the electricity sector; and finally, the scientists, historical leaders of the initiative, relegated to second place by the program. By recognizing that the nuclear program is linked to an uncommon industrial sector, characterized by high industrial and technological complexity, this work discusses the reasons for its failure and endeavours to acquire insights into the process of constructing public policies and the requirements for their efficacy. Key words: Nuclear policy; Brazil-Germany Nuclear Agreement; Industrial Policy; 2nd National Development Plan; the Geisel Administration; Business Sector; Scientists. iv SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 1 PARTE I 1 AS ORIGENS DO PROGRAMA NUCLEAR BRASILEIRO: DA EXPORTAÇÃO DE MINÉRIOS ESTRATÉGICOS À CONSTRUÇÃO DE ANGRA I ................................................... 15 1.1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................................................... 15 1.2 OS MINÉRIOS ESTRATÉGICOS E O PRINCÍPIO DAS COMPENSAÇÕES ESPECÍFICAS ................................................... 15 1.3 ACORDOS COM OS EUA E A BUSCA DE NOVOS PARCEIROS ............................................................................. 27 1.4 PROGRAMA ÁTOMOS PARA A PAZ E OS QUATRO DOCUMENTOS SECRETOS........................................................ 36 1.5 A COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO E A COMISSÃO NACIONAL DE ENERGIA NUCLEAR ............................. 46 1.6 A POLÍTICA NACIONAL DE ENERGIA NUCLEAR: TRATADOS MULTILATERAIS E ANGRA I ......................................... 52 1.7 NOVOS HORIZONTES: A ALEMANHA .......................................................................................................... 60 1.8 CONCLUSÕES DO CAPÍTULO ..................................................................................................................... 68 2 O ACORDO NUCLEAR TEUTO-BRASILEIRO: UM ATALHO PARA O ‘BRASIL POTÊNCIA’ ....................................................................................................................................... 72 2.1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................................................... 72 2.2 NUCLEAR NA PAUTA DO GOVERNO GEISEL .................................................................................................. 73 2.3 O INÍCIO DAS NEGOCIAÇÕES .................................................................................................................... 85 2.4 O PROTOCOLO DE BRASÍLIA .................................................................................................................... 97 2.5 CONCLUSÕES DO CAPÍTULO ................................................................................................................... 114 3 O ACORDO NUCLEAR TEUTO-BRASILEIRO: ESTRATÉGIA E PERCALÇOS ................. 117 3.1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 117 3.2 O ESCOPO E O ALCANCE DO ACORDO NUCLEAR ......................................................................................... 118 3.3 INÍCIO DAS ATIVIDADES ......................................................................................................................... 126 3.4 O ACORDO E OS ESTADOS UNIDOS: A BUSCA POR AUTONOMIA .................................................................... 133 3.5 QUESTIONAMENTOS INTERNOS .............................................................................................................. 144 3.6 CONCLUSÕES DO CAPÍTULO ................................................................................................................... 159 PARTE II 4 O EMPRESARIADO E O ACORDO NUCLEAR: DO ENTUSIASMO À DESILUSÃO ........... 163 4.1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 163 4.2 O II PND, A INDÚSTRIA DE BASE E O PROGRAMA NUCLEAR .......................................................................... 164 v 4.3 PROMESSAS NÃO CUMPRIDAS ................................................................................................................ 178 4.4 CONCLUSÕES DO CAPÍTULO ................................................................................................................... 190 5 A BUROCRACIA E O ACORDO NUCLEAR: AS AGENDAS FRAGMENTADAS DO ESTADO BRASILEIRO................................................................................................................................... 194 5.1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 194 5.2 A BUROCRACIA E O ESTADO PROMOTOR DE DESENVOLVIMENTO ................................................................... 196 5.3 O SETOR ELÉTRICO............................................................................................................................... 202 5.3.1 Origens do setor: descentralização e capital privado ............................................................ 202 5.3.2 Planejamento energético ....................................................................................................... 210 5.3.3 Plataforma de oposição ......................................................................................................... 220 5.3.4 Conclusões da seção .............................................................................................................. 232 5.4 A NUCLEOCRACIA ................................................................................................................................ 235 5.4.1 CNEN: começo precário .......................................................................................................... 235 5.4.2 CBTN e Nuclebrás: o caminho empresarial ............................................................................ 240 5.4.3 Conclusões da seção .............................................................................................................. 247 6 OS CIENTISTAS E O ACORDO NUCLEAR: AS AGENDAS CORPORATIVAS DA UNIVERSIDADE BRASILEIRA..................................................................................................... 249 6.1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 249 6.2 A ORGANIZAÇÃO DA COMUNIDADE CIENTÍFICA NO BRASIL ........................................................................... 250 6.3 O REGIME MILITAR E A COMUNIDADE CIENTÍFICA: AMBIGUIDADES ................................................................ 252 6.4 CIENTISTAS, REGIME MILITAR E POLÍTICA NUCLEAR ..................................................................................... 258 6.5 A COMUNIDADE CIENTÍFICA E O ACORDO COM A ALEMANHA ....................................................................... 265 6.6 PARTICIPAÇÃO ATIVA NA CPI ................................................................................................................. 275 6.7 CONCLUSÕES DO CAPÍTULO ................................................................................................................... 288 CONCLUSÕES ................................................................................................................................ 293 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................. 303 vi Introdução A energia nuclear tornou-se uma questão mundial em agosto de 1945, quando duas bombas atômicas foram lançadas nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, acelerando o final da Segunda Guerra Mundial. Inicialmente, o uso dessa nova fonte de energia restringiu-se às aplicações militares. Apenas na década de 1950 os primeiros reatores pré-comerciais e comerciais foram desenvolvidos, permitindo seu uso para geração de energia elétrica. O conhecimento que permitiu o domínio dessa fonte energética e as tecnologias derivadas são marcadas por essa característica dual, isto é, ter aplicação militar e pacífica. Apesar de as aplicações serem muito distintas em termos de objetivos, os processos que levam a elas são semelhantes, dificultando a tarefa de identificar as intenções de quem decide dar início a um programa nuclear, qualquer que seja o objetivo declarado. Tanto o uso militar quanto o uso pacífico da energia nuclear sempre foram vistos de forma hiperbólica. A aplicação militar ergueu o poder de destruição humano a uma nova ordem de grandeza, e o temor de que voltasse a ser usada tornou-se arma psicológica e ideológica na Guerra Fria. De forma semelhante, e também para contrabalancear a percepção negativa desse terrível poder desenvolvido pelo homem, as aplicações pacíficas do uso da energia do átomo foram alardeadas como o instrumento que levaria a humanidade a um novo patamar de desenvolvimento. Não apenas o átomo representaria fonte ilimitada de energia elétrica, como aventou-se o uso controlado de explosivos nucleares para a abertura de portos e estradas e o acesso a recursos minerais. À energia nuclear foi atribuído um caráter fantástico, alquímico: seria motor da construção de um futuro maravilhoso para uma civilização traumatizada por dois conflitos mundiais de enormes proporções. Essa visão, amplamente difundida mundo afora, carrega elementos que permitem compreender a presença da questão nuclear no Brasil. O tema reunia aspectos centrais do imaginário nacional: desenvolvimento, autonomia e soberania. São conceitos amplos e vagos, prestando- se aos interesses diversos, que conviveram em relativa harmonia com a questão nuclear enquanto esta era apenas uma ambição, uma ideia difusa, distante de um programa de fato. Diversos grupos ‘sonharam’ com o uso da energia nuclear e mobilizaram-se em seu favor bem antes que pudesse tornar-se uma aspiração concreta e uma política de governo. 1
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