Sam Kean O polegar do violinista E outras histórias da genética sobre amor, guerra e genialidade Tradução: Claudio Carina Revisão técnica: Denise Sasaki Para minha mulher, Kate, e filhos, Arthur, Ned, Mary e George “A vida, portanto, pode ser considerada uma reação em cadeia do DNA.” MAXIM D. FRANK-KAMENETSKII, Unraveling DNA Sumário Introdução PARTE I A, C, G, T e você: como ler uma partitura genética 1. Genes, aberrações, DNA Como as coisas vivas transmitem características para seus filhos? 2. A quase morte de Darwin Por que os geneticistas tentaram matar a seleção natural? 3. A ruptura do DNA Como a natureza lê, e às vezes interpreta mal, o DNA? 4. A partitura musical do DNA Que tipo de informação o DNA armazena? PARTE II Nosso passado animal: criando coisas que rastejam, brincam e matam 5. A defesa do DNA Por que a vida evoluiu tão devagar e depois explodiu em complexidade? 6. Os sobreviventes, os longevos Qual o nosso DNA mais antigo e importante? 7. O micróbio maquiavélico Quanto do DNA humano é realmente humano? 8. Amor e atavismo Quais genes tornam os mamíferos mamíferos? 9. Humanzés e outros quase acertos Quando e por que os humanos se separaram dos macacos? PARTE III Genes e gênios: como os homens se tornaram humanos demais 10. As, Cs, Gs e Ts escarlates Por que os humanos quase foram extintos? 11. Tamanho é documento Como os homens ganharam cérebros tão grotescamente grandes? 12. A arte do gene Quanto da genialidade artística está em nosso DNA? PARTE IV O oráculo do DNA: genética no passado, no presente e no futuro 13. O passado é um prólogo… às vezes O que os genes podem (ou não podem) nos ensinar sobre os heróis históricos? 14. Três bilhões de pedacinhos Por que os homens têm mais genes que outras espécies? 15. O que vem fácil vai fácil? Por que gêmeos idênticos não são idênticos? 16. A vida tal como a conhecemos(ou não a conhecemos) Que diabo vai acontecer agora? Epílogo: A genômica torna-se pessoal Notas Referências bibliográficas Créditos das ilustrações Agradecimentos Índice remissivo Introdução É MELHOR DIZER logo no início, no primeiro parágrafo. Este é um livro a respeito do DNA – de histórias soterradas no nosso DNA há milhares e até milhões de anos, e de como usar o DNA para resolver mistérios sobre os seres humanos cujas soluções pareciam perdidas para sempre. E, não, o fato de estar escrevendo o livro não tem nada a ver com o nome de meu pai, Gene. Nem com o nome de minha mãe: Gene e Jean. Gene e Jean Kean. Além de ser um absurdo rimado, os nomes de meus pais me causaram um bocado de encrenca ao longo dos anos. Todos os meus defeitos e erros decorriam de “meus genes”; e, quando eu fazia alguma coisa idiota, as pessoas me gozavam dizendo que “meus genes me haviam levado a cometer aquilo”. O fato de o sexo estar necessariamente envolvido quando meus pais me transmitiram os genes também não ajudava. As gozações eram ainda mais cáusticas e absolutamente irrespondíveis. Resumindo, quando eu era garoto, temia as aulas de ciências sobre genes e DNA, pois sabia que alguma gracinha viria dois segundos depois que a professora virasse as costas. Mesmo que não viesse, algum espertinho estaria pensando alguma coisa. Guardei comigo parte desse medo pavloviano, mesmo quando (ou principalmente quando) comecei a entender quanto era importante a substância do DNA. No ensino médio, consegui superar as gozações, mas a palavra gene ainda evocava um bando de reações simultâneas, algumas agradáveis, outras nem tanto. Por um lado, o DNA me entusiasma. Não há tema mais ousado na ciência que a genética, nenhum campo que prometa impulsionar tanto o conhecimento. Não estou me referindo apenas às promessas comuns (em geral exageradas) de curas médicas. O DNA revitalizou todos os campos da biologia e reformulou o próprio estudo dos seres humanos. Ao mesmo tempo, sempre que alguém começa a escavar a biologia humana básica, nós resistimos à intrusão – não queremos ser reduzidos a um mero DNA. E quando alguém fala em remexer na biologia básica, isso pode ser muito assustador. De forma mais ambígua, o DNA representa uma poderosa ferramenta para explorar nosso passado, e a biologia se transformou numa espécie de história. Mesmo na última década, ou algo assim, a genética abriu uma verdadeira Bíblia de histórias cujos enredos imaginávamos desaparecidos – por ter se passado muito tempo ou porque havia muito poucos fósseis ou indícios antropológicos que pudessem ser interpretados de forma coerente. Acontece que estávamos levando essas histórias conosco o tempo todo, com trilhões de textos fielmente registrados, que os pequenos monges em nossas células transcreveram durante todas essas horas e dias sobre as eras passadas do nosso DNA, esperando que acertássemos o ritmo certo da linguagem. Essas histórias incluem as grandes sagas sobre o lugar de onde viemos e como evoluímos da sopa primordial até a espécie mais dominante que o planeta já conheceu. Mas as histórias voltam para casa de forma surpreendente e específica. Se pudesse ter um desejo realizado no tempo de estudante (além de dar nomes mais comuns aos meus pais), eu teria escolhido um instrumento diferente para tocar na banda escolar. Não só por ter sido o único clarinetista nas 4ª, 5ª, 6ª, 7ª, 8ª e 9ª séries (ou não somente por isso). Era mais por me sentir tão desajeitado com todas aquelas válvulas, alavancas e furos do clarinete. Nada a ver com falta de prática, sem dúvida. Eu punha a culpa na deficiência dos meus dedos, com as juntas duras e os polegares desajeitados. Tocar clarinete trançava tanto os meus dedos que eu vivia com vontade de estalar as juntas, e elas bambeavam um pouco. Às vezes um dos polegares chegava a ficar preso, imóvel, e eu precisava usar a outra mão para soltá-lo. Meus dedos simplesmente não faziam o mesmo que os das garotas clarinetistas. Meu problema era hereditário, pensava eu, um legado do estoque genético de meus pais. Só dez anos depois que desisti de tocar na banda, tive bons motivos para refletir sobre minha teoria a respeito de destreza manual e habilidade musical, quando soube da história do violinista Niccolò Paganini, um homem tão talentoso que a vida inteira precisou desmentir boatos de que teria vendido a alma ao diabo em troca do talento. (A igreja de sua cidade até se recusou a enterrar seu corpo durante décadas depois de sua morte.) Acontece que Paganini tinha feito um pacto com um mestre mais sutil: com o seu DNA. É quase certo que Paganini apresentava alguma disfunção genética que lhe conferiu dedos absurdamente flexíveis. Seus tecidos conectivos eram tão elásticos que ele podia esticar o mindinho de lado até formar um ângulo reto com a mão. (Tente fazer isso.) Conseguia também abrir os dedos num ângulo anormal, vantagem incomparável para quem toca violino. Minha hipótese simples em relação a pessoas “nascidas” para tocar (ou não tocar) certos instrumentos parece justificada. Eu deveria ter desistido antes. Continuei investigando e descobri que a síndrome de Paganini pode causar graves problemas de saúde, como dor nas juntas, visão fraca, problemas respiratórios e fadiga, coisas que perseguiram o violinista por toda a vida. Eu reclamava de minhas juntas enrijecidas pelos ensaios da banda na parte da manhã, mas Paganini tinha de cancelar apresentações no auge da carreira, e nos últimos anos de vida não conseguia mais tocar em público. Em Paganini, a paixão pela música tinha se juntado a um corpo perfeitamente afinado para tirar vantagem de todos os seus defeitos, o que talvez seja o destino mais grandioso que um homem pode desejar. Mas esses defeitos apressaram sua morte. Paganini talvez não tenha escolhido esse pacto com os genes, mas estava envolvido com ele, assim como todos nós, e o pacto o fez e o desfez. O DNA também tinha outras histórias para me contar. Alguns cientistas elaboraram um diagnóstico retrospectivo de Charles Darwin, de Abraham Lincoln e de faraós egípcios que possuíam disfunções genéticas. Outros pesquisadores sondaram o próprio DNA tentando articular suas profundas propriedades linguísticas e sua surpreendente beleza matemática. Aliás, enquanto eu ziguezagueava no colégio entre música, biologia, história, matemática e estudos sociais, as histórias sobre o DNA começaram a pulular em diversos contextos, relacionando os assuntos mais disparatados. O DNA explicava histórias de sobreviventes de bombas nucleares, o fim precoce de exploradores do Ártico. Histórias sobre a quase extinção da espécie humana, de mulheres grávidas que transmitiam câncer aos filhos ainda não nascidos. Histórias em que, como no caso de Paganini, a ciência esclarece a arte. E até histórias nas quais – como no caso de estudiosos rastreando defeitos genéticos em retratos – a arte esclarece a ciência. Um fato que se aprende nas aulas de biologia, mas ao qual não se dá muito valor, a princípio, é a espantosa extensão da molécula de DNA. Apesar de compactada num minúsculo armário em nossas já diminutas células, o DNA pode se desenrolar até comprimentos incríveis. Existe DNA em algumas células vegetais que podem chegar a 100m; DNA num corpo humano que se estende mais ou menos de Plutão até o Sol, ida e volta; DNA na Terra que enlaça muitas e muitas vezes o Universo. E quanto mais eu ia atrás de histórias sobre o DNA, mais percebia que essa capacidade de se estender – de se desenrolar cada vez mais, até para trás, no tempo – era algo intrínseco a ele. Qualquer atividade humana deixa traços forenses no nosso DNA. Se esse DNA registrar histórias sobre música, esportes ou micróbios maquiavélicos, as narrativas, juntas, contam uma história mais intrincada sobre o surgimento dos seres humanos na Terra: por que somos uma das criaturas mais absurdas da natureza, bem como sua maior glória.
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