ebook img

O PCB Cai no Samba: os comunistas e a cultura popular (1945-1950) PDF

73 Pages·2001·0.594 MB·Portuguese
Save to my drive
Quick download
Download
Most books are stored in the elastic cloud where traffic is expensive. For this reason, we have a limit on daily download.

Preview O PCB Cai no Samba: os comunistas e a cultura popular (1945-1950)

1 O PCB CAI NO SAMBA: os comunistas e a cultura popular (1945-1950) Valéria Lima Guimarães Dissertação de Mestrado em História Social apresentada à Coordenação do Curso de Pós-Graduação em História Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientador: Marcos Luiz Bretas Professor Doutor Rio de Janeiro 2001 Às velhas e novas guardas do samba. Aos companheiros do Centro Comunitário de Capacitação Profissional Paulo da Portela. A Marcelo Duarte de Almeida e Elba Lima Guimarães, pela razão mais sublime. AGRADECIMENTOS São muitos os que participaram direta ou indiretamente da preparação desta dissertação de mestrado. Sob pena de estar esquecendo alguém, assumo o risco de mencionar todos os que contribuíram com esta pesquisa, a quem ofereço os meus sinceros agradecimentos. Ao CNPQ pelo fomento da pesquisa, tão necessário a todos os que fazem da ciência o seu ofício. Um agradecimento especial ao professor Marcos Luiz Bretas, orientador e grande incentivador desta dissertação, responsável por indicações e críticas certeiras, a quem recorri em momentos de angústia e ansiedade e esteve sempre pronto para uma palavra amena. Aos professores doutores Maria Paula Araújo e Valter Duarte, que gentilmente aceitaram ler e discutir este trabalho, desde o momento da qualificação até a defesa. Aos professores do Programa de Pós-Graduação em História Social, especialmente aos profs. Drs. Anita Leocádia Prestes, Lincoln de Abreu Penna, Flávio Gomes, Jaqueline Hermann e Andréa Daher, que através de seus cursos, contribuíram para o amadurecimento de minha pesquisa, além de acompanharem o desenrolar deste trabalho mesmo após o encerramento de seus cursos, fornecendo preciosas pistas e me incentivando enormemente. A Marcelo Duarte de Almeida. As palavras não são suficientes para expressarem a minha profunda gratidão. À Mônica de Araújo, carinhosamente chamada de Moniquinha, minha grande interlocutora, companheira de viagens e arquivos. Aos funcionários do Arquivo Graciliano Ramos, do Instituto de Estudos Brasileiros, da USP e do Centro de Documentação e Memória da UNESP, cuja competência e prontidão muito impressionaram. Aos profissionais da Biblioteca do IFCS, especialmente a Fernando, Heloísa e Virgínia, sempre muito solícitos e a quem tenho grande carinho. 2 Ao PC do B, na pessoa de Edvan Bonotto pelas precisas indicações. A Apolinário Rabelo, assessor de gabinete da deputada Jandira Feghali, meu braço direito nas andanças pelo Congresso e grande colaborador. Aos profissionais da Biblioteca e do Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados. A Luiz Carlos Magalhães e Oliveira, da Pedro Lessa, garimpeiros da música popular brasileira, sempre muito empenhados em contatar pessoas interessantes para esta pesquisa. A Paulo Motta Lima, conselheiro da ABI, ex-jornalista da Tribuna Popular, que com sua fantástica memória ajudou a compreender melhor os mecanismos de funcionamento da imprensa comunista e a sua relação com o mundo do samba. A Sérgio Braga, o autor de Quem é Quem na Constituinte de 46, que gentilmente acompanhou este trabalho e disponibilizou um material muito valioso. A Ernesto Nascimento, carnavalesco, Cosme e Nilton Fernandes, do Grêmio Recreativo Escola de Samba Império Serrano, que com muita simpatia e entusiasmo me receberam e prontamente me dedicaram um espaço de seu precioso tempo, bastante corrido, em função da preparação do enredo O Rio Corre pro Mar, tema que se confundia com a própria história do Império, extremamente importante nesta pesquisa. Aproveito também para agradecer aos portuários imperianos (de cada dez famílias ligadas à escola, nove concentram a sua atividade profissional no porto), estivadores e arrumadores, do presente e do passado pelas entrevistas e indicações. Às velhas guardas da Portela e do Império Serrano. A Manoel Dionísio, artista de primeira grandeza do mundo do samba, que leva às crianças carentes a arte e a magia da dança do mestre-sala e da porta-bandeira. Agradeço carinhosamente o grande apoio. A Rachel Valença e João Ximenes Braga, que possibilitaram que este trabalho ultrapassasse os muros da academia e chegasse ao conhecimento da sociedade, cumprindo o papel social da universidade, no qual realmente acredito. A José Carlos Rego, Hiran Araújo, Beatriz Ryff, Raquel Pomar, Virgínia Fontes, Marília Barboza, Arthur Oliveira Filho, Marcos Napolitano e Ana Paula Palamartchuk e Luiza Armelau, pela ajuda e incentivo. A Marcello O’Reilly pelo empréstimo de seus livros raríssimos sobre carnaval, fonte de grande ciúme de qualquer colecionador e amante dessa magnífica festa popular brasileira. A todos das rodinhas de samba virtuais: Academia do Samba e Babilônia Estudantil, que colaboraram com este trabalho. At last but not least, agradeço aos amigos de toda hora, Valéria Fernandes da Silva, Marcelo Pereira Lima, Vanderlei Vazelesk Ribeiro, Raquel Paz e Julio Maia, que conviveram com o meu... digamos... azedume, e me deram força nos momentos mais críticos. “Nenhum cérebro deverá ser mais complexo, enciclopédico, que o do comunista”. (Para ser comunista, O País, 20.12.1923) “O samba vai vencer Quando o povo perceber Que é o dono da jogada”. (Caetano Veloso) “O que você acredita que é um artista? Um imbecil que só tem olhos se for pintor, ouvidos se for músico, ou uma lira em todos os andares do coração se for poeta, ou mesmo, se for boxeador, apenas músculos? Muito pelo contrário, ele é ao mesmo tempo um ser político, 3 constantemente em alerta diante dos dilacerantes, ardentes ou doces acontecimentos do mundo, refletindo-os na forma como realiza as suas obras. Como seria possível desinteressar-se dos outros homens? Graças a qual indolência dissociar-se de uma vida que eles lhe trazem de modo tão abundante? Não, a pintura não é feita para decorar os apartamentos. É um instrumento de guerra ofensivo e defensivo contra o inimigo”. (Pablo Picasso) RESUMO GUIMARÃES, Valéria Lima. O PCB cai no Samba: os comunistas e a cultura popular – 1945-1950. Rio de Janeiro: UFRJ, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, 2001. 276 fl. Mimeo. Dissertação de Mestrado em História Social. O propósito deste estudo é discutir as relações entre o Partido Comunista do Brasil e a cultura popular, na segunda metade dos anos 1940, com destaque para o mundo do samba. Considerado um dos elementos que melhor representa a cultura brasileira e, em última instância o que é ser brasileiro, uma discussão bastante intensa desde os tempos do Estado Novo, o carnaval torna-se uma referência para todas as manifestações e veículos culturais: música, artes plásticas, cinema, teatro, rádio e imprensa. Também os partidos políticos manifestarão grande entusiasmo em relação ao mundo do samba e ao carnaval. O PCB destaca-se, nesse particular, por identificar naqueles que freqüentam as escolas de samba o proletariado, que, uma vez ciente de seu papel no processo histórico (através da devida orientação transmitida pelo próprio Partido), irá se empenhar na transformação da sociedade. ÍNDICE ABRE-ALAS ......................................... 13 INTRODUÇÃO .............................16 1 - REFLEXÕES EM TORNO DA CULTURA POPULAR: O MUNDO DO SAMBA COMO OBJETO DE ANÁLISE ACADÊMICA 41 1.1 – A procura das “raízes do samba” ............................................................44 1.2 – O embate ideológico: cultura erudita x cultura popular ...................53 1.3 – Cultura popular, culturas populares............................................59 1.4 – A ascensão do samba como expressão maior da cultura popular ...62 2 - DO SAMBA MARGINAL AO SAMBA NACIONAL ......................72 2.1 – Um estado novo para o samba ...........................................................72 2.2 – Villa-Lobos, o maestro das escolas de samba ..............................86 2.3 – Do malandro ao operário ........95 3 – O PARTIDO COMUNISTA À PROCURA DAS CAMADAS POPULARES...................................113 3.1 – Intelectuais e artistas a serviço da educação política do povo .....113 3.2 – A bancada comunista e a defesa da cultura na Constituinte de 1946 .128 3.3 – A imprensa comunista e o encontro do Partido com as massas .140 4 4 – SAMBA, O ÓPIO DO POVO?............................................ 153 4.1 – Uma Tribuna Popular ....157 4.2 – O samba sobe a Tribuna .........163 4.3 – Um carnaval para Prestes.......180 4.4 – A Tribuna sobe o morro .......190 5 – A QUARTA-FEIRA DE CINZAS ........................................................ 222 5.1 – Uma democracia relativa ......222 5.2 – As polícias políticas e o controle da ordem política e social ..............229 5.3 – As polícias políticas no mundo do samba .............................................234 5.4 – A difícil negociação .............247 5.5 – Outros carnavais ....................251 6 – CONCLUSÃO .........................258 7 – BIBLIOGRAFIA ......................264 ABRE-ALAS Como em todos os anos durante o carnaval, os componentes das escolas de samba desfilam na avenida cantando os sambas enredos escolhidos em suas quadras durante o ano anterior. Cantar o samba-enredo de sua escola de coração é uma rotina saborosa para todo folião nos dias de carnaval. Na década de 1980, os versos dos sambas-enredo, especialmente os da Beija-Flor de Nilópolis, escola que muito cedo aprendi a gostar por identidade local, faziam-me descobrir que havia uma relação mágica entre o samba e a história do Brasil ensinada no meu curso primário, condensada sob a forma de Estudos Sociais, respaldando as letras dos sambas que exaltavam o valor da “civilização”, dos “heróis”, “mitos”, “lendas” e “tradições”. Os sambas e as aulas desafiavam a minha imaginação, dando asas a aventuras, como a de “brincar de bandeirantes”. Pelos terrenos baldios e quintais de nossas casas, de “arma” em punho, seguíamos eu e outros amigos de infância, todos da mesma classe, pela “mata” na deliciosa “aventura” de “caçar índios” e “salvar o Brasil”. Sempre havia discórdia: todos queriam ser Fernão Dias e Domingos Jorge Velho, mas ninguém queria ser a “caça”. A despeito das letras de samba que também enfocavam os indígenas (sob a ótica dos bons selvagens), o apelo dos bandeirantes, representados nos livros escolares como belos, de feições amistosas, grande bravura e um bom caráter, era mais forte do que a representação do indígena, com expressões hostis... todos éramos, então, bandeirantes, à procura de um inimigo imaginário, já que ninguém se candidatava ao posto... Anos mais tarde, as comemorações do centenário da abolição da escravatura, levadas para a avenida pelas escolas de samba, apontavam mais claramente para as relações entre samba e História. Então no final do antigo primeiro grau, cada vez mais fazia sentido e era bem mais agradável conhecer a História do Brasil através do carnaval. Assim como assistir a um filme que abordasse temática histórica significava apreender a história tal qual ocorreu, um samba-enredo de abordagem histórica era um 5 veículo de informação equivalente aos manuais escolares. O discurso de ambos era muito semelhante, a ideologia também, embora ainda não pudesse percebê-la. O amadurecimento intelectual não provocou uma ruptura com a antiga crença no valor da relação samba-história: ao contrário, revelou novas possibilidades de ver o tema, e tornou-a mais complexa, deixando de ser percebida como um mero apêndice dos livros didáticos, acrescido de uma poética peculiar. Cada vez mais convencida de que a relação samba e História é bastante fértil, desenvolvi a monografia O Carnaval da Vitória e Outros Carnavais: relações entre política e samba – 1945-1950, trabalho que trouxe à tona uma série de questões que precisavam ser investigadas e discutidas mais detalhadamente num segundo momento. A comunicação O Carnaval dos 500 anos e o ofício do historiador, apresentada na ANPUH-RJ, foi uma outra experiência bastante interessante, que reforçou ainda mais o meu prazer em participar e estudar elementos pertinentes ao carnaval, nesse caso o samba, articulado a um outro grande prazer do qual fiz o meu ofício: a História. O resultado desse prazer e de acreditar na viabilidade acadêmica do estudo do mundo do samba, para usar o jargão corrente entre os sambistas e os não-sambistas, é a materialização desta dissertação de mestrado, que atualiza algumas questões estudadas na monografia de encerramento do curso de graduação e as amplia, trazendo novas discussões e um novo enfoque, que agora é apresentada ao leitor sob o título de O PCB cai no samba: relações entre política e cultura: 1945-1950. 6 INTRODUÇÃO Muito se tem escrito a respeito do Partido Comunista Brasileiro, especialmente após o fim da ditadura militar e da censura, um de seus principais braços, que, imbuída daquilo que Maria Tucci Carneiro chamou de lógica da suspeição1, dificultava o desenvolvimento de pesquisas que elegessem o Partido Comunista como foco de suas preocupações. Desde então, trabalhos científicos, ensaios e livros de memórias têm sido produzidos com muita freqüência, desnudando a complexa história do mais antigo partido político em atividade no Brasil, uma história marcada pela violência, repressão e, sobretudo, pela resistência, responsável por manter a atuação do partido nos longos momentos em que fora posto na clandestinidade. Um dos mais frutíferos debates entre historiadores e filósofos neste final de século refere- se à necessidade premente de se fazer uma revisão crítica de temas e autores já bastante investigados, considerando que por mais que se tenha discorrido a respeito de um assunto, ele não se esgota por si mesmo. A cada retorno ao tema, uma nova possibilidade, a cada nova prova, um novo fato pode ser valorizado que, ao lado de novas possibilidades de abordagens e métodos, podem acrescentar muito mais sobre o mesmo, que, por sua vez, passa a se constituir no novo. “(...) é necessário examinar de novo. E os historiadores que pensam que não vale a pena retomar este ou aquele problema tradicional justamente porque já foi discutido, adotam implicitamente, ou a idéia de que esse problema já recebeu uma solução satisfatória, em certo autor, ou então a idéia de que essas questões não tem solução”.2 É retomando um objeto considerado bastante enfocado pela academia, que propomos uma nova abordagem, procurando menos acompanhar a trajetória política do Partido Comunista ao longo de suas décadas de existência do que analisar uma questão bastante cara ao Partido, alvo de acalorados debates entre os seus membros, e que não tem recebido a adequada atenção dos pesquisadores: a estratégia política do PCB de relacionamento com as massas, especificamente num momento de intensa atividade do Partido: os anos 1945-19483. Procurando examinar mais de perto essa questão, um ponto se sobrepõe aos demais: o interesse cada vez maior dos comunistas num atributo das massas capaz de lhes proporcionar o tão pretendido diálogo com a classe operária: a cultura popular. Na avaliação do Partido, quanto mais próximo o seu contato com a cultura popular, valorizando-a e estimulando-a, maior o poder de penetração do PCB na classe operária, o que, a médio prazo, proporcionaria a concretização do ideal comunista de fazer a revolução do proletariado, conquistando o poder político e instaurando o comunismo no Brasil. Valendo-se de uma relativa abertura política, proporcionada pelo fim do Estado Novo e ascensão do que se convencionou chamar de período da democratização, que se estendeu de 1945 a 1964, caracterizado como um interregno entre a ditadura estadonovista e o golpe militar, o PCB procura maximizar a sua participação dentro da legalidade, ampliando o seu poder e prestígio políticos, conquistando um crescente sucesso eleitoral e procurando alcançar uma estrutura logística adequada a um grande partido em funcionamento. A imprensa comunista é um dos mais consideráveis reflexos dessa solidificação do Partido na democratização. Os periódicos A Voz Operária e 1 CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Livros Proibidos, Ideias Malditas - o Deops e as minorias silenciadas. São Paulo: Estação Liberdade: 1997. 2 ENGEL, Pascal. Pode a Filosofia escapar da História? In: Passados Recompostos – campos e canteiros da História. Rio de Janeiro: UFRJ: Fundação Getúlio Vargas, 1998, p.112. 3 O registro PCB é cassado em maio de 1947, entretanto, o mandato de seus parlamentares é mantido até o ano seguinte, permitindo ainda que de maneira restrita, a atuação legal dos deputados e senador comunistas. 7 Tribuna Popular, ambos do Rio de Janeiro, lançados em 1945, com uma tiragem bastante significativa, são bons parâmetros para se entender o aquecimento das atividades do Partido Comunista naquele momento. “(...) O auge desta imprensa de partidos, especialmente do PCB, acontece nos pós-1945, com a redemocratização do país. Neste momento, o PCB possui nove jornais diários, nas principais cidades brasileiras, inúmeros semanários, diversas revistas, duas editoras. (...) Pela primeira vez em sua história, [o PCB] torna-se partido de massa: o número de aderentes e de simpatizantes aumenta de maneira extraordinária. É vasta a quantidade de jornais e revistas sob a sua chancela, publicados em todos os Estados e Distrito Federal; são inúmeras as editoras e há toda uma orientação, não só na publicação de material do próprio partido, como nas edições de romances e clássicos do marxismo”.4 Embora a categoria período de democratização seja amplamente aceita e utilizada pela historiografia para se referir ao período que se estende de 1945 a 1964, nunca é demais ressaltar o caráter limitado dessa tão festejada democratização, conhecida também como redemocratização de 1945, categoria adotada pelo próprio Carone, ou ainda intervalo populista, entre outras denominações. Essa experiência “democrática” revela um profundo conservadorismo, pois esse momento é marcado pela manutenção de instituições características do autoritarismo de Vargas, como a atuação das polícias políticas, incluindo a polícia especial, encarregada de dissolver – a bala – comícios comunistas; a violenta repressão aos movimentos populares; a permanência da censura à imprensa comunista e a elaboração e concretização de um projeto que condenava novamente o PCB à clandestinidade. A própria Constituinte democrática, que contou com a participação e algum entusiasmo da bancada comunista, iria gerar as bases – previstas na futura Constituição – para a cassação do PCB. Os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte são iniciados em fevereiro de 1946. Em março, já surgem denúncias quanto à utilização ilegal de dois estatutos por parte do PCB e da manutenção de práticas antidemocráticas no Partido. A aprovação, à revelia da bancada comunista, de um artigo proibindo as atividades de partidos antidemocráticos, tinha um objetivo muito bem delineado. Um artigo do estatuto do PCB, que proibia o relacionamento dos militantes comunistas com elementos fascistas e trotskistas, a manipulação de declarações de Prestes sobre de que lado estaria se houvesse uma guerra entre Brasil e União Soviética, além das denúncias de que o PCB estaria atuando com um estatuto clandestino, foram os argumentos utilizados para o processo que concluiu que o Partido era extremista e inconstitucional. Em maio de 1947, concretizava-se o processo de cassação do Partido, e finalmente em janeiro de 1948, é a vez dos parlamentares comunistas serem expurgados da cena política e amargarem o ostracismo. Tudo isso com base e em nome dos princípios democráticos evocados pela Constituição. Ainda que se reconheça essa limitação da liberdade de ação política, é preciso não perder de vista o fato de que este foi um dos períodos de mais intensa atuação do PC no Brasil, seja durante os primeiros anos (1945-1947), quando lhe foi concedida uma efêmera legalidade, seja atuando clandestinamente, amparando o movimento sindical, o movimento estudantil, procurando negociar com Juscelino Kubistschek a volta do partido à legalidade, e procurando manter ainda a sua imprensa em atividade, editando periódicos de considerável alcance, como Ação Direta (RJ, 1955), Novos Rumos (RJ, 1956), Estudos Sociais e Problemas (RJ, 1960), entre outros. Centrando o foco de nossas observações nos cinco primeiros anos da democratização, elegeremos o já citado periódico Tribuna Popular como meio privilegiado de informações acerca da nossa temática: as relações entre o PCB e a cultura popular. 4 CARONE, Edgar. O PCB – 1943-1964. São Paulo: DIFEL, 1992, pp. 3 e 5. 8 A Tribuna Popular destacou-se por seu importante esforço em se aproximar das escolas de samba, por intermédio de sua entidade representativa, a União Geral das Escolas de Samba. As relações pareciam bastante sólidas (não fosse a forte repressão que o Partido sofreria nos anos seguintes), chegando a Tribuna Popular a se intitular o veículo oficial das escolas de samba e tomando a frente da organização dos desfiles em parceria com a UGES, como o célebre desfile de novembro de 1946, em homenagem ao Cavaleiro da Esperança. Estimulado com o sucesso do desfile, o jornal passa a se dedicar mais intensamente à cobertura dos preparativos para o desfile de 1947, denominado Carnaval da Vitória, acompanhando a movimentação das escolas de samba e seus barracões, os ensaios e festas, ressaltando o quanto inventivas e talentosas eram aquelas pessoas do morro, mas sobretudo trazendo às suas páginas principais as mazelas sociais que acometiam as camadas mais carentes da população. Intervir naquele cenário, através de uma estratégia de condução dos sambistas – vislumbrados pelo Partido como “as massas”, desorganizadas, mas com um estupendo potencial revolucionário – ao comunismo, mais precisamente ao PCB, e eleger os seus candidatos para todas as esferas políticas, passou a ser uma das preocupações centrais do Partido em relação ao mundo do samba. No exame das fontes, perceberemos também uma outra expectativa em relação ao mundo do samba: a de que seja tirada daí a orientação cultural dos comícios do PCB. A cada festa eleitoral, era norma do próprio Partido chamar a indispensável presença das escolas de samba que, com seu ritmo e com seus componentes de maior expressividade entre determinada comunidade, atraíam as massas para ouvirem a mensagens da inteligentsia do Partido, geralmente representada por João Amazonas, Jorge Amado e Luiz Carlos Prestes. As marchinhas e sambas com letras políticas eram os ritmos preferidos para as festas eleitorais do Partido, que acreditava assim estar se comunicando melhor com as massas e ao mesmo tempo prestando-lhes o serviço de levar-lhes cultura e educação, tarefas que considerava serem da alçada do Estado, mas que há muito este estaria se eximindo. As visitas à redação do Jornal Tribuna Popular pelos sambistas e as homenagens constantes das diretorias das escolas de samba aos dirigentes do PCB e ao jornal, nos revelam que as relações entre ambos não se davam de forma unilateral. Era patente a reciprocidade do mundo do samba, que abria as suas portas para receber os membros do Partido e sentia-se prestigiado pelas constantes incursões dos candidatos e dos repórteres comunistas em suas sedes. Contudo, ainda que o relacionamento entre o PCB e o mundo do samba parecesse frutífero, havia um elemento que buscava a desarticulação dessa aliança. O recrudescimento das atividades repressivas ao comunismo internacional ganhava espaço naqueles anos iniciais da Guerra Fria, aumentando a atuação das polícias políticas. No Rio de Janeiro, a DPS – Divisão de Ordem Política e Social, empenhava-se no combate e prevenção ao comunismo em plena redemocratização. A organização, em 1947, de uma segunda (e pretendia-se oficial) entidade representativa dos interesses dos sambistas, a Federação Brasileira das Escolas de Samba, com o incentivo inclusive, do chefe da DPS, Cecil Borer, reduziu dramaticamente os recursos da UGES para a execução do carnaval, acusada de envolvimento com atividades subversivas. Somente as escolas de samba filiadas à Federação receberiam a subvenção da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Começaria aí o início da derrocada da UGES, assim como estava em pleno curso o processo de desarticulação do PCB. * * * Examinando a historiografia a respeito do Partido Comunista Brasileiro, é difícil percebermos um recorte que privilegie essa temática. Ainda hoje, são referências sobre o 9 PCB os trabalhos desenvolvidos no início dos anos 80 por Leôncio Martins Rodrigues, Edgar Carone5, Ronald Chilcote6 e Moisés Vinhas7 contribuições inegavelmente importantes, que suscitam vários debates em torno das questões por eles enfocadas. A preocupação maior desses autores está em escrever uma história institucional do Partido Comunista, enfocando a sua organização e composição, o debate teórico em torno da questão do comunismo, as relações do PCB com a Internacional Comunista, as constantes clivagens dentro do Partido e a atuação política do PCB nas diferentes conjunturas nacionais. Leôncio Rodrigues em seu trabalho O PCB: Os dirigentes e a organização8, por exemplo, faz um detalhado painel da composição e organização do PCB, enfocando desde os seus primeiros anos, onde analisa a juventude e rotatividade dos seus componentes, passando pelo apoio comunista à ANL, até o alvorecer do golpe militar. Rodrigues procura destacar na trajetória do partido as diferentes orientações seguidas pelos comunistas em torno da composição de seus quadros. A permanência ou não de intelectuais no PCB; o declínio da participação do operariado, motivado pelas mudanças de tática e de orientação ideológica em benefício de elementos de camadas mais abastadas, nos idos dos anos 30; o problema da adesão ao partido; o distanciamento em relação às massas e a política de atração do proletariado para o seu meio são pontos de reflexão do autor. A clássica questão partido de massas versus partido de quadros se coloca com maestria, tornando o diálogo com este autor fundamental para a nossa pesquisa. Os trabalhos mais recentes em torno do PCB, apoiados em novas perspectivas teóricas, têm lançado um novo olhar sobre o Partido Comunista, ora percorrendo o caminho aberto pelos autores acima referidos, debruçando-se sobre a trajetória do partido e examinando- a atentamente, ressaltando as suas estratégias e contradições internas, como as obras de Dulce Pandolfi9, Antônio Carlos Mazzeo10 e Gildo Brandão11; ora estabelecendo recortes em torno de problemas mais pontuais, como a obra de Bethânia Mariani12, que inova por sua abordagem, utilizando os recursos da lingüística e da semiótica para compreender a análise do discurso da imprensa a respeito do PCB e do comunismo, contribuindo para um debate interdisciplinar. A maioria dos trabalhos conhecidos a respeito do PCB, portanto, prima por uma análise diacrônica, percorrendo o fenômeno PCB de 1922 até os anos 1960, 1970 ou 1980, dependendo da opção do autor, ou, mais recentemente, elegendo recortes que, também privilegiando a diacronia, se debruçam mais detidamente sobre um determinado problema levantado pelo autor, como na obra de Mariani. Sem nos esquecermos da perspectiva diacrônica, que nos auxiliará na percepção dos desdobramentos da relação PCB-cultura popular (como nos bem sucedidos contatos firmados nos anos 1960, por exemplo13, procuraremos enfatizar uma análise sincrônica, buscando conhecer as perspectivas das camadas populares, em especial daquelas 5 CARONE, Edgar. O PCB. São Paulo: DIFEL, 1982. A obra de Carone além de tecer uma competente análise da conjuntura na qual o PCB se inscreve, contribui na viabilização de importantes fontes produzidas pelo Partido, o que será de grande valia para o nosso trabalho. 6 CHILCOTE, Ronald H. O Partido Comunista Brasileiro: conflito e integração. Rio de Janeiro: Graal , 1982. 7 VINHAS, Moisés. O Partidão – A Luta por um Partido de Massas (1922-1974). São Paulo: Hucitec, 1982. 8 In: História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: DIFEL, 1981. Tomo III, vol.3, pp. 364-451. 9 PANDOLFI, Dulce. Camaradas e Companheiros: História e memória do PCB. Rio de Janeiro, Relume Dumará: Fundação Roberto Marinho, 1995. 10 MAZZEO, Antônio Carlos. Sinfonia Inacabada: A política dos comunistas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 1999. 11 BRANDÃO, Gildo Marçal. A Esquerda Positiva: As duas almas do Partido Comunista. São Paulo: Hucitec, 1997. 12 MARIANI, Bethânia, O PCB e a Imprensa: os comunistas no imaginário dos jornais - 1922-1989. Rio de Janeiro: Editora Revan: UNICAMP, 1998. 13 Ainda que nossa delimitação temporal se restrinja à segunda metade dos anos 1940, isso não nos impede de termos em conta fenômenos que excedem a temporalidade demarcada. 10 vinculadas ao que chamaremos de mundo do samba14 em relação às demandas do Partido para esse grupo social; e os usos que o mundo do samba faz dessa expectativa gerada pelo PCB, que propõe a valorização e adesão em massa desse grupo ao Partido, com vistas à revolução democrático-burguesa, num primeiro estágio rumo ao socialismo. Evidentemente ao cruzarmos o fenômeno PCB com o fenômeno cultura popular, mais especificamente, com o mundo do samba – até então inexplorado pela literatura a respeito do PCB e pouquíssimo enfocado pela literatura referente ao samba – teremos necessariamente de recorrer ao exame de uma bibliografia especializada nesses dois últimos agentes, valorizando uma perspectiva transdisciplinar de trabalho. Das obras acima referidas, destacamos a contribuição de Hermano Vianna como imprescindível para a nossa pesquisa. Privilegiando o problema da consideração do samba como um fenômeno característico da cultura nacional, o que lhe dá o status de símbolo daquilo que se conheceu entre os anos 20 e 30 como brasilidade, e analisando todo o debate intelectual que se instala em torno da questão, Vianna vai desvelando o mistério no qual num curto espaço de tempo promoveu o samba da condição de um ritmo musical, resultante da balbúrdia e barbárie das classes baixas, da escória social, ao patamar de manifestação cultural genuinamente brasileira, rica por sua complexidade de sons, pela sua dança e pela riqueza na composição étnica dos que dele se ocupam, num elogio aberto à mestiçagem. Vianna vai nos mostrando como o discurso intelectual dos anos 20 e 30, especialmente os escritos de Mário de Andrade, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque são importantes na formação de um elogio à mestiçagem e da valorização do samba como cultura brasileira. Isso nos interessará bastante de perto se considerarmos que o discurso do PCB em favor da cultura popular e as suas investidas ao mundo do samba se justificam, em parte, por essa valorização da cultura popular, talhada a partir da Semana de Arte Moderna (não por acaso no mesmo momento em que surge o Partido) e revigorada durante o Estado Novo, com o grande incentivo de Vargas às escolas de samba. Também não é um acaso o fato de ser na era Vargas instituído oficialmente o desfile das escolas de samba e a quase unânime adoção de temas nacionais como enredos das escolas de samba.15 É interessante percebermos também a participação do próprio sambista como um agente construtor ou mesmo um crítico dessa sua nova imagem, positivada, que em muitas vezes lhe é conveniente, o que nos faz crer que a ação do mundo do samba em relação à sua própria cultura não é menos política do que a do PCB. Essas ponderações são imprescindíveis para que evitemos uma análise que peque pela sua unilateralidade, podendo cair num reducionismo tão prejudicial a qualquer investigação científica. Reconhecendo o mundo do samba como um baluarte da cultura nacional, o Partido Comunista busca traçar uma estratégia de valorização das camadas populares, procurando resgatar o seu lugar de bastiões da arte brasileira, produzindo um discurso que enfatiza a dignidade daqueles que contribuem para o engrandecimento do País através de sua arte, mas que ainda não receberam o devido reconhecimento do poder público. 14 Adotamos a expressão popular mundo do samba como uma categoria que, no nosso entendimento, poderá dar conta da multiplicidade dos elementos por ela representados, como rodas de samba, carnaval, escolas de samba, sambistas, entre outros. Recorreremos, entretanto, sempre que necessário ao uso dessas expressões isoladamente. É preciso salientar que reconhecemos que o mundo do samba é híbrido, como esclareceremos melhor mais adiante. Essa será uma das questões centrais de nosso trabalho. 15 Uma das raras exceções conhecidas foi o enredo Branca de Neve e os Sete Anões, da Vizinha Faladeira, em 1939. A escola fora desclassificada naquele ano por descumprimento ao regulamento. Vários pesquisadores , entre eles Sérgio Cabral e Rachel Soihet, afirmam que tal penalidade foi decorrente da proibição por parte do Estado Novo, de as escolas de samba desenvolverem enredos com temáticas estrangeiras. Monique Augras discorda deste ponto de vista e afirma que a obrigatoriedade de temas nacionais data de 1945, durante o Governo “democrático” de Dutra. Abordaremos melhor essa discussão no capítulo 2.

See more

The list of books you might like

Most books are stored in the elastic cloud where traffic is expensive. For this reason, we have a limit on daily download.